sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Exigência e admiração

Visconti encontrou-se um dia com Thomas Mann. Ia falar-lhe do seu projecto de encenação de “Mário e o Mágico”, peça baseada na obra do segundo. Estava nervoso, irrequieto. Depois de lhe explicar o que pretendia fazer, Thomas Mann apenas lhe respondeu: “pensei muito profundamente sobre que tipo de encenação a obra mereceria e concordo plenamente consigo. Sobretudo não deve ser expressionista”. De lívido Visconti passou a aliviado. Os seus inimigos adoram este episódio porque mostra que o orgulhoso, arrogante e aristocrático Visconti afinal também pode tremer como varas verdes. Os amigos apenas ficam perplexos com este episódio. No que me respeita, esta anedota nada tem de inesperado. A aparente arrogância de Visconti está na medida do seu imenso desejo de admirar, de admirar profundamente. Tendo-se encontrado com alguém que profundamente admirava tinha encontrado finalmente alguém que valia a pena ver. Não passou de arrogante a timorato. Foi sempre o mesmo princípio que dominou as suas atitudes. Não desperdiçava admiração com o que não o merecia.



Os romanos, povo muito mais sábio do que os ignorantes das suas obras possam alvitrar, tinham por regra retórica a admiração do inimigo. Repare-se que a natureza retórica da regra não abala em nada a sua sinceridade. Aníbal é celebrado, tanto quanto o Vercingetórix de César, os germanos de Tácito, ou António por Augusto. A lógica era simples e em boa verdade muito coerente: vencer um inimigo desprezível não tem glória nenhuma. Daí que fizesse todo o sentido enaltecer o inimigo, reconhecer-lhe as qualidades em toda a sua extensão.



Goethe, distribuidor de desprezo por excelência, admirava três homens que pouco tinham a ver com ele: Schiller, Byron e Napoleão. Esteticamente, ideologicamente, politicamente, em pouco coincidiam com a sua posição na vida. Mas Goethe fazia ponto de honra em os admirar.


Os exemplos na nossa História europeia podiam multiplicar-se até ao infinito. Grande parte da nossa História, na sua dimensão sentimental, é um cortejo de admirações, de homens que admiram, que umas vezes tremem, outras rejubilam por essa admiração. E que bem conhecem o seu contraponto, o desprezo.



Crasso, Lépido, Schindler, Catilina, entre tantos outros, com maior ou menor justiça, são exemplos de desprezados, por apenas gostarem do dinheiro, por quererem parasitar a glória alheia, por se terem atrevido pisar na sombra de grandes figuras.



Nesta matéria não há que optar pelo meio termo, entre a admiração e o desprezo, só porque o meio termo seria a virtude. Mas dá-se o caso de o admirável e o desprezível, embora em graus diversos consoante as épocas e as culturas, obedecer com frequência a uma distribuição normal, o que significa que o que é sumamente admirável é pelo menos tão raro quanto o que é baixamente desprezível. A maior parte das coisas, só pelo que elas são e não pelo facto de serem, merecem apenas a nossa indiferença, ou quando muito um mero respeito jurídico.


A verdade é que no espaço público não é esse o discurso que ouvimos. A oposição diz que o governo é desprezível. Assim sendo que mérito tem ser melhor que ele quando passa ao poder? O governo tenta demonstrar que a oposição é incompetente. Que desafio tem ele então? Os jornalistas, as empresas, mas igualmente o homem da rua, tentam demonstrar como o trabalho dos colegas é desprezível.



Esta é uma situação curiosa em que se tem razão tendo ou não. Porque ou, havendo tantos desprezadores sem razão, o simples facto de haver tantos sem razão é já de si desprezível, ou então têm razão simplesmente, mas é bem provável que o sentimento que espalham lhes seja aplicável.



Para quem queira ver exagero nesta análise basta ver o que sobra para a admiração inequívoca. Tente o leitor descobrir uma pessoa, uma instituição, que não tenha sido objecto de crítica ou desprezo. Os ridículos e os defeitos dos grandes homens de todas as épocas eram conhecidos e referidos. Os excessos de Alexandre, os desvarios de César e António, a duplicidade dos dois Frederico II (de Hohenstaufen e da Prússia), a ninfomania de Catarina a Grande, a avidez de Luís XIV. E no entanto, a sua grandeza nunca foi posta em causa.



Hoje em dia escolhem-se à pressa intocáveis, mas acabam por ser efémeros sempre. Os jornalistas, grandes heróis impolutos há uns anos, por oposição aos políticos, perderam a credibilidade. Os beneméritos, os actores das organizações não governamentais são desacreditados por várias vias. Desvio de fundos umas vezes, outras por se descobrir que são pacifistas financiados por países da Cortina de Ferro, ecologistas que se associam a partidos comunistas, os menos ecológicos de todos, extrema esquerda aparentemente generosa, mas tudo menos democrática.



Hoje em dia o vulgo compraze-se em ver o desprezível em tudo exactamente porque este quase saiu da boca do mundo. Mais uma vez, a procura de povoar o espaço público apenas de bons sentimentos gera um forte preço a pagar. Sempre que o “mau” sentimento sai da boca esconde-se no coração. Embora a linguagem oficial recuse o desprezo – sobretudo estamos proibidos, em nome do respeito por todos as culturas, de desprezar oficialmente o que mais o merece – e em parte por isso mesmo, as entrelinhas estão dele cheias.



A origem da palavra é algo polémica. Uns ligam-se a raízes indo-europeias que significam sorriso, embora seja mais certo ligá-la a palavras que significam espanto, surpresa, contemplação. Admirar significa ir algures para ver. Merece o nosso esforço ir ver. Admirar significa estar disponível para fazer um esforço. Por isso as supostas admirações turísticas que hoje em dia vemos, que se reduzem a declarações genéricas de admiração por culturas ou personagens que nunca se estudaram, nem se fez um mínimo esforço de conhecer, nada valem. São meras afirmações enfáticas, pacificadoras, auto-defensivas.



A questão é a de saber que peregrinações a nossa época está disposta a fazer. Para onde pretendem os europeus fazer um esforço para poderem ver, contemplar, espantar-se, admirar-se? Uma das vias, ainda e mais uma vez meramente turística, é a dos exotismos de pacotilha. Procuram em culturas exóticas, em religiões exóticas, a redenção. Budismos e Islão, Turquia e China. Outra via, clandestina, sorrateira, mas cada vez mais forte, é a do agastamento dos movimentos identitários. Ora nacionais, ora regionais, ora no plano europeu. Esta a força que mais intensamente cresce nos nossos anos. Exactamente porque tem o sabor da clandestinidade, do perigo, portanto, da sinceridade.



Mas em bom rigor, a nossa época oficialmente abomina a peregrinação. Dedica-se mais, como herdeira de um cristianismo liofilizado e pronto a consumir, a converter outros povos à democracia e à Europa. Os tontos mais ou menos bem intencionados, mas que postos a nu mostram a sua profunda irritação e ressabiamento, dedicam-se a converter a Turquia à Europa, ou Marrocos. Um dia o Kazakistão, ou o Uzbequistão.



Uma época que não peregrina, ou seja, não tem força suficiente da sua identidade para se fazer estrangeira a si mesma, que não faz esforço para sair de si e pôr-se em caminho para admirar é apenas uma época pouco exigente. Porque exímia a perdoar, apenas para não ser condenada, feliz em conciliar, apenas porque impotente para o confronto, transforma a vida num exercício de auto-justificação permanente. Não exige de si mesma, é provinciana, timorata. Se não admira é porque é pouco exigente, se despreza é porque se satisfaz com pouco. O desprezo, salutar exercício de juízo, passa a ser álibi rotineiro que apenas procura a absolvição.



São pouco exigentes consigo os que sabem ter pouco para dar. Tornam-se pouco exigentes com os outros porque têm medo que lhes seja pedido em troca. E se não admiram é porque apenas encontram paz pensando que os outros são tão irrelevantes quanto eles.






Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Apenas o sucesso

Cavaco Silva construiu o seu cv político explicando ao Povo que estava apenas programado para o sucesso. Do armazém de figos, para as boas notas do liceu de Faro; do curso superior em Lisboa, para o doutoramento em Inglaterra; de ministro das finanças de um Governo efémero, para Primeiro Ministro de um Governo íman de riquezas europeias. Contou-nos a sua história como se fosse a de uma escadinha em que a derrota das Presidenciais de 1995 foi o patamar para um novo lance. O Povo acreditou e deu-lhe a confiança do voto sentindo-se, assim, co-vitorioso de sucessivas eleições.
Nem tudo foi virtuoso. Fiel ao guião triunfador, em 1981 Cavaco recusou-se a participar no Governo Balsemão quando o PSD ficou órfão de Sá Carneiro; apressou a queda de Mota Pinto na difícil gestão do Bloco Central com o FMI, em 1985; falhou ao delfim, Fernando Nogueira, em 1995; e recusou-se a dar a cara num cartaz das Legislativas de 2005 depois de ter escrito sobre a boa e a má moeda, a propósito de um PM, também social-democrata. Assim conquistaria a Presidência, sem mais patamares. Já PR, calaria a anterior exigência, no tempo de Sócrates, para ganhar o segundo mandato em Belém. E afastaria o estorvo quando a crise se tornou legenda do Governo socialista, surgindo, de novo, como o salvador da Pátria. Ou de si próprio.

Os méritos académicos não encontraram correspondência na lisura dos comportamentos políticos. O casal Cavaco Silva foi somando pontos que, ligados entre si, formaram um desenho pouco edificante. A lamúria do Chefe de Estado sobre os seus parcos recursos perante um País na penúria; as declarações de Maria Cavaco Silva, numa visita oficial à Turquia prolongada, com os nossos impostos, para uma ida à Capadócia, «onde o meu marido sempre me prometeu trazer» e, agora, a fuga indecorosa de uma escola secundária para que a imagem imaculada do bem sucedido se confirmasse, fizeram cair o pano.

O Rei D. Carlos morreu a 1 de Fevereiro de 1908 porque se recusou a um carro e um percurso que o poupasse, afastando-o do Povo. Em 1986, Mário Soares foi de propósito à Marinha Grande provar que não há ruas proibidas para nenhum português e, ainda menos, para quem se candidata a representar a Chefia do Estado. Também Francisco Assis não deixou de se expor ao perigo de insultos e empurrões, numa acção política no Norte. Já não falo dos cercados do Palácio de Cristal, da Assembleia Constituinte ou do Patriarcado em 1975, resistentes ao que desse e viesse pela convicção e pela coragem. Em todos estes casos, a integridade física estava em causa. Não o incómodo de um apupo para o impecável corredor dos cem metros barreiras.

Cavaco não estava preparado para o seu próprio insucesso. E, como o pássaro a quem a raposa gabou o canto, perdeu o queijo.







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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Indeterminações na ciência

Os Antigos discutiam da necessidade, com Descartes começamos a discutir da certeza. Estamos a falar de planos bem diversos. A necessidade é objectiva, está no mundo. A certeza estará no sujeito se tiver de estar algures.


Mesmo com a célebre afirmação de Laplace, de que se soubesse das condições iniciais de um sistema saber-se-ia todo o destino futuro do mesmo, o mesmo Laplace reconhecia que não podemos ter a certeza absoluta por razões cognitivas. Nunca saberíamos até ao infinito todas as condições iniciais desse sistema. E muito antes dele, Leibniz dizia que a certeza dada pela ciência era bem diferente da certeza lógica, era uma certeza moral. Não se trata de uma afirmação passageira, mas de uma insistência, de uma posição bem consciente em Leibniz.

Estes elementos mostram-nos que não é preciso ir aos cépticos da Antiguidade para descobrimos indeterminações na ciência. Mesmo nos grandes cultores do, chamemos-lhe assim à falta de melhor, dogmatismo científico, os limites deste dogmatismo eram bem conhecidos.


Se bem virmos na base de todas estas considerações está a consciência de um facto muito simples: o homem não é divino (pelo menos exclusivamente divino), é por isso destituído de uma ciência perfeita ou sequer infusa.


Curioso o facto de os maiores triunfalistas da ciência, certos positivistas, serem hoje todos vistos como modernos politicamente. Destronaram a religião, desprezaram os antigos, aspiraram ao laicismo, deram um pontapé na metafísica. Politicamente estão mais próximos dos que hoje em dia atacam a certeza na ciência. O que só mostra que é de uma revolta edipiana que se trata. Quando os relativistas da ciência (com nomes para todos os gostos) atacam o dogmatismo, é do dogmatismo dos seus pais espirituais e políticos e não dos cientistas cristãos (ou religiosos em geral) que tratam. O seu alvo é Berthelot e não Planck, Comte e não Heisenberg. É de uma luta de família que se trata, de uma despudorada luta contra os próprios pais. Nunca um cientista cristão diria que o homem poderia ter certezas de tudo e, por maioria de razão, nunca disse que a ciência tudo resolveria de forma certa.


Os triunfalistas da ciência em bom rigor nunca foram cientistas, nem em geral bons filósofos. Foram bons sociólogos (Comte) ou geniais lógicos (o neopositivismo lógico vienense). Mas de entre eles não se encontra um grande físico, poucos matemáticos, apenas muitos químicos e biólogos. Uma doença de ciências em nascimento e com vontade de autonomia, uma crise de crescimento em suma.


A questão coloca-se hoje em dia porque surgem como grande novidade movimentos que salientam que tudo pode ser ciência, que os rituais da ciência são arbitrários, nada mais válidos que os de quaisquer tribos.


Vejamos. Que a ciência é feita por homens ninguém nega. Daí que tenha as falhas dos homens e das obras humanas. Daí que obedeça a uma História, e seja historicamente compreensível. Daí que igualmente, e na medida em que foi sobretudo criação individual, muito da sua produção não se possa explicar historicamente em exclusivo. Sem a riqueza e a prosperidade da Europa do século XVII, sem os seus meios de comunicação e correspondência, não se pode compreender a criação do cálculo infinitesimal. Mas não há teoria histórica que explique como é um jurista como Leibniz a criá-la. Nem pode estabelecer determinações entre os seus teoremas fundamentais e os seus algoritmos e a sociedade da época. Há sempre relações, mas nunca vínculos absolutos.


Que uma ciência esteja culturalmente determinada é evidente. Não se compreende a matemática europeia sem o cristianismo, o seu pensamento do infinito por exemplo. Nem a física sem se compreender a polémica das forças vivas. Leibniz chega à equação da força com argumentos teológicos, e de teodiceia, os mesmos que Voltaire, que nunca deu um só contributo para a física, tanto ridicularizou. Ainda hoje em dia na física as teológicas metodologias de Mauperthuis (óptimo, menor esforço, etc.) são usadas na física. O conceito de prova está marcado pela ideia de experimento crucial ou seja, o experimentum crucis, a prova por excelência, a prova da cruz. Não fazemos ciência como os indianos ou os chineses.


Curioso é que os mesmos que insistem na determinação cultural da ciência são precisamente os mesmos que contestam o papel do cristianismo na definição da Europa. O alimento da ciência é sempre em última análise espiritual e é reconhecido pelos maiores cientistas que existe uma ética científica, independentemente de se aceitar ou não uma ética social do cientista.


Mas uma coisa são as fontes, outra os resultados. Nos seus resultados, a ciência chega a resultados que são válidos independentemente da cultura em que se está. Quem quiser construir um avião na China tem de usar a mesma física que se usa na Europa e que esta criou. A demonstração de um teorema na Turquia tem de ser feita da mesma maneira que se faz na Europa. Isto não é tão evidente quanto possa parecer. É que em todo o mundo se reconhece que essa ciência é melhor. Não que as outras sejam todas lixo, ou mesmo que não tenham alguns aspectos que possam ser aproveitados. A medicina tradicional chinesa e indiana traz aspectos importantes para a medicina ocidental. Mas a avaliar pelos resultados, também os chineses e indianos melhoraram a sua longevidade, não com as suas medicinas tradicionais, mas com a europeia.


Uma árvore conhece-se pelos seus frutos, diz a Bíblia. E parece que o mundo inteiro aceita este refrão. Porque quando os persas ou turcos dizem que precisam de medicamentos não se estão a referir a medicamentos da sua medicina tradicional. Nem voam em aviões baseados nas suas ciências.


Por isso, a quem insiste na total indeterminação da ciência, na sua relatividade cultural, e que afirma que o método científico é apenas um rito como qualquer outro aconselho-o a andar num avião baseado em ciência turca, a tomar medicamentos contra o cancro da medicina chinesa e a, caso lhe rebente em casa um esquentador, receber uma resposta da companhia de gás no sentido em que a ciência é arbitrária e por isso não lhe é devida nenhuma indemnização.

Curioso igualmente que quem opine neste sentido em geral seja totalmente destituído de conhecimentos matemáticos ou físicos. Porque se alguma coisa soubesse destas ciências (porque também o são, e não apenas as antropologias e as teorias da literatura, por mais lhes espante esse facto - que não são paradigmas para a restante ciência aliás), saberia que há formulações, resoluções e colocações de problemas que estão... erradas. Erradas mesmo, sem apelo nem agravo.


Em última análise temo bem que habituados ao erro, comprazendo-se nele, apenas o queiram legitimar sobre a capa da indeterminação. Acusadores e julgadores ao mesmo tempo, impositores de regras processuais que eles mesmo criaram, pretendem-se os únicos sacerdotes da grande deusa da Indeterminação, perante a qual todos os outros deuses seriam falsos. Legitimando o erro legitimam-se em suma. O trabalho medíocre confina sempre na autobiografia.


Alexandre Brandão da Veiga




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