segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Mentir à lucidez

«Vitória, vitória, acabou-se a história». Era assim que acabava a delícia das crianças quando ouviam um conto antes de dormir.
E é assim mesmo nas eleições.
Ganhar e perder está previsto nas regras do jogo que conta votos como quem soma discernimentos e não como vagas de fundo. Quem ganha e quem perde age de acordo com este código. Não pode depois invocar singularidades, razões secundárias. Ganha o maior número, como está combinado. E esta  é a mentira da nossa lucidez de democratas.
Fernão Lopes,. nas suas crónicas medievais, falava no Povo como unidade sábia que acorria uno a fazer justiça. Como se a identidade colectiva não fosse plural.
Muitos escreveram sobre as  massas que somam sabedorias. Outros, pelo contrário, garantem que a maioria é sempre medíocre, por uma qualquer impossibilidade de generalizar a elevação, salvo em situações de perigo comum.
Sobra sempre a frase do melhor dos sistemas imperfeitos.
Ou a certeza de que quem governa os nossos dias são os nossos sonhos e mão os do olimpo eleito de quatro em quatro anos. E de que quem comanda as nossas vidas é o nosso trabalho, a nossa escolha pequena, livre, íntima. O nosso arbítrio. Inteiro.

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sábado, 14 de setembro de 2013

Precisamos da democracia?

Um conjunto de selvagens reúne-se para decidir se hão-de comer um prisioneiro. A maioria vota a favor. Como há dois que se opõem veementemente são mortos. E para festejar a decisão espancam as mulheres. Este pequeno cenário mostra que estamos a falar de uma democracia, e de uma democracia directa em cúmulo. Etimologicamente é o poder do povo quem determina a vida em colectividade. Mas isto basta-nos? Não. Porquê então achamos que esta democracia é insuficiente? É que o que designamos por democracia recolhe muitas experiências históricas diversas.
Em primeiro lugar, o próprio poder do povo, mas por via do nexo de representação. Uma ideia sobretudo grega.
Em segundo lugar, a ideia de Estado de Direito, estóica e romana na origem. Esta nada tem a ver com a democracia. Mas atravessou toda a História da Europa. O poder obedece a regras, está limitado por elas. Quem pode, quando pode, como pode. E no entanto, não concebemos democracia sem Estado de Direito, mesmo que a sua origem seja bem diversa. O império, os príncipes europeus, o papado, não concebiam a vida sem a legitimação e a limitação jurídica. E nós igualmente. Este é um traço que a democracia herdou, não criou.
Em terceiro lugar, a proibição de divinização do homem. Não concebemos prostrar-nos perante ministros ou chefes de Estado, como o grego se recusava a fazer. Era bárbaro. Sempre que existem regras de prosternação na Europa elas surgem por influência oriental. O homem europeu pode fazer reverência, mas não se prosterna. Não adora o poder, os homens do poder. A democracia recebe esta ideia e não a cria igualmente.
Em quarto lugar, a dialéctica. Mas esta ideia surge do anti-democrata Platão e não com a democracia. A democracia ateniense praticou-a, mas o seu desenvolvimento teórico deve-se a anti-democratas. Mais uma coisa que a democracia herda e não criou.
Em quinto lugar, a ideia de legitimação pelo bem comum. Ideia sobretudo helenística e cristã. Mais uma vez a democracia herdeira e não criadora.
Em sexto lugar, a tradição liberal. A protecção das liberdades de acção, expressão, reunião, associação. A tradição liberal foi quase sempre antidemocrática, e no entanto só concebemos democracia de acordo com essa tradição. Herdeira, herdeira mais uma vez, não criadora a democracia.
Em sétimo lugar, a dignidade humana. Ideia cristã, muito anterior a qualquer democracia moderna. Ainda mais uma vez herdeira.
Em oitavo lugar, a igualdade da mulher, ideia sobretudo aristocrática e régia, profundamente anti-burguesa, anti-republicana (segundo o padrão do civismo republicano).
Em nono lugar, a economia de mercado, que pode ser adjuvante da democracia, mas é igualmente um enorme problema para ela, na medida em que distribui o poder de forma anti-democrática.
Em décimo lugar, uma determinada concepção da mulher, da criança, do velho, do homem adulto e das relações entre eles que se formou com a matrona romana, o cristianismo, e igualmente a senhora medieval.
A democracia constrói-se sobre muitas tradições que apenas recolheu e que em grande parte surgiram de pessoas que a ela se opuseram. Ao contrário do que se julga não foi a democracia que as criou, quando muito é a que as melhor tem garantido nas últimas décadas. Porque é de décadas que tratamos, ou seja, de um espaço cronológico muito apertado.
Todos nós somos sobretudo herdeiros de anti-democratas, e de não-democratas ou de pessoas que só não eram contra porque nem sequer concebiam a sua possibilidade. A Europa encontra a democracia como uma solução histórica para um tempo determinado que se dá o caso de ser o nosso. Mas da mesma forma que o império ou o feudalismo ou do domínio dos príncipes pareceram realidades eternas durante séculos, temos de aceitar que a democracia poderá não ser o esteio final das nossas sociedades no futuro.
A Europa sempre foi Europa, e no entanto só de há muito pouco foi democrática. Meio século para os mais velhotes, uma década para os mais recentes. Historicamente é uma camada muito fina, muito frágil e muito menos determinante que as outras. Sejamos claros. Habituados que estamos a considerar a democracia como o nec plus ultra da existência humana olhamos para os nossos antepassados com algum desdém porque eles, coitados, não viviam em democracia.
Tenhamos então algum bom senso e reponhamos as coisas nos devidos lugares. Na nossa época histórica a democracia tem sido o sistema que melhor tem garantido essa herança, esse património. Para um teórico político do século XVII o principado era o mundo natural, não obstante exemplos exóticos como os Países Baixos ou a Suíça, e em parte Veneza e a Polónia. E não era imbecil por assim achar. Tinha mais solo histórico sobre que assentar que nós quando falamos de democracia. Um pouco de humildade ficaria bem aos beatos da modernidade (com ou sem “pós” é a mesma coisa, porque quem apenas sabe conceber a sua vida como após uma anterior mostra que não a superou).
Mas isso não quer dizer que é o sistema definitivo na História. Muito do óbvio deixa de o ser. E quando queremos procurar o que pode estar em perigo, não é nos slogans dos bem pensantes que se encontra, mas no que consensualmente todos dão por certo. Sobretudo, como a democracia não é fundamento último, mas escora-se ela mesma em fundamentos que a precedem, fundamentos bem mais profundos que ela mesma, tudo querer assentar na democracia leva a uma sobrecarga da mesma.
 O fim da democracia aproxima-se na altura em que sobre esta tudo se quer assentar. Quando se quer definir a Europa pela democracia, esquecendo que esta é uma condição e não um fundamento, e daí se retira como conclusão que todo o bárbaro pode ser europeu, aliás, que quanto mais bárbaro, mais europeu pode ser (“mas porém a que cuidados?” e com que interesses?) os pilares quebram para deixar vir ao de cima o que é realmente fundamental.
Vivemos milhares de anos sem ser democratas, mas sendo europeus. Mesmo sem democracia não deixámos de ser franceses, portugueses, polacos, russos. E não produzimos por isso medíocre cultura, salvo se Goethe e Gauss devessem ser deitados ao lixo. Vivemos há milhares de anos desta confluência entre cristianismo e paganismo indo-europeu. Quando nos dizem que somos democracia, só democracia e economia de mercado, o confronto com outras culturas que de comum só têm connosco isso partirá o próprio sustento dessa democracia.
É certo que os cultores do curto prazo não se importam de assentar mais andares num prédio. E vão acrescentando mais e mais. No seu tempo de vida julgam que não pagarão preço nenhum. Mas quando o cidadão comum vir que se vai a votos para a antropofagia, ou para qualquer outro costume mais ou menos janízaro, e que no dia a dia se degolam carneiros nas escadas do seu prédio, ou que a criança, a mulher, o homem respiram muito diferente ar, veremos o que sobra. Se o húmus fértil em que nos gostamos de instalar e a que chamamos de democracia, ou se a rocha ou o magma sobre o qual assenta. Nessa altura é evidente, os sacerdotes da deusa única democracia já a estarão a incensar alhures. Aceitaram a destruição do templo para apenas manter o altar. Mas ao relento a tempestade levá-lo-á. E as suas fundações permanecem. Precisamos da democracia? Sim. Como protecção e conclusão (até haver outra) de um processo. Mas sem ilusões de que o tecto substitua as fundações.
Alexandre Brandão da Veiga

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