terça-feira, 25 de dezembro de 2007

De novo, em Belém...





Este ano fui a Belém. Desse dia, lembro tudo. A emoção inteira do lugar.
Mas, hoje, à distância de muitos quilómetros e vários meses, por alguma razão, lembro, em especial, o peregrino solitário que, indiferente a tudo e a todos, se aninhara a escassos metros da estrela polida de beijos, junto da pedra que simboliza o suposto local da manjedoura.
Loiro, alto, muito magro, podia ser alemão, holandês, sueco, talvez. Recolhido no seu silêncio, entregue a um outro diálogo, a sua oração tocou-me.
No dia seguinte, reencontrei-o em Jerusalém, agora no Cenáculo, lá no alto do Monte Sião. A mesma atitude. Dobrado, calado, absorto. Num canto, afastado, completamente imune à agitação envolvente. Sem horas. Com todo o tempo.
Estou certa de que não me viu. Não terá a mais pequena ideia de alguma vez ter partilhado a minha circunstância. E, no entanto, a verdade profunda e serena da sua celebração marcou o meu caminho. Da incarnação à eucaristia, da eucaristia ao pentecostes.
Onde estará ele, neste Natal? Provavelmente, tal como eu, de novo em Belém.

2 comentários:

Madalena Lello disse...

Durante vários séculos, (XIV, XV, XVI), a temática religiosa predominou na pintura Europeia. Das ofícinas da Flandres, às ofícinas da Toscana, Florença...às ofícinas de Viseu, a representação da Natividade, Adoração dos Magos e Adoração dos Pastores foi tema recorrente. A Adoração dos Magos de Albrecht Dürer, c. 1504, de Leonardo da Vinci, 1481-82, de Sandro Botticelli, 1476-78, todos os três, hoje, na galeria Uffizi em Florença, à Natividade do holandês Geertgen Tot Sint Jans, 1480-85, hoje na National Gallery, onde na escuridão da noite a virgem e os anjos são iluminados pela luz divina que emana do menino, e onde a experiência do sagrado é acessível a todos, encorajando a quem observa a rezar junto com a Virgem Maria, à Natividade e Adoração dos Magos do nosso Grão Vasco, onde para o retábulo da Sé de Viseu, Grão Vasco substituiu o rei Mago negro, Baltazar, por um Ìndio do Brasil, sinal da próximidade cronológica com a descoberta das terras de Vera Cruz, são de uma beleza inspirada nos textos dos dois envangelhos de S.Mateus e S. Lucas. S. Mateus narra assim a “Adoração dos Magos, - Tendo pois , nascido Jesus em Belém de Judá, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos chegaram do Oriente a Jerusalém, dizendo : Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Porque nós vimos a sua estrela no Oriente, e viemos adorá-lo...”e S.Lucas narra assim o “Nacimento de Jesus,- Naqueles dias, saiu um edito de César Augusto, para que se fizesse o recenseamento de todo o mundo(...) Iam todos recensear-se, cada um à sua cidade. José foi também da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de Davi, que se chamava Belém, porque era da casa e família de Davi, para se recensear juntamente com Maria, sua esposa, que estáva grávida. Ora, estando ali, aconteceu completarem-se os dias em que devia dar à luz e deu à luz o seu filho primogénito. Enfaixou-o e o reclinou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem. Naquela mesma região, havia uns pastores que velavam e faziam de noite a guarda ao seu rebanho. Eis que apareceu junto deles um anjo do Senhor...que lhes disse: Não temais porque eis que vos anuncio uma boa-nova...nasceu-vos hoje um Salvador. ..”
Regra geral as pinturas ajustavam-se no interior dos templos aos espaços das capelas e dos seus altares e regra geral os planos intermédios das pinturas são anulados pelas figuras monumentais do primeiro plano e os fundos, que embora discretos prolongam o nosso horizonte visual, onde a cidade de Belém é sempre minuciosamente retratada, segundo o imaginário de cada um.
Nada substitui quem vai a Belém, “a emoção inteira do lugar”, mas em Belém, junto ao local onde se julga ter nascido Jesus, aparelhos de reprodução mecânica, vídeos, câmaras fotográficas...deveriam ser proibidos, para deixar prevalecer no imaginário de quem nunca aí foi, como eu, a beleza e o mistério do lugar, deixados na pintura dos mestres antigos.

Sofia Galvão disse...

Sabe, Madalena, eu acho mesmo que "a beleza e o mistério do lugar, deixados na pintura dos mestres antigos" permanecem incólumes a qualquer video ou fotografia. Como, aliás, permanecem incólumes à imagem que fica de uma visita e à "emoção inteira do lugar" que se guarde vida fora...
O que se vê - como o que se fotografa ou filma - é o que lá está. E o que lá está é absolutamente extraordinário como testemunho de culto e devoção. Camada sobre camada, época sobre época, no convívio de vários ritos, o que lá está é memória e presença viva da humaníssima capacidade do sentido religioso. É cultura, é história, é um legado construído, positivo (e, nesse sentido, material) da relação interpessoal com o transcendente.
Mas não é, em nenhum momento, uma recriação - ou, sequer, uma interpretação - da noite estrelada de Belém, entre pastores, na pobreza e na disponibilidade dos mais simples, aguardando a visita dos que se aperceberam do mistério, dos anónimos aos magos. Essa verdade, para quem for capaz dela, fica no coração de cada um, muito próxima da inspiração dos mestres antigos...