terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O referendo inglês II

Perante esta possibilidade poderíamos concluir que o cenário oposto seria consolador: a Inglaterra fica na União Europeia. Será assim? Lamento afirmar que não.

 

Há três possibilidades: a Inglaterra obtém excepções substanciais, obtém vantagens meramente formais ou não obtém vantagens nenhumas com a negociação que pretende fazer com a União Europeia. Os cenários são diversos mas têm um elemento comum. Seja qual ele for, a Inglaterra não ficará satisfeita.

 

Em 1975 já houve um referendo inglês sobre o mercado comum. Nessa altura até a senhora Thatcher foi a favor da manutenção da Inglaterra na então CEE. O povo inglês disse sim… e não ficou mais satisfeito. Por isso, seja em que caso for, caso a Inglaterra se mantenha, apenas adiamos um problema. Os ingleses ficarão insatisfeitos. Thatcher votou a favor, Cameron fará o mesmo… e depois mostrará a sua insatisfação, como a sua predecessora.

A diferença entre as possibilidades não se centra portanto no facto de os ingleses nada terem do que querem, só terem migalhas ou terem efectivos ganhos. Na perspectiva da Europa, fazer concessões será relativamente indiferente quantos aos efeitos e será uma perda de autoridade. A mudança dos tratados para acomodá-los a um membro já antes pleno, exigirá os custos normais da modificação de tratados… e para ficarem piores.

A diferença estará eventualmente na postura da Inglaterra caso consiga vantagens substantivas. A que mais se refere neste momento é a da restricção da liberdade de pessoas. Não deixa de ser curioso que quem defende uma Europa democrática queira restringir a liberdade das pessoas. Não quer uma Europa mais próxima dos cidadãos, mas mais longe… para poder dizer que não é democrática. Na política externa haveria uma mudança evidente. A Inglaterra que em tempos foi paladina da adesão turca voltará a sê-lo. Durante anos tinha esperança que os turcos fossem para a Alemanha ou para a Bélgica e por isso era entusiasta. Bastou ver romenos e polacos entrar em grande número em Inglaterra para esfriar o seu entusiasmo. Estando liberta da livre circulação. Far-se-á de novo paladina da adesão turca. A Inglaterra adora os turcos… lá.

Vantagens substantivas dadas aos ingleses teriam outro efeito pernicioso. Outro país que queira modelar a Europa à sua imagem deixará de pensar duas vezes antes de o fazer. Mas também mostraria que há países de segunda e de primeira. A Inglaterra, porque é grande, poderia ter um regime especial, países pequenos não poderiam negociar. A humilhação dos pequenos países não seria pequena. Mais uma vez por força do Reino Unido.

 

Concessões substantivas seriam uma desautorização do projecto europeu. Vantagens formais seriam uma farsa que não enganam ninguém. Vantagem nenhuma humilharia os ingleses (embora de seu exclusivo feito) e reforça a autoridade da União Europeia.

Avento apenas uma hipótese para reflexão. E se desde logo ficasse claro que não há qualquer renegociação? Que quem celebrou o contrato, se quer estar que esteja, se quer sair que saia?

Como vimos, a manutenção da Inglaterra trará sempre insatisfação britânica. Que perde realmente a Europa caso a Inglaterra saia? Não será de pensar que perdem bem mais os ingleses saindo que nós perdendo a sua participação?

Lembro de novo, a hipótese não é agradável, mas a hipótese de ficarem também se anuncia infernal.

Admito. Pode-se dar o caso de eu ter fundamentos caracteriais para colocar esta hipótese. Parece-me muito malcriado estar sempre a ameaçar divórcio. A lassitude instala-se no casamento. Se não estás feliz, por favor sai para que o possas ser. Para onde podes sair? Melhor o saberás. Se para o meio do Atlântico, se para as Bermudas.

O cenário parece complexo, mas afinal simplifica-se. O que quer a Inglaterra não é uma excepção num avanço pretendido, mas pretende um recuo dos dados elementares da União Europeia desde a sua origem, nomeadamente os da livre circulação de pessoas. Já em tempos no parlamento inglês se ameaçou que se sairia da Convenção Europeia dos Direitos do Homem porque o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem estatuiu que os presos tinham direito de voto nas eleições, ao contrário do que certa legislação britânica impunha.

Aceitar um recuo seria admitir que países fascistas poderiam fazer parte da União Europeia, porque uns não queriam a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ou afinal já não queriam os princípios democráticos, ou pretendiam recuar nesse sentido. Alguns países dos Balcãs ou da Europa Central poderiam sentir essa tentação. A Grécia já tem um partido fascista na coligação governamental e vive-se bem com isso. A Hungria tenta-se, e vamos deixando tentar-se. Outros acabariam de vez com a livre circulação de pessoas, outros quereriam fraccionar o «acquis communautaire». Haveria para todos os gostos.

As excepções até ao momento, os chamados «opting out», ocorreram sempre em relação a avanços na integração. Admitir renegociações com a Inglaterra, por mais irrelevantes que fossem os temas renegociados, seria desautorizar toda a construção europeia.

 

Mas, e já o vimos, seja qual for o resultado, a consequência na Inglaterra seria sempre a mesma: caso ganhe o «sim» a estada na União Europeia, a Inglaterra manifestará a sua insatisfação. E precisamente da parte dos que votaram «sim» e dos que fizeram propaganda por ele. Isto simplifica-nos a vida. Se conceder não gera nenhum ganho, há todo o ganho em nada conceder. Não concedamos nada, pois. Deixemos à Inglaterra a liberdade das suas decisões, e a liberdade das suas consequências. Quer sair? Que saia? Digo isto sem acrimónia nenhuma. É de seu direito, é de seu destino. A sua coerência exonera-nos. Sempre insatisfeita, dá-nos o direito de nos ser indiferente a sua insatisfação. Ao menos que não estrague o que não fez.

Concluamos: sendo sempre o resultado o mesmo, ficamos livres de decidir. A sua insatisfação liberta-nos. Que seja crescida e faça o que quiser. Nós faremos por nossa vez o que queremos. Que não nos seja concedido, nem pela forma. Que não concedamos, nem pela forma. Ambos ficaremos assim satisfeitos, finalmente. Porque ambos queremos ser livres na nossa vontade.

Dando-se o caso, que fiquemos calados. Que os políticos europeus apenas digam, «que se respeite a vontade do povo britânico». À volta que se estenda o silêncio. O respeito e a indiferença podem em alguns casos conjugar-se. Em vez de coro que tenhamos meditação. Da minha parte falo agora para melhor estar a vontade para me calar depois. Quando a matilha se puser a ladrar já podermos estar instalados nos nossos cavalos.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

(mais)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O referendo inglês I

Anuncia-se portanto o referendo inglês. Compreendem-se as necessidades de curto prazo de natureza eleitoral do governo inglês ao fazer essa promessa – afinal queria ganhar as eleições. «Paris vale uma missa». Seja. Mas qual vai ser o cenário que se segue?

Dizem boas ou más-línguas que o senhor primeiro-ministro britânico vai apoiar o «sim» à permanência na União Europeia, e que em suma apenas faz o referendo para que o povo britânico se possa pronunciar. Seja, igualmente.

Mas como velho aprendiz de feiticeiro do nosso Goethe, talvez esteja a mexer em fenómenos que o ultrapassam. O custo de uma vista curta pode ser um problema longo.

Vejamos então os cenários possíveis: ou ganha o «não», ou ganha o «sim». Em suma, ou a Inglaterra sai da União Europeia, ou não sai.

Se a Inglaterra sair, e então? Não é bom para a União Europeia, é certo. Perde dimensão, fica uma ferida mais a juntar ao problema grego. Nada na vida é só bom ou só mau. Seria ridículo dizer que a saída da Inglaterra seria inócua para a União Europeia. Tem tido um papel muto importante na maior integração europa, nem que seja por contraste. Os países mais eurocépticos, perante o exagero britânico, tendem a afastar-se desse rumo e ficam mais eurófilos. Mas a verdade é que a União Europeia não perde a sua capacidade de expansão. Há ainda países dos Balcãs e eventualmente pode centrar as relações com a Rússia. A vida coloca problemas, mas dá soluções. E o peso que tem a Inglaterra na União Europeia não é comparável com o peso que a União Europeia tem no Reino Unido.

Mas que custo teria o Reino Unido? Em termos internacionais, a aliança privilegiada com os Estados Unidos poderia ficar efectivamente incólume (com todos os seus malentendidos e ressentimentos, é certo), mas um dado duro, frio, objectivo, impor-se-ia: o Reino Unido sozinho não teria peso bastante para ser parceiro significativo dos Estados Unidos. Manter-se-ia como aliado, mas a União Europeia em proporção seria um aliado bem maior, mais estratégico, mais relevante. A vida é dura e cada um tem o tamanho que pode. As relações com a Europa não terminariam, mas o Reino Unido perderia direito de voto na regulação europeia e, sendo muito mais pequeno que a Europa, acabaria por ficar bem mais dependente do que outros decidissem que se estivesse dentro a União Europeia. Para um país que, não entrando no euro, queria ter lugar marcado no directório do euro caso entrasse, seria rude golpe.

Lançando-se numa expansão mais livre na aparência, apenas somaria a uma maior irrelevância do lado esquerdo a uma maior submissão do lado direito.

Internamente tal saída não sairia de graça para o Reino Unido. Os escoceses deixaram bem claro que se querem manter na União Europeia. Tendo a Inglaterra dado o exemplo, um futuro referendo escocês não seria tão certo a favor a manutenção da União britânica, desde que a Europa não colocasse entraves à adesão da Escócia, como antes fez. O País de Gales, mais pobre e mais explorado (não são nunca os mais fracos quem reclama, já o sabemos), poderia começar a ver-se tentado pela solução escocesa. E a longo prazo teríamos uma Inglaterra reduzida ao que é: Inglaterra. O que não é nada mau, mas é pouco no mundo actual.

Mas nas zonas que não fariam secessão o mal-estar aumentaria. O Norte de Inglaterra, mais pobre, poderia começar a levantar problemas, e a insatisfação social e as divisões regionais poderiam acentuar-se.

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