sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Uma Memória (Parte III da Trilogia do Fumo)

Há muitos anos atrás, numa noite lisboeta, fixei-me numa mulher pela forma como fumava.

Tinha os dedos compridos e umas mãos finas que saíam das mangas meio arregaçadas de uma camisa branca. Branca, no meio de toda aquela escuridão.

Parece hoje (em horário pós laboral).

Um braço em L, com a mão em concha, suportava o outro, pelo cotovelo. Este, o direito, num vai e vem, lento e ritmado, permitia-lhe fumar. A cabeça, quase quieta, descaía para trás.

O corpo estava de lado e entre os pés e a cabeça, apesar de aprumado, subia (quase) em caracol.

Ela, com o corpo desenhava; eu, com os olhos mirava. Uma obra-prima em (ligeiro) movimento.

Um espanto.

Imagem mais nítida e mais forte só a da primeira vez que vi a minha Mulher. Mas essa é outra história.

Curiosamente, sem fumo. Mas com fogo.


2 comentários:

Manuel S. Fonseca disse...

Posts destes são incomentáveis. Tenho para a troca, uma história de "coming of age". A minha primeira "visão", sem fumo, caía o rápido pôr do sol tropical no cais do porto de Luanda que era o reino do meu pai, foi a de uma espécie de Monica Bellucci, debruçada na amurada de um paquete italiano que uma vez (a única vez)ali passou. Tenho até hoje a ideia fixa de que chorava. Desgosto de amor? O peso intolerável do húmido calor africano? Fiz, pouco depois, 12 anos e nem a forte miopia que me detectaram fará recuar um mílimetro a certeza de que essa mulher mais velha e experiente olhou, por um segundo, com intensa ternura para aquele miúdo branco vagabundo em cais africano.

JP Guimarães disse...

Afinal, sempre serão comentáveis - e ainda bem... A minha visão era mais nórdica mas se fosse do "tipo" Mónica Belluci teria ficado igualmente na memória (com ou sem fumo). Aliás, e curiosamente, a Ava Gardner, a que eu fiz referência no meu primeiro post e o Manuel no seu último, poderá ter na Belluci uma versão actualizada para a Geração de 60.