sábado, 8 de março de 2008

E agora?



À hora a que escrevo, os professores estão concentrados no Terreiro do Paço. Apesar de a expectativa ser grande, a adesão ultrapassou o imaginável. Mais de 85.000, diz a PSP. Cerca de 100.000, dizem os organizadores. Entre eles, a minha irmã, que não me lembro de alguma vez ter visto em manifestações de rua: também ela de t-shirt preta, «de luto pela educação» / «em luta pela educação».

Não creio que nada do que se passa traduza, como alguns pretendem, uma reacção corporativa ao modelo de avaliação preconizado pela ministra. O gigantismo do fenómeno desmente tal leitura.
Não há nenhum pretexto concreto que, isolado, traga para a rua mais de 2/3 de uma qualquer classe profissional. A avaliação – mal pensada, mal apresentada, mal discutida – foi a gota de água, mas não mais do que a gota de água.

Infelizmente, porque muito pior, o que hoje desceu a Avenida da Liberdade, em direcção à sede histórica do poder do Estado, foi uma classe agastada, desqualificada, abusada, humilhada ao longo de muitos e muitos anos. Perante a impotência inocente da esmagadora maioria, os professores vivem, há décadas, um processo imparável de degradação da escola portuguesa. Em nome do pedagogicamente correcto, têm sido confrontados com um experimentalismo irresponsável que destruiu a própria ideia de ensino como transmissão de saber. Com a emergência da nova ideologia, radicada no império das «ciências da educação», a escola privilegiou papéis alternativos, desprezou as aprendizagens fundamentais e assumiu uma ruptura metodológica clara relativamente ao mérito, ao esforço e à disciplina. Passámos à escola pós-moderna, à escola lúdica, à escola das ‘competências’ construídas pelo aluno e à volta do aluno.
De permeio, o inusitado afã reformista em matéria administrativa e burocrática só agravou o cenário. Dos horríveis 'agrupamentos' sem alma, identidade ou cultura à miríade de reuniões, actas, formulários, relatórios e papelada diversa, as escolas transformaram-se num universo irrespirável e os professores funcionalizam-se pelo pior padrão.

O resultado está aí. O horror pedagógico no seu indesmentível esplendor. Um quotidiano insuportável para os milhares de professores que hoje marcham em nome de uma indignação que já não conseguem calar.
Estes professores estudaram para ensinar e formar gente. Gente capaz de fazer o futuro deste país. Gente que deveria aprender e crescer na escola, ganhar aí maturidade e horizontes. Mas, hoje, a gratificação permitida é nula ou quase nula, já que apenas marginal. Nas nossas escolas, o ‘mainstream’ não sabe nem quer saber, não aprende nem quer aprender, não se interessa, não se concentra, não se comporta. Gente perdida, sem perspectiva, sem esperança. O aproveitamento diz o que as necessidades estatísticas determinem em cada circunstância, mas a falta de bases, a impreparação, a ausência de saídas não se mascaram. Esta gente, cedo desenquadrada, cedo inadaptada, cedo infeliz, é crescentemente hostil, violenta e provocatória. Têm nos professores vítimas preferenciais, quantas vezes com o conveniente apoio de paizinhos e mãezinhas que assim vão (inconscientemente) hipotecando também a sua própria autoridade.

Na verdade, ninguém mediu o desastre. Mas não era possível esperar mais ou melhor. Da noite para o dia, ou quase, as crianças foram abandonadas por pais trabalhadores a escolas de tempo inteiro, em permanentes e sucessivos ensaios pedagógicos, entregando as horas livres à televisão – cujo lixo, no seu critério infantil, se habituaram a preferir – e aos computadores – em que, da internet aos jogos, aprenderam toda a sorte de utilidades, desde o plágio fácil à estimulação acrítica.

Na minha opinião, é por tudo isto que os professores marcham hoje. Para que o país olhe para eles e para as nossas escolas. Para que o país perceba o que está a acontecer. Para que deixemos – todos – de fazer de conta. Porque é preciso verdade, há que ver, entender e retirar consequências.
O problema do ensino em Portugal não se resolve com soluções abstractas e modelos teóricos. Precisa de trabalho no terreno e, portanto, de um mergulho na realidade profunda da educação.

Os professores estão em crise. Os que podem aposentam-se. Os que não podem enchem os consultórios dos psiquiatras.

Hoje, estão na rua. Ainda bem. Por eles passa a possibilidade de recuperação do ‘ethos’ que pode redimir a escola portuguesa (bem sublinhado por Vasco Pulido Valente, no seu «Pelos professores», Público 08/03/2008).

O resto já só pode depender do Primeiro-Ministro.


Post Scritpum – Há vários sites e blogs que ajudam a perceber o estado das coisas e a insustentabilidade dos actuais níveis de crispação. Por exemplo:
http://defendeaprofissao.wordpress.com/
http://ww.fenprof.pt/
http://movimentoprofessoresrevoltados.blogspot.com/
http://sinistraministra.blogspot.com/
http://maisk3d.wordpress.com/2008/02/11/avaliacao-de-professores-2/
http://www.ramiromarques.blogspot.com/

6 comentários:

Unknown disse...

Li o seu texto (custa-me chamar post a algo a que fui ensinado a chamar texto, e não vejo razão útil para mudar) com muito interesse, aliás como sempre. Penso que você terá razão em muito do que diz. O que me parece é que esta enorme reacção a que estamos a assistir (para grande deleite dos nossos media sensacionalistas -e em especial os da imagem- que assim têm mais do que os infelizmente já vulgares assasinatos e acidentes diários para nos apresentar) deverá constituir uma forma de catarse de grupo destes inúmeros problemas a que você tão bem aludiu. É por assim dizer um grito de revolta e asco contra um processo de proletarização e funcionalização dos professores (mas pior do que isso da missão de ensinar) que vem tendo lugar desde há muito e não só na educação (veja-se alias o problema da saúde onde as semelhanças me parecem óbvias).
O conceito, fácil de vender, de que o (único) elemento importante é o aluno (ou o doente usando o exemplo que citei) é primordial mas pode ele mesmo, se mal pensado ou aplicado ser a causa da desvirtuação da bondade da ideia inicial. A importância do aluno parece-me inquestionável mas o argumento pode tornar-se perigosamente redutor ou mesmo nefasto se se não levar em conta que para que tal suceda há que garantir a excelência do processo de ensino e transmissão de conhecimentos. Para assegurar este fim a aura, o prestígio e o papel (leia-se poder) determinantes dos professores são factores não só inescapáveis, mas, mais ainda de primeira e fundamental realização.
A ideia que passou e tem de há muito colhido de que a primeira medida a tomar quando se iniciam reformas (?) num dado sistema que envolve uma importante corporação de pessoas é a de minimizar a importância dessa mesma classe é errada ( a não ser que a mesma não seja mesmo importante o que não é o caso). Qualquer uma destas reformas, seja na educação ou na saúde (se bem que eu penso que ainda assim as coisas estão melhores na saúde) só terá verdadeiramente sucesso (e o sucesso mede-se pela melhoria do nível e exigência do nosso ensino e dos nossos padrões assistenciais o que resulta inevitavelmente em melhores e mais saudáveis cidadãos) se for levada a cabo com o (natural) entusiasmo e e abnegação de cada uma destas classes (professores e médicos/enfermeiros).
No caso particular do ensino, no entanto, penso que os (alguns) professores não estão totalmente isentos de responsabilidades. Lembro-me dos milhares de professores que não ensinam e sindicam e dos não menos milhares que também em grande parte e pelo menos durante um período de tempo longo andaram (e andam se bem que em menor número) pelo ministério, em comissões e comissões que ao longo dos anos se entretiveram a desvirtuar o processo de ensino travestindo-o em mais um pegajoso molde de politicamente correcto, abjectamente falho de desígnio, de ambição, e de excelência.
Manuel Cunha e Sá

Sofia Galvão disse...

Manel, que bom reencontrá-lo por aqui!
Concordo consigo na identificação desse "grito de revolta e asco" - foi o que senti, foi o que me impressionou.
Mas é claro que também concordo consigo quando lembra que "alguns professores não estão totalmente isentos de responsabilidades". É claro que não estão. Muitos foram arautos (e autores) do pedagogicamente correcto. Muitos politizaram a sua função, tomaram de assalto o Ministério da Educação e, enquistados nesse poder, defenderam intransigentemente as "conquistas irreversíveis". Muitos preferiram militar em vez de ensinar. Muitos foram os remunerados com horários zero. Muitos resistiram a qualquer inflexão, pedagógica ou administrativa, denunciando a ameaça reaccionária e recusando o recuo conservador.
É tudo verdade. Mas, apesar desses que foram muitos, continuo a acreditar que a esmagadora maioria é inocente e assistiu impotente ao desastre.
Seja como for, creio que, hoje, o mais importante é apelar aos professores que podem ter a virtualidade de regenerar as coisas. Enterrar o eduquês e recuperar o ethos da excelência, de que falou o Vasco Pulido Valente. Se não for assim, se não exortarmos a recta intenção e não confiarmos nos que a praticam, vencerão os tais outros e o desastre será irreversível. Nessa altura, bem pode a ministra ganhar a batalha da avaliação que só lhe sobrarão cacos para avaliar...

Gonçalo Magalhães Collaço disse...

Muito justas palavras as da Sofia Galvão que não posso senão subscrever, quase diria, sem mais, não fora afigurar-se-me alguns correlatos pontos deverem ser igualmente salientados.

O designado Problema da Educação não é, na verdade, de hoje mas de há séculos. Data, pelo menos, desde o tempo do Senhor Marquês de Pombal que, naquele seu muito característico estilo de quero, posso e mando a meu belo prazer, com a pesporrência própria dos infames e o muito régio beneplácito do Senhor D. José, expulsou, de vez, o «abominável» Aristóteles da Universidade. Depois, foi o que se tem visto.

Instaurada a República, Teixeira de Pascoaes, observando os seus descaminhos, escreveu e publicou, em 1920, a «Arte de Ser Português», afirmando, «Instruir, educar e crear portugueses seria visar um alto ideal patriótico, fechando e coroando esplendorosamente o curso geral dos liceus», mas escassa terá sido a repercussão da obra e, ainda hoje, poucos serão aqueles que verdadeiramente a leram ou dela terão sequer tido vaga notícia.

Nos anos 40, nos idos do Estado Novo, Álvaro Ribeiro chamou repetidamente a atenção para o facto de não ser possível, sem uma Escola Portuguesa poder haver verdadeira política portuguesa e, consequentemente, sem uma política genuinamente portuguesa, ser possível verdadeira independência nacional. Os resultados também são conhecidos e quem, à época, obrigação tinha de atender a quanto ia sendo exposto, não só não atendeu como todos os universitários que tinham responsabilidade de pensarem séria e livremente no proposto, naquela atitude tipicamente anti-portuguesa por formação, quando não puderam ignorar «O Problema da Filosofia Portuguesa», publico em 1947, denegriram, numa muito «corajosa» atitude, não as mesmas propostas mas a figura do seu proponente que, na verdade, não era ninguém senão uma santa mas inquieta alma de genuíno Português.

Mais recentemente, em 1985, Orlando Vitorino propôs a extinção da Universidade como primeira medida para a regeneração do designado Sistema de Educação Nacional. Escândalo. Como descrito no «Diário de Campanha», José Hermano Saraiva ter-lhe-á dito bastar encerrar as portas porque, por dentro, não havia já senão vazio. Fosse como fosse, considerada uma loucura, ninguém quis atender aos verdadeiros e sérios motivos de tal proposta.

Entretanto, chegamos a 2008, após sucessivas reformas, a começar nos dias de Veiga Simão a acabar na actual Ministra, com o descalabro plenamente instalado.

À Ministra da Educação nunca se lhe ouviu, em público, pelo menos, uma frase digna de nota relativa ao seu pensamento sobre Educação. Muitas tiradas sobre questões administrativas, sim, mas não uma frase digna de registo sobre a Educação.

Não irá cair, por certo, como se diz na gíria: o Primeiro-Ministro é determinado e, do Pedro Norton aqui por cima, a António Barreto ou Miguel Sousa Tavares, muitas são as vozes temerosas com a «autoridade da rua». Como se a famigerada questão das Avaliações não fosse mesmo apenas a gota de água de que fala, e bem, a Sofia Galvão. Mas mais grave, e aqui o meu cepticismo, mesmo que «caia» a Ministra, nada de essencial se antevê que mude. Para que alguma coisa de relevante mudasse, necessário era acabar com o Ministério da Educação, necessário seria acabar com a Universidade tal como hoje existe. O resto pouco mais do que manobras de diversão. Sim, poder-se-á apelar aos cheques-educação e à consequente avaliação tácita que os mesmos não deixarão de implicar mas, enquanto não houver verdadeira liberdade de ensinar, verdadeira liberdade de aprender, enquanto as questões de administração e organização se sobrepuserem às questões de essência, i.e., enquanto não soubermos atender ao verdadeiro conceito de Educação, tudo irá continuar, melhor ou pior, na mesma. Não sei se há reforma possível, sei, e é o mais triste, é que, Portugal, no meio desta balbúrdia toda, não deixará de continuar, mais lenta ou rápida, mas inexiravelmente, a evanescer.

Anónimo disse...

"Na minha opinião, é por tudo isto que os professores marcham hoje."

Eu, tem graça, não vejo nada disso.

Eu o que vejo é professores que durante 30 anos estiveram quietos, a assistir a tudo aquilo que a Sofia descreve no post, e que só agora decidiram manifestar-se - por razões totalmente diferentes.

Por razões meramente profissionais. Não se manifestam pelo ensino, que com ele têm colaborado, a bem ou a mal, durante os últimos 30 anos. Manifestam-se porque estão a ser agravados nas suas condições laborais.

Porque dantes tinham poder auto-gestionário nas escolas, e o ministério quer-lhes retirar esse poder.

Porque dantes eram promovidos automaticamente em função da antiguidade, e o ministério quer introduzir uma promoção em função do mérito.

É isso, muito simplesmente, Sofia. Todo o post da Sofia é tentar puxar para o seu (da Sofia) lado os 100.000 professores, que se estão a manifestar por motivos muito diferentes.

Luìs Lavoura

P.S. A irmã da Sofia é uma pessoa como as outras. Também ela tem os seus interesses pessoais. Legítimos e compreensíveis como os interesses pessoais de todas as outras pessoas. O facto de ela estar na manifestação não quer dizer que a Sofia deva aplaudir a manifestção.

Sofia Galvão disse...

Caro Luís Lavoura,
O que me separa de si, muito mais do que a diferente visão que possamos ter acerca da manifestação do passado sábado, é a capacidade de respeitar a opinião contrária.
O meu ‘post’ propõe uma interpretação que nunca pretendeu ser mais do que a ‘minha’ interpretação. E isso mesmo, uma ‘interpretação’, justificada na consistência do protesto e na escala avassaladora que assumiu. Ao ver na marcha da indignação sobretudo a expressão de um descontentamento recalcado ao longo de muitos anos, disse – e repito – que nenhum pretexto concreto, isolado, me parecia capaz de tanto…
Mas insisto, foi a minha visão das coisas e com ela jamais pretendi convencê-lo. Daí que perceba mal o seu comentário. Desde logo, porque eu apenas interpretei os factos e mais não presumi. Depois, porque – nos antípodas do meu registo metodológico – é o Luís Lavoura que parece considerar-se arauto das verdadeiras razões que determinaram os professores no passado sábado. O seu comentário assume um tom de magistério e visa explicar-me aquilo que eu não sei mas que o meu amigo pretensamente sabe.
Ora, assim sendo, vamos ao essencial. Em primeiro lugar, respeito integralmente a sua diferente visão das coisas e celebro o facto de vivermos num país livre que nos permite, a um e a outro, a expressão frontal dessa diferença. Em segundo lugar, o meu respeito pela sua opinião implica que lhe reconheça uma absoluta paridade de registo e, portanto, aceito o que diz enquanto interpretação diversa mas não lhe reconheço omnisciência capaz de ensinar aos demais a verdade definitiva…
Dito isto, acrescento que não acompanho o que diz em várias vertentes. Não o acompanho quando imputa ao protesto dos professores uma agenda unívoca: bastava ouvi-los, no sábado, ao acaso, nas entrevistas dadas às televisões e às rádios, para se perceber a multiplicidade de razões que ali os convocavam. Não o acompanho quando generaliza a censura que dirige a 30 anos de responsabilidades e demissões dos professores: acredito que houve péssimos professores, com culpas maiores no estado das coisas, mas conheço exemplos muito, muito positivos de acções concretas que, protagonizadas por professores empenhados e sérios, têm vindo a anunciar a possibilidade de fazer melhor nas nossas escolas. Não o acompanho quando focaliza nos professores a sua crítica e esquece, por completo, as responsabilidades históricas da 5 de Outubro, na minha opinião principal promotora do descalabro. Não o acompanho quando parece só ver virtudes nas actuais propostas governamentais, já que não posso deixar de distinguir (e aqui adiro incondicionalmente ao balanço de António Barreto, no Público de ontem) entre o acerto de medidas como o director da escola e os três anos das colocações e o desnorte da avaliação ou do regime de faltas dos alunos.
Actualmente a espuma dos dias interessa-me muito pouco. Anda tudo demasiado rasteiro. Ora, na Educação, vejo algo profundo e perene. Aliás, creio que o actual protesto assume isso mesmo. Ou não reconhece, Luís Lavoura, a enorme diferença entre estes 100.000 e os que reagiram, ao tempo, ao congelamento das carreiras (Lei 43/2005, de 29 de Agosto)?
E termino, sossegando-o. Jamais quis “puxá-lo para o meu lado”. A si ou seja a quem for. Por mim, apenas contribuo para o debate. De forma séria, responsável, livre e tolerante. Exprimo ideias e argumentos, confiando que os outros façam o mesmo.

Post Scriptum – A minha irmã foi referida como recurso literário, qual sinédoque, para ilustrar a imensa massa de gente que pela primeira vez saía à rua. Tudo o mais é incompreensão sua.

Sofia Galvão disse...
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