sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Cinema como pós-Arte (1)

Num escrito de 1965 , Agustina Bessa-Luís apresenta o cinema como “uma experiência alugada”, uma substituição da afirmação própria que se deixa “interpretar ambiciosamente pelos profissionais da imaginação” e em que a transição da infância e da adolescência para a maturidade é um processo que vai libertando o homem de uma fase de espectador dos seus desejos num condutor do seu destino, sendo que isso, o afasta do cinema.

Importa perceber, reconhecendo esse processo de substituição do real pelo virtual, de que modo os heróis da infância e da adolescência foram adaptados, convertidos ou criados num novo paradigma, para responder à necessidade, por um lado, da indústria cinematográfica, por outro, ao potencial de manipulação do real que o virtual trouxe à cultura do século XX e, por fim, a uma nova forma artística. A necessidade da indústria criou o cinema como entretenimento; o potencial manipulador criou o interesse político pelo cinema; e a necessidade artística exprimiu-se numa forma de expressão que apesar da dependência de um intermediário, que é a máquina, desenvolve um discurso de ideias que absorve e utiliza de algum modo todas as outras artes.
Não obstante esse aproveitamento das outras artes, o cinema, é sempre pela sua génese e pelo seu resultado, um processo de substituição do real pelo virtual, senão mesmo pelo irreal, e está por determinar, se a sua capacidade de responder ás várias idades do homem e a várias motivações, não fará dele o que sempre foi para a criança e para o adolescente: um modo de viver outras vidas que não a vida própria, a procura de construção de uma outra realidade que não existe nem existiu.
Perguntamo-nos: E não será essa a realidade, ou a natureza, do romance e da pintura, do teatro ou da escultura, da poesia, etc...? Não nos parece. E não nos parece porque todas as artes constroem o seu corpo numa linguagem e numa expressão que não se desenvolvem no registo visual e físico do que tomamos por real. O cinema, ao contrário, mostra uma aparência e uma verosimilhança com a vida real como se a tivesse registado num momento em que tivesse acontecido. O cinema mostra-nos as mesmas imagens com que vivemos a nossa própria vida. Não é uma proposta de imaginação da realidade a partir de palavras como a literatura ou a poesia, ou a partir de sons como a música, é antes, o produto da imaginação servido como imaginado e não o a imaginar. E, por isso, provoca a substituição do real pelo virtual.
Os graus de substituição, como vimos, acompanham o grau de “crença” no que é exibido, e se atendermos no poder hipnótico da televisão podemos compreender como a sequência das imagens se pode apoderar de qualquer pessoa desprevenida.
No cinema, muito antes da televisão, o factor propagandístico revelou o seu poder intrinsecamente manipulador e, como acontece com muitos cineastas, é fácil fugir a uma forma estritamente artística e filosófica, para cair na manipulação das ideias, sobretudo, através dos sentimentos. Esta queda na manipulação dos sentimentos é uma marca que nem o cinema de autor afastou da transparência e limpidez da obra de arte, mesmo da mais complexa e erudita.
Todas as artes caiem nesta conveniência da manipulação, seja dos sentimentos (o que é mais fácil e óbvio porque é o domínio a que as pessoas em geral aderem), seja das premissas de um discurso lógico-linguístico dirigido para o pensamento comum ou ingénuo que arrebanha unanimidades e ganha direitos de cidadania.
Todas as artes têm uma fase heróica. Diria, até, que todas as novas fases dos movimentos artísticos têm (mesmo escondidas num discurso legitimador, por exemplo, Alberto Sartoris a justificar a arquitectura funcionalista como libertação da mulher do trabalho caseiro) um fundo essencialmente artístico. Passado o período de afirmação, o carácter “tratadístico” com um programa “fundador”, vai-se degradando em “produtos” sociais e gregários que dissolvem a sua força inicial e o seu poder de renovação, generalizam-se, divulgam-se e a intenção poética degrada-se na manipulação política e economicista.
No cinema, desde a intenção quase “experimentalista e científica” de puro registo, até à possibilidade de reescrever a história unilateralmente, sempre a ideia de substituição esteve e está presente. Primeiro, quando o tal puro registo, por exemplo, os trabalhadores a sair de uma fábrica num plano estático (sem movimento da câmera) vem introduzir a substituição da memória individual e de tradição (a que se transmitia por palavras ou imagens veiculadas pessoa a pessoa) por um registo físico e mecânico a que para sempre poderemos recorrer. Todavia, esse registo, altera a história e o conhecimento da história, porque isola factos, descontextualiza-os em relação à sua intimidade e induz uma verosimilhança discursiva que é difícil para quem observa desmentir. Segundo, se num acontecimento tão insignificante, um simples registo, pode afastar do real e substitui-lo por uma ficção que parece real, então, quando o mesmo registo se organiza, ou é montado numa sequência de registos, podemos perceber o potencial de substituição da realidade que existe por uma virtualidade carregada de verosimilhanças indutoras de ficções e efabulações.
O reconhecimento destas características intrínsecas do cinema: primeiro, a ideia de registo; e, depois, do processo de substituição do real pelo virtual ou já irreal, importa apenas para que a consciência não seja vencida pela escuridão que elimina a distância entre o espectador e a personagem. Ao contrário do teatro, em que o plano que separa o público do palco é um “espelho”, quer dizer, cada um no público está a imaginar-se a si mesmo a partir do que os actores fazem, sobretudo a partir das palavras que os actores fazem nascer, no cinema, o processo é o contrário, o escuro é uma anulação da distância e o espectador incauto é sugado pela tela onde as figuras que desfilam lhe estendem a mão e o levam a passear no jardim da irrealidade. O cinema induz o esvaziamento do indivíduo, enquanto o teatro o enche e o faz reflectir.
Em todas as artes o espectador é activo porque recebe um convite à reflexão e a apreciação da obra de arte exige a recriação imaginativa do próprio. Quem lê, imagina o que está a ler. Participa. No cinema quem vê adere, ou não. Mas não precisa de imaginar. O que há para imaginar apresenta-se-lhe já imaginado. Substitui-se a realidade.

1 comentários:

Gonçalo Pistacchini Moita disse...

Meu caro João Luís,
Gostei de ler. Fez-me pensar. Não sei, no entanto, se essa ilusão segundo a qual a representação se confunde e/ou transforma no real é exclusiva do cinema. Lembro-me, por exemplo, do engenhoso cavaleiro Quixote da Mancha, que justamente representava aqueles - muitos - para quem, naquele início do século XVI, o real era o que liam nos livros de cavalaria. Nesse sentido, a tua denúncia é a de Cervantes, pelo que estás muito bem acompanhado.
Mas talvez que o que, de um modo geral, se passa hoje no cinema, não seja muito diferente do que se passa no mundo dos livros, da pintura, da música... isto é, a sua submissão a uma cultura do entretenimento, por oposição a uma cultura do ser, na qual a arte verdadeira, boa e bela se dá.
E continua a dar-se, hoje também. Não sendo eu um especialista - bem longe disso -, considero os filmes Habla con Ella e Babel verdadeiras obras de arte! Tal como o retrato de um cristo de El Greco que vi no Museu do Prado! São obras belas, fortes, verdadeiras, que nos dão sempre que pensar.
Choca-me, porém, no que julgo estaremos completamente de acordo, a ideologia subjacente à maioria dos filmes americanos, que faz com que no fim de cada filme um qualquer personagem expressamente nos diga qual é a moral da história, enquanto voltamos a ligar o telemóvel e acabamos as pipocas. Sou, de facto, contra tudo o que impeça de pensar. E há muito quem hoje nos queira massificar e use, de facto, o cinema para isso. Com enorme sucesso, aliás. Mas a arte é própria do homem e aqui e ali desponta e faz pensar!