quinta-feira, 15 de maio de 2008

AINDA O "CASO ESMERALDA"

Suponho que muitos estarão completamente desinteressados deste "caso". Contudo gostaria de deixar aqui o prefácio que escrevi para o livro de Margarida Neves de Sousa e Rita Marrafa de Carvalho: "Esmeralda ou Ana Filipa, dois nomes, dois pais" porque acredito levantar algumas questões de interesse geral:
..."Confesso que até ao convite para o programa “prós e contras”, não tinha acompanhado de perto, antes de forma distraída, o “caso da pequena Esmeralda”. Parecia-me haver aspectos de exibição mediática que me desagradavam profundamente, porque contrários a uma análise séria e racional de um caso seguramente complexo. Mais tarde, alguém me referiu um editorial da revista “Sábado”, onde, contra a corrente, se defendia uma posição favorável ao pai biológico, e se descreviam detalhes que outros “media” pareciam não estar interessados em divulgar, talvez porque se esvaziasse o entusiasmo das massas que animavam o circo televisivo.
Ainda hoje me sinto algo irritado com a forma incompetente como não consegui transmitir com clareza o meu pensamento no programa de debate público, mas também indignado com a forma intelectualmente desonesta como a questão foi por muitos abordada. Devo declarar, em primeiro lugar, que não sei se foi boa a decisão judicial. Este é um ponto crítico. Não sei se foi boa por muitas e diversas razões. Não conheço a criança nem o seu pai. Não conheço o sargento e a sua família, nem estou plenamente informado sobre as importantes questões jurídicas que rodeiam o caso. Nem eu nem a enorme maioria dos opinantes, que com segurança afirmam posições inequívocas a “favor da criança”, manifestando indignações de justo perante os Herodes judiciais. Estou seguro que este livro trará uma luz mais diversificada sobre esta questão.
A forma demagógica como muitas vezes o tema tem sido tratado causa repulsa. Quantas vezes o “pai” adoptante foi designado de pai “afectivo”, parecendo criar à partida uma diferença para com o pai “biológico”, como se este não fosse também, e seguramente, sujeito amante da sua filha. Muitas mães adoptivas utilizam a expressão: “tu és filho do meu coração”, para salientar a importância da escolha voluntária daquela criança, que por isso teria mais valor do que a lotaria biológica. A verdade, porém, é que quase sempre, a ligação biológica traz consigo laços afectivos que são, muitas vezes, inexpugnáveis, como todos nós, pais e mães, bem o sabemos. A Dra. Maria de Jesus Barroso, por quem tenho o maior respeito, e que formalmente aqui expresso, parece-me ter sido vitima e cúmplice de afirmações emocionais que escondem verdades mais prosaicas. Assim, não teve pejo em afirmar, que o Snr. Sargento tinha sido preso por “amar uma criança”. Extraordinária afirmação de quem ao longo de toda a sua vida defendeu o Estado Democrático e as suas instituições. Não, este militar não foi preso por amar, antes foi preso por desobediência aos tribunais, atitude que seguramente a Dra. Maria de Jesus, não defende como legítima. Claro que a pena parece ser absurda, mas essa é uma outra questão.
Talvez a minha indignação maior se volte contra os “profissionais dos afectos” e seus sacerdotes máximos, que com modulações adocicadas de voz, e a segurança dos verdadeiramente ignorantes, provocam náuseas e estragos. A mente é demasiadamente complexa, as influências múltiplas, a nossa experiência limitada, para que alguma vez se possa afirmar com inteira certeza as consequências para a Esmeralda da decisão judicial. Este é um ponto essencial que nos deve fazer parar para reflectir, e com humildade confessar que mesmo a nossa melhor opinião, poderá não se transformar na melhor decisão. Gostaria apenas de levantar alguns pontos que me parecem importantes de considerar para trazer maior ponderação ao debate. Todos nós temos uma História. Eu sou, em boa medida, e não só do ponto de vista estritamente biológico, o que herdei dos meus pais e avós. Sou também os episódios contados de geração em geração, a casa que já não é, as medalhas do bisavô Governador. É essa a minha pertença, é essa a minha herança, a ela tenho direito porque de mim indissociável. É isto que uma adopção não pode dar, será talvez por isso, que muitas crianças adoptadas, quando chegada a adolescência, procuram desesperadamente as suas origens, perante o pasmo das famílias que todo o amor e conforto lhe deram. Não é razoável supor-se que mesmo aceitando a adopção, se obrigasse a criança a cortar todos os laços com o seu pai. Que conflitos emocionais, quantas tensões e divisões ocorreriam nesses encontros, em que decerto “eu sou o teu pai” seria ouvido mais de que uma vez, e a culpa sentida pelo inocente. Como explicar aos amigos e outras crianças que aquele senhor fardado que a levava à escola não era “bem” o pai, ou se afirmasse o contrário, não se sentiria traindo aquele que sendo verdadeiramente o pai, por ela lutou e tanto a quis?
Mais uma vez declaro que não sei se foi boa a decisão judicial. É, aliás, a minha única certeza. Cuidado, porém, com os psicólogos sábios, técnicos infalíveis das profundezas das mentes, definidores do branco e do preto, criadores de lobos maus e capuchinhos vermelhos, que ao fazerem afirmações peremptórias, onde não surge a sombra de uma dúvida, insultam a inteligência, assumem vestes que lhes ficam largas, mas sobretudo, ao esquecer as forças que ligam pais e filhos, decerto misteriosas, sem dúvida poderosas, reduzem a Vida."

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