segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

As polémicas de Dawkins


O conhecido biólogo Richard Dawkins tem-se especializado na polémica nos últimos anos. Escusado será dizer que lhe assiste alguma parte de razão. Depara-se com fundamentalistas cristãos folclóricos que fazem os dinossauros conviver com os humanos, que defendem e forma acrítica a ideia de desígnio inteligente, que procuram na Bíblia ou no Corão a verdade científica. A sua irritação é compreensível em muitos aspectos, porque as insuficiências filosóficas dos seus oponentes são evidentes.

Aquilo de que não se apercebe o próprio Dawkins é que as suas insuficiências filosóficas não são menores. Em vez de clarificar conceitos enlameia-se em equívocos e insuficiências críticas. De um lado e do outro, o debate é pouco original, enfadonho, e repete a mais de um século de distância o que já se tinha visto no século XIX. Que um lado e outro repitam a polémica apenas mostra que a arrogância em relação aos nossos antepassados, que nos leva a ter a presunção de que os ultrapassámos deixa muito a desejar.

Vejamos cada uma destas limitações de Dawkins por sua vez.

O seu ateísmo militante. Que uma pessoa seja ateia militante é de seu direito, não o vou negar. Mas o ateísmo sofre de uma insuficiência lógica de que nem ateus nem crentes nem agnósticos se apercebem. O que diz um ateu? Deus não existe. Para que esta asserção seja verdadeira é necessário que se esteja a dizer «eu vi toda a realidade e não estava lá Deus». Logicamente. Admitir que se viu toda a realidade futura e presente e fora do tempo se a houver, saber precisamente o que não existe, é no mínimo temerário. Um ateu entende que pode ignorar a existência de um verme, mas a existência de Deus não ignora. Sabe tudo sobre ela. Que não existe.

O agnosticismo pode ser uma espécie de snobismo e não com mais base lógica, é certo. Vittorio Messori lembrava que na sua juventude a moda em Itália era a de se ser agnóstico, e ser ateu era visto com maus olhos, como uma forma de intranscendência ingénua. Neste caso, embora o agnosticismo não padeça do vício lógico do ateísmo, tem ainda menos fundamento, porque é pura pretensão social.

Dawkins tem ao menos a frescura de, numa época que faz renascer espiritualidades desencontradas ter um projecto, um evangelho cheio de certezas: Deus não existe, a ciência é a base do diálogo humano.

Ora é precisamente por misturar estas duas ideias que Dawkins mostra mais uma inconsistência lógica. A ausência de Deus e a ciência não se implicam mutuamente. E mais outra: que a ciência seja a base do diálogo humano é inverter a ordem das prioridades. 

Vejamos mais uma vez como Dawkins mistura conceitos. A ciência nada diz sobre Deus. Os seus ensinamentos tanto podem ser usados a seu favor como a seu desfavor. O mecanismo é simples. Em desfavor os que se quedam pelo que a ciência diz. É evidente que não fala directamente de Deus, senão não seria ciência. Seria difícil pensar que Deus é inversamente proporcional ao quadrado de seja o que for. Em favor, os que salientam para onde a ciência parece apontar, para as suas últimas motivações.

Entra aqui outro vício de Dawkins. Não apenas se deixa absorver pela simples polémica, sempre com o mesmo inimigo, o fundamentalismo religioso – o que pode ser sensato em certas épocas, nem digo se na nossa, mas é sempre limitado – como mostra ignorância filosófica e falta de sentido crítico.

Luta contra o desígnio inteligente como cavalo de batalha do fundamentalismo religioso. O problema (dele e dos fundamentalistas) é que esta tese é pagã e não cristã. Está a atacar o que julga ser cristão quando não o é, e outros a definir o que julgam ser cristão e não o é também. O desígnio inteligente encontra-se em Aristóteles e Galeno, bem antes de ser teorizado pelos cristãos. Nesse sentido, Dawkins está no mesmo plano crítico que os fundamentalistas. Ambos acreditam na mesma premissa... falsa.

O desígnio inteligente, ou melhor a ideia de finalidade, não é por outro lado, exclusivo de crentes ou pagãos. Mach reconhecia nem que fosse um resíduo de teleologia na biologia. Da mesma forma o princípio da acção mínima na física configura um pressuposto finalístico. Dawkins socorre-se de uma certa forma de ver a biologia, e não a única, nem de ver a biologia e muito menos a ciência.

Por outro lado, de tanto se sentir na necessidade de defender Darwin caba por se transformar num exegeta de uma nova Bíblia, «A Origem das Espécies». É bem sabido que a obsessão com o inimigo nos torna similares a ele e Dawkins começa a tornar-se uma espécie de tele-evangelista do Middwest americano no seu tipo de argumentação (embora com mais bela pronúncia).

Outro vício em que cai é do é o de que, por ser detentor de uma ciência, se julgar detentor da ciência como um todo. O conceito de biologia é romântico, o impulso da teoria da evolução é em grande medida cristão, como resultante do Hapax, e romântico (como Gusdorf mostrou) e Dawkins, como desconhece a origem da própria ciência que cultiva, esquece-se disso. Como Bergson repetia os românticos sem o saber, também Dawkins o faz. Mas, ignorando outras ciências como a física e a matemática, não se apercebe até que ponto nestas últimas os problemas teológicos se encontram na fronteira dos próprios problemas científicos. Cantor e Heisenberg são bons exemplos deste encontro. Dawkins julga falar em nome da ciência, mas fala apenas em nome de uma ciência. A biologia. Das outras pouco mostra saber, e por isso não percebe que o seu argumento é limitado.

Em acréscimo, esquece-se que a necessidade positivista surge sobretudo em ciências recentes e mais inseguras. Houve grandes biólogos e químicos positivistas, mas não se podem encontrar muitos exemplares de grandes matemáticos e físicos positivistas. Kronecker e Kelvin poderiam ser dados como exemplos talvez, mas se foram competentes, e esse mérito ninguém lhos retira, estão longe de ser os maiores representantes nas respectivas ciências. Kronecker teria atirado a teoria dos conjuntos e a álgebra dos transfinitos ao lixo, Kelvin decretou como menores as origens da teoria da relatividade e a física quântica. Dawkins fala como biólogo, como um sociólogo, ou certas escolas históricas ou antropológicas o poderiam fazer. Não como um matemático ou físico falaria.

Na sequência aparece outro vício de Dawkins. Julgando que a ciência instaura vidas (a atitude mais anticientífica que possa existir) resvala em todos os vícios associados a esta falácia. Espero bem que não tenha feito cientificamente amor com a respectiva mulher, porque duvido que ela daí tenha retirado algum prazer. Mas, mais importante para nós, que não fazemos amor com ele, mostra uma ingenuidade histórica confrangedora quando afirma que é por via da atitude científica e da ciência que se chegam a soluções razoáveis na sociedade. São duas coisas diversas. Que a segunda, a ciência e os seus conteúdos tenham permitido uma regulação mais razoável da sociedade, o século XX desmente rotundamente. Mas será que o método científico, usado na sociedade, gera mais razoabilidade, senão mesmo justiça social? De novo Dawkins está limitado pelos seus parcos conhecimentos de outras ciências. Se a biologia teve momentos de grande polémica, como a História, a posição proba, razoável, sensata, é sempre vista com melhores olhos num biólogo, como num historiador. Mas já um matemático ou físico não tem de ser sensato. A lista de físicos bem mais sensatos que Dirac é imensa, e todavia ele supera-os como físico. Da mesma forma, muito superior à sensatez que Galois tinha não é difícil encontrar, mas nem todos lhes chegam aos calcanhares como matemático. Não sei se a sanha persecutória de Newton faria com que Dawkins deixasse de o considerar bom cientista, mas estaria errado se o fizesse. As invejas, os conflitos, as mesquinhezes existem no meio científico tanto quanto nos outros.

Mas a limitação de Dawkins é igualmente filosófica, como se vê. A sua visão monolítica da ciência, limitada a sua perspectiva temporal da mesma, leva-o a defender como ciência, a única ciência, o que está longe de o ser, e a dar um papel à ciência que não lhe cabe se se quiser que ela permaneça ciência e não evangelho.

Entendamo-nos: Dawkins tem um papel muito positivo na nossa época em que franjas muito largas da população entre os americanos, mas e em menor medida entre os europeus, e em maior grau ainda entre os muçulmanos são absolutamente surdas à ciência e às suas implicações. Luta contra estupidez, e nisso há mérito. Apenas não luta com os argumentos mais inteligentes. Se tivesse de escolher entre os múltiplos fundamentalistas e Dawkins sentava-me ao lado de Dawkins, não teria qualquer dúvida em o fazer. Mas depois de vencidos os fundamentalistas, seria a Dawkins que me dirigiria.

Para lhe dizer várias coisas. Que o seu ateísmo se funda numa insuficiência lógica, que usa a ciência para negar Deus quando ela não O afirma nem O desmente, que luta contra moinhos de vento tão grandes quanto os seus oponentes quando ataca o desígnio inteligente, que pretende substituir um evangelho mal lido por um outro mal usado, que não pode falar em nome de toda a ciência, porque a desconhece no seu todo, que por isso pretende que ela instaure vidas, quando isso é impossível e não é sua função. E que, no fim de contas, embora útil, é apenas mais um reflexo da incultura da nossa época, em que se pode ser cientista numa área estreita sem se ter cuidado de estudar as outras. Dawkins mais que remédio é sintoma. Nisso a sua parca relevância.

 

Alexandre Brandão da Veiga

 

 

 

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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Conflito de fidelidades

É com sentimentos contraditórios que assisto à homenagem de Durão Barroso em Cáceres. Congratulo-me, sendo o reconhecimento internacional a um Português por funções prestadas a tantos Povos europeus. Mas não esqueço que o preço dessa função foi o abandono da condução dos destinos do Governo português, na condição de não haver eleições que legitimassem o seu sucessor. Resultado: mandato e meio de deriva socialista  sob uma liderança que não evitou o restage financeiro depois da crise de 2008. Também não me agrada o nome do prémio - Carlos V - dado a um Português. Sabemos que este Imperador, casado com Isabel de Portugal, preparou cautelosamente a anexação do nosso Império ao seu, onde o sol nunca se punha. Hoje, tal como há quase cinco séculos, devemos saber se esta contribuição nacional para a Europa prejudicou ou beneficiou Portugal.

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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Acredito em Sócrates

Acredito na descrição de José Sócrates sobre o jogo de Portugal com a Coreia em 1966, agora alvo de chacota em todo o País. Foi num Sábado, sim, e em Julho, durante as férias grandes. E então? Os meus cinco irmãos sempre foram para os campos de futebol e para a mata do colégio dos Maristas ao fim de semana e durante as férias para jogarem à bola e brincarem na pequena floresta que ali estava disponível, maior do que o quarto dos brinquedos. Não havia televisão lá em casa e o ar puro era melhor do que uma casa sem jardim. Ironicamente, as crianças tinham mais liberdade nessa época e não estranho, de maneira nenhuma, que José Sócrates, em plena Covilhã, continuasse a encontrar-se com os amigos no recreio da escola em vez de ficar fechado em casa. Era Julho, sim. Mas, provavelmente, os seus Pais tirariam férias em Agosto e, até lá, havia que matar o tempo numa cidade sem os pavilhões gimnodesportivos e os campos de férias de hoje. A memória de um miúdo de oito ou nove anos sobre o jogo da Coreia não engana. E os que de nós duvidamos, falamos mais de nós do que disso.

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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Simbolismo confuso

O site da CML descreve como uma «cerimónia, simples, carregada de simbolismo» a «homenagem de uma cidade» a Eusébio da Silva Ferreira. O carro parou à porta da CML, foi aberta a bagageira, assim ficou numa confusão de vereadores e bombeiros perfilados a par das pantufadas de assessoras aos fotógrafos que faziam o seu trabalho. O caixão ali estava, nem dentro nem fora do carro, porta aberta, nem dentro nem fora da Câmara. Durante longos minutos embaraçosos, sem decoro protocolar nem simplicidade, batiam-se palmas, paravam, voltavam a bater até que a trapalhice se tornou incómoda. Ninguém percebia o guião. A voz off da TV queimava os minutos daquele vazio chamado «cerimónia carregada de simbolismo». Fechada a mala, o carro seguiu, finalmente entregue à cidade.
Lembrei-me da bandeira nacional mal hasteada no dia 5 de Outubro.
Para quando uma «reforma litúrgica» na CML?

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sábado, 4 de janeiro de 2014

Quem é esta Dona Vatanca?

Navegando pela Internet cheguei há muito tempo a este site: http://www.findagrave.com/cgi-bin/fg.cgi?page=gr&GRid=8034779.
 
Nele aparece-me uma tal «Dona Vatanca», dama de honor da rainha Santa Isabel, sepultada na Sé Velha de Coimbra. Nada de extraordinário nisso, caso não se tratasse de uma princesa bizantina.
 
Que faria no século XIV uma princesa bizantina em Portugal? É verdade que a rainha Santa Isabel era aragonesa. O seu avô Jaime, o conquistador, rei de Aragão, era filho de Marie de Montpellier. Que por sua vez era bisneta de João I Comneno imperador de Bizâncio. O seu pai Pedro II, o Grande, era filho de uma princesa húngara, Yolande Arpad, neta de Pierre de Courtenay, imperador latino de Constantinopla. E Aragão manteve muito mais intensas relações com do Mediterrâneo que Portugal algum dia teve.
 
Mas que princesa era esta? Seria realmente princesa? E Vatanca? Não conheço nenhuma família nobre bizantina com este nome. A minha hipótese, meramente especulativa, é que se trataria de uma Vatatzes.
 
O imperador João III Doukas Vatatzes casou-se com Constança de Hohenstaufen, filha ilegítima de Frederico II de Hohenstaufen e da sua amante Bianca Lancia, mas este casamento não gerou filhos. De qualquer forma, Frederico II de Hohenstaufen quem era? Nada mais nada menos que o avô da Mãe da rainha Santa Isabel. Ou seja, uma tia-avó sua tinha-se casado com um Vatatzes.
 
Pode haver aqui uma objecção linguística. Como Vatatzes pode dar uma Vatanca? Em grego «C» aparece frequentemente como sinal de sigma maiúsculo. Além do mais, é comum no Leste da Europa, sobretudo entre as línguas eslavas o «c» representar o som «ts». De onde Vatanca não deveria ser lido Vatanka, mas Vatantsa.
 
Que uma bizantina esteja sepultada em templo católico também não espantaria. Desde o império latino de Constantinopla vários elementos da nobreza se aproximaram da cultura ocidental, havendo mesmo um movimento diríamos hoje em dia pró-ocidental, o dos latinofrones, cultora da cultura latina, e admiradores da escolástica. E depois, mesmo que assim não fosse, não iria ser recusada sepultura a uma ortodoxa oriental, suponho eu.

Este parece um excurso de curiosidades. Talvez. Mas não me deixa de impressionar que uma princesa bizantina se encontre enterrada em Portugal sem que ninguém lhe dê pela falta.
 
Temos também a honra duvidosa de ter em Lisboa a sepultura de Fielding, o autor de «Tom Jones». Duvidosa não pelo senhor, mas pelo preço que damos à sua memória. Segundo um cronista português, o rei Ladislau Jagellon ter-se-ia refugiado em Portugal depois da sua derrota pelos turcos em 1444. A avaliar pela experiência dos reis Carlos Alberto no século XIX e Humberto no XX, ou do imperador Karl e a imperatriz Zita, Portugal parece um refúgio digno de reis e príncipes. Mas pergunto-me se não será por eles saberem que aqui serão esquecidos.
 
Não sei quem seja esta Vatanca, nem posso asseverar que seja uma Vatatzes. De uma coisa tenho a certeza. Da pouca curiosidade portuguesa em perceber das ramificações da sua História. Os cultores da glória pátria preferem um assento estreitinho a vistas largas. E nós vamo-nos esquecendo de fazer perguntas.
 
Alexandre Brandão da Veiga

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