sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Espaços euclidianos I






A época deslumbra-se com coisas excitantes. O mundo é estranho, tudo foi posto em casa. Tudo é «relativo», esboroado, em decomposição. Vejam-se os espaços não euclidianos. O espírito popular gosta de se comprazer nestas ideias de decadência, de picante, e devemos deixar às tradições populares o seu folclore.

Mas eu, que me comprometi a falar entre adultos, continuo no meu trajecto de falar seriamente, ou seja, com algum humor, sobre questões sérias.

A ideia de dissolução não atravessa apenas os aspectos mais próximos da cultura popular, na sua versão antropológica, sociológica, mesmo histórica. Quer-se dominante também nos mais sólidos recantos do pensamento humano, e por isso compraz-se em encontrar na matemática a mesma tendência.

Seja. Vejamos por isso mais uma pegada do selvagem, como ela desarruma os caminhos.

O primeiro problema é que a ideia de espaço euclidiano… não é euclidiana. Isto porque a ideia de espaço não é euclidiana. Se bem me lembro, Euclides fala de «chora», de lugares, mas nunca de espaço. O que é então esta ideia de espaço euclidiano?

Para começar, baseia-se na ideia de um espaço absoluto e de um tempo absoluto. A ideia é de Newton, mas não é inocente. Newton não precisava dela para nada na sua física. A prova é que Leibniz não precisou dela. A ideia de Newton não é de Newton: é aristotélica. Como todos os grandes revolucionários, Newton insistiu fortemente num ponto reaccionário, faz renascer um arcaísmo, o da física de Aristóteles.

A segunda ideia é a de que este espaço é infinito. Aqui a ideia já não é aristotélica, mas cristã. A ideia de infinito como centro positivo do pensamento é cristã, vem de desenvolvimentos da patrística. Demonstração também em tempos já feita.

A terceira ideia é a de que este espaço é um cubo infinito (pode ser uma esfera ou um cilindro, mas a ideia central é a de um cubo) onde são embebidas coordenadas que têm um ponto zero arbitrário. A partir daí as figuras são construídas por referência a essas coordenadas. A geometria euclidiana é objectual: estuda uma figura geométrica em si, ou a relação entre figuras geométricas (com as cónicas, por exemplo). Não contextual. Esta ideia contextual da geometria não é euclidiana, vem de Fermat e de Descartes.

Só o quarto elemento é euclidiano: o do postulado das paralelas. Mas se bem virmos, como o estudo é contextual, em função de eixos de referência, o postulado das paralelas acaba por não ter real importância no espaço euclidiano. Quase que se torna um elemento ideológico.

O dito espaço euclidiano resulta, pois, de uma composição de elementos algo estranha:

(Aristóteles+Newton) +(Cristianismo+Patrística) +(Fermat+Descartes) +Euclides.

O dito espaço euclidiano apenas é euclidiano lateralmente. Esta construção foi sendo feita gradualmente. E para vermos este espaço claramente enunciado a verdade é que temos de esperar pelo século XIX. É precisamente na altura em que é posto a nu na sua estrutura que é objecto de discussão. Pode-se afirmar: Não era discutido, porque era o espaço natural dos matemáticos. Não é verdade. Foi gradualmente que se foi tornando assento da matemática. E é precisamente ao longo do século XIX que é tão mais defendido, quanto mais atacável parece ser. Não surgiu de geração espontânea.

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