segunda-feira, 21 de julho de 2014

Tinha Jesus irmãos?


Tinha eu lido há uns tempos atrás um livro de um senhor chamado Bernheim (BERNHEIM, Pierre-Antoine, Jacques, Frère de Jésus, Albin Michel, Paris, 2003) que dava como certeza absoluta vários factos :

a)      No contexto da Palestina em língua grega o conceito de irmão era forçosamente de irmão de sangue e não em sentido figurado;

b)      Em consequência, Jesus tinha irmãos de sangue, e não irmãos de sangue apenas de São José; do lado de Maria também.

 

Até aqui não vejo problema. A tese é conhecida, já muitas vezes defendida. O problema da conclusão é que assenta numa premissa algo apressada.

 A vida tem destes acasos. Por coincidência li entretanto um livro de uns senhores chamados Roger S. Bagnall e Raffaella Cribiore, Women's Letters from Ancient Egypt, 300 BC-AD 800, (http://www.amazon.co.uk/Womens-Letters-Ancient-Egypt-BC-AD/dp/0472115065/ref=sr_1_3?s=books&ie=UTF8&qid=1399561358&sr=1-3).

 

Eis que salientam que em várias cartas entre os séculos I a.C. e III d.C. os conceitos de «irmão», e mesmo de «mãe», não significam a relação biológica forçosamente, mas de familiar, íntimo, companheiro, mesmo marido, e no caso de «mãe» pode-se tratar mesmo da escrava que serviu de ama.

Que se coloquem hipóteses históricas, bem vivo com esse facto. Tanto melhor. Venham as mais ousadas. Mas que se dê como certeza absoluta conclusão quando nem a premissa é certa já não me parece honesto.

Tenha-se em conta que:

a)      O Egipto fazia parte do mesmo espaço helenizado, fortemente helenizado, a que pertencia a Judeia.

b)      Sendo bem mais importante culturalmente que a Judeia, seria pouco plausível que os fenómenos culturais e também linguísticos que se passam na Egipto não tivessem algum reflexo na Judeia.

c)      Embora não se possa retirar uma relação necessária entre o que se passa no Egipto e o que se passa na Judeia, e embora os anteriores argumentos já sejam por si mesmo fortes, a verdade é que não se pode afirmar que «irmão» em grego na época e na região é, e sempre, irmão no sentido carnal.

d)     Ainda menos se pode afirmar que significa filho do mesmo Pai e da mesma Mãe.

Este é mais um dos casos em que vemos que, em vez de estudo, temos uma imposição. É-nos imposta a conclusão, contorcidas as fontes, relegadas a segundo plano as provas e a sua problematicidade. O autor, o tal de Bernheim, não gosta de problemas, não gosta que estes sejam colocados. Como quem cauteriza uma ferida, fecha-os, fecha-os de forma que julga definitiva. 

Venham elas a provas, venham elas a discussões. Tanto melhor. Quantas mais melhor. Mas que o sejam. Prefiro estudos a proclamações públicas afixadas nas paredes dos teatros. A ciência não se faz por edital.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

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segunda-feira, 7 de julho de 2014

A Inglaterra quer sair da União Europeia?


E lá temos mais uma vez uma birra: a Inglaterra ameaça de novo sair da União Europeia porque não gosta do novo presidente da Comissão. Porquê? Porque este seria demasiado federalista e porque a Inglaterra pretende uma reforma profunda das instituições comunitárias. Já ouvimos esse discurso muitas vezes.

Vejamos o que retirar deste discurso.

Em primeiro lugar, a Inglaterra quer uma União Europeia à sua imagem. Di-lo, pelo menos. Mas tem-na. Nunca as instituições europeias tiveram tanta influência britânica, e, por esta via, americana. A desregulação dos mercados, sobretudo os financeiros, os temas do multiculturalismo, as questões fracturantes, a língua inglesa, a discussão em sede laboral, não dos direitos sociais e económicos dos trabalhadores, mas dos direitos morais, como a protecção das minorias sexuais e étnicas. Que os trabalhadores sejam explorados no seu conjunto não é grave, são as leis do mercado, mas já que se descrimine o travesti que vai de penacho trabalhar numa funerária isso não se pode admitir.

Na perspectiva da imagem a Inglaterra nunca teve uma imagem tão forte, nunca a sua presença simbólica foi tão forte. Blair apagou Jospin, Schroeder. Os países da Europa central e do leste que entraram de novo foram endoutrinados pelo padrão anglo-americano. Os próprios ingleses tinham noção de que os anos 90 foram uma «janela de oportunidade» como agora se diz, que tinha de ser aproveitada.

Os presidentes da Comissão foram escolhidos pela Inglaterra que, desde que apareceu um Delors (anormalidade num cargo que deveria ser de um alto funcionário), que se assustaram com a possibilidade de um presidente da comissão forte, e por isso escolheram progressivamente o mais medíocre e fraco que puderam.

Mas este quadro inglês tem muitas fissuras.

Em primeiro lugar, é precisamente este conjunto de instituições europeias que mais suscitam o desprezo inglês. Nunca as instituições europeias estiveram tão próximas do modelo que pretendiam e nunca foram tão vilipendiadas. Antes não eram amadas, mas temidas. Hoje em dia, basta para isso ler os jornais ingleses, são desprezadas. É precisamente uma comissão fraca, com chefia fraca, que é objecto de desprezo pelos ingleses. O que antes os irritava suscita agora apenas condescendência.

Em segundo lugar, uma Europa à imagem da Inglaterra já existiu e foi por ela feita. Chama-se EFTA, criaram-na em 1959 e três anos depois já estavam a bater à porta da CEE, de tal forma era boa a Europa feita à sua imagem. Como Atena que deu à luz um monstro, a ideia britânica para a Europa é afinal muito pouco empírica. É uma ideia que têm na cabeça e não percebem que é ela mesmo um monstro quando concebido e saído à luz do dia. Aceitemo-lo: os países europeus não gostam da Europa à imagem da Inglaterra e nem a Inglaterra gosta da Europa cada vez mais à sua imagem.

Em terceiro lugar, o poder, junto dos países da Europa central e de leste, da Inglaterra já se enfraquece cada vez mais de dia para dia. É bom de se perceber as razões. Se a mais-valia que trazem é a relação com os Estados Unidos, estes países não precisam da mediação britânica. A Inglaterra torna-se inútil. Além disso, como a Inglaterra é muito amiga mas está preocupada antes do mais com o seu cheque e a devolução da sua contribuição, os países da Europa central e leste perceberam que dela pouco teriam a receber. Pressionaram a Suíça e a Noruega a dar mais dinheiro, e sabem que contam na hora da verdade mais com a Alemanha e a Áustria que algum dia contarão com a Inglaterra.

Em quarto lugar, o mito Blair começa a esfumaçar. A dita terceira via, que se traduzia em ter uma política apenas com uns laivos socializantes e muito discurso de preocupações sociais sem grande acção mostra-se no seu vazio filosófico como puro marketing.

Eis que as potências da Europa continental conseguem colocar no centro do conselho europeu um homem do centro e agora na comissão europeia se anuncia o mesmo. No fundo, restabelece-se um equilíbrio. É a mesma Inglaterra que tanto se vangloria da sua soberania nacional que se quer impor às outras soberanias. E começa a deixar de o conseguir fazer.

Da parte que me toca teria muito a dizer sobre esta personagem que pretendem colocar na comissão europeia. Nem tudo bom, nem tudo mau. Mas um facto não pode ser esquecido. Numa relação, quem está sempre a ameaçar que sai é infantil e malcriado. A Inglaterra merece mais, merece-se mais. Um divórcio não se ameaça: anuncia-se e executa-se. É de bom-tom, é adulto e bem-educado. Quando muito invoca-se a possibilidade para resolver de vez o problema: ou mantendo o casamento e nunca mais falar dele, ou acabando de vez com o matrimónio.

O que a Inglaterra não percebe é que de tanto ameaçar que se vai embora as pessoas vão-se habituando à ideia. Não a executando, perde credibilidade. Executando-o, perde impacto. Parcimónia, como tão bem lembrou um pensador inglês tão esquecido dos ingleses, Ockham. Parcimónia é sinal de bom gosto, e bom senso.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

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