sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ineptos e anti-heróis

Para as pessoas que passaram pelo sistema de ensino depois do fim dos anos de 1960 a figura do anti-herói é sobejamente conhecida. Foi-nos inculcado o culto do anti-herói. O herói era um enfado, plano, demasiado liso, preferia-se a complexidade do anti-herói, que reunia o fascínio do herói com uma frescura que este não tinha.



É evidente que este culto não é neutro sob o ponto de vista ideológico nem nos seus efeitos. Criou gerações que se empenhavam a fazer mal para emularem os anti-heróis, ou que se compraziam com o facto de fazer mal as coisas porque tinham exemplos ilustres que os justificavam.



O problema desta mitologia é que esquece muitos aspectos da realidade. Vejamos quais.



Em primeiro lugar o herói. Etimologicamente é palavra que se parece ligar ao de arete grega, de virtude. O herói é o nobre, o melhor. O destino do herói raras vezes é feliz e é sempre trágico. Mesmo que acabe em apoteose como Hércules, ou em destino cósmico, como os Dióscuros Castor e Pólux, o seu destino é atravessado de imensas feridas, trabalhos ou decisões. A destruição do herói é correlato da destruição de todos os paradigmas de nobreza, da ideia do melhor. Muitas vezes o herói falha, perde. Antígona é desses. O que caracteriza o herói não é o sucesso, mas a grandeza, a ânsia pelo melhor e a plena disposição de se sacrificar pelo melhor.


Em segundo lugar os ineptos. A Historia está cheia de personagens ineptas. Esta são trazidas mais pela literatura que pela mitologia. É certo que a mitologia tem alguns exemplos. Cidipe que pede o melhor para os seus filhos e faz com que estes morram em plena flor da juventude porque é esse o melhor destino, como conta Sólon ao rei da Pérsia. Igualmente o amante de Aurora para o qual esta pede a imortalidade sem pedir a eterna juventude, pelo que este envelhece sem parar, inexoravelmente, mas também sem nunca morrer. Tchekov é o grande descritor dos ineptos. Nos seus contos Cervantes cria o paradigma do inepto com Don Quixote. Os ineptos são as figuras mais diversificadas que há, talvez as mais próximas da humanidade comum. Daí que não tenham sido centro de interesse da mitologia. Uns têm a exigência dos heróis como Don Quixote, mas estão condenados pelo riso, porque a sua inadequação é mais saliente que a sua auto-exigência. Outros são apenas pessoas comuns, medíocres, que são apenas ineptas, mesmo que não exijam muito da vida. Cómicos, trágicos, um pouco de tudo, são condenados pela disparidade entre o seu projecto de vida e o projecto que a vida para eles tem.


E só em terceiro lugar os anti-heróis. O que caracteriza o anti-herói é a adequação consigo mesmo e com o seu destino. Por isso para mim Don Quixote não é um anti-herói. O anti-herói é sempre bem sucedido, ou tende a sê-lo pelo menos. Atravessa a vida de forma mais ou menos tortuosa, mas por mais aventuras que viva, por mais dificuldades que atravesse, a vida é-lhe amena, é-lhe pelo menos favorável. A vida sorri-lhe. O maior exemplo de anti-herói na cultura popular dos últimos anos é a Gabriela de Jorge Amado. “Eu nasci assim, vou ser sempre assim” podia ser dado como lema da cultura da segunda metade do século XX: os heróis picarescos que são dados como seus antepassados são mau exemplo. Porque na maioria dos casos os heróis picarescos são mal sucedidos, são apenas ineptos. O facto de a nossa época querer arvorar ineptos em anti-heróis é aliás significativo. Tudo é válido, desde que tenha por efeito recusar os heróis.



Passemos à História. Épocas houve em que a gratidão da Europa em relação a Dom João de Áustria e ao príncipe Eugénio de Sabóia, sobretudo o último exemplo de moderação e sentimentos nobres, a quem devemos a libertação de Viena contra os turcos, ou Jan Sobieski, grande herói polaco da mesma época, ou o culto dos heróis nacionais era motivo evidente, tópico corrente da nossa cultura. O mesmo se passa com cientistas, políticos, escritores, religiosos, que foram heróis da cultura europeia, ou das suas culturas nacionais. É evidente que tudo sofre o risco de cair na sua caricatura. Os heróis do trabalho soviético, a dedicação pia a heróis nacionais cujo papel obnubila outras personagens, estes e outros exemplos explicam-nos que o culto dos heróis não é isento de riscos. Mas que banalidade. Nada do que é vivo o é.



Parecendo flutuar para além destes paradigmas está o super-homem de Nietzsche. Nada tendo a ver com o cruzamento de malabarismo, eficácia tecnológica a instituição de caridade que é o personagem da banda desenhada, o super-homem de Nietzsche é o homem que se supera, em nome da vida, e para além da vida. Mas se bem virmos a Nietzsche segue-se um mundo de equívocos. É apropriado por nazis, por marxistas mas sobretudo por uma mentalidade delicodoce dos pequenos-burgueses que se querem ver isentos de uma moral tradicional porque isso lhes facilita a vida. Mas o super-homem de Nietzsche nada tem de fácil, é trágico, é apenas mais uma das formas do herói.



Entremos no espaço público sem receio de sujarmos os pés. Não sendo por enquanto mesquita podemos ir calçados dos nossos altos coturnos e observar ao longe os escombros que esta paisagem nos mostra. Obviamente que apenas veremos versões reduzidas destes paradigmas.


O discurso do político médio está longe destes paradigmas. O discurso expresso entenda-se. Tirando os extremos à esquerda cultivando os anti-heróis de pacotilha e à direita os heróis de fancaria, o discurso político quer-se razoável, anti-mitológico, ponderado.



Mas uma coisa são as modulação das palavras, outra o que estas dizem e outra ainda as acções. Quando encontram oposição são vítimas de cabalas, como Antígonas defendendo o que é direito contra tudo e contra todos. Quando atacam vestem a armadura guerreira do conquistador ousado como Hércules a caminhar par a apoteose. Perante a guerra fazem-se de heróis.



Perante a prova por excesso, o processo judicial, fazem-se de ineptos quando o papel de heróis, vítima ou conquistador já não lhes quadra. Ignoravam – dizem – que essas seriam as consequências, que nada sabiam sobre a corrupção.



Mas estes são apenas papéis sabiamente doseados ou não. Em boa verdade o seu comportamento é do anti-herói. Uns mais eficazes, outros menos eficazes, fazem atravessar o espaço público da sua auto-satisfação. Adequam-se a um destino de permanente desadequação. Estão muito acima do que imaginaram algum dia, não foram formados para a alta esfera, mas apenas para a oblonga baixeza, Mas passeiam-se no passeio público sendo simplesmente o que são. “Sapato não, seu Nacib”, parecemos ouvi-los dizer.



O problema é que se o anti-herói sem poder pode ser comovente, como a tonta da Gabriela, quando o tem torna-se grotesco e perigoso. O anti-herói não vive, sobrevive, e escora a sua concepção da política na sobrevivência. Para ele o cruzado morto em batalha é um perdedor, um falhado e não alguém que se cobriu de glória. Para ele Aquiles é um exagerado, um pateta, Ulisses um mero turista. Se reza a Cristo é para lhe pedir ajuda, mas não para o acompanhar na sua Paixão, que considera desajustada e pouco razoável.



Ensinados para serem anti-heróis, ou seja nunca aceitando esse título, os mesmos no espaço público mostram ser bons alunos, bem endoutrinados pelo sistema educativo que tão carinhosamente os formou. Se mandam apagar dos programas escolares os paradigmas clássicos não é por terem horror a paradigmas, mas por adorarem com profunda devoção (na medida das suas forças, entenda-se) altares de onde constam Ti Maneis, Ti Jaquinas e agora Bernados e Marias do Mar. É a esse altar que incensam e nos imolam. “Adaptem-se” é a sua palavra de ordem, “sejam conformes”. Se forem de esquerda façam happenings, se de direita procissões, em ambos os casos vigílias contra injustiças que nunca existiram. Tudo desde que desprezem os heróis, e tendo na melhor das hipóteses condescendência em relação aos ineptos.



Deixaram de ser comoventes, estes espécimes que encontramos na savana pública. Os seus paradigmas são o chacal e a hiena, para os que sabem voar o abutre. Se virem esta fauna nos meios de comunicação social podem reconhecê-los facilmente. O seu riso é de hiena, voam para procurar carne caçada por outrem. O seu espaço natural são os despojos. E tudo o que encontram vivo – é superior às suas forças – transformam-no em despojos. Quanto à Europa esta chusma já a dilacera na esperança de a transformar em carcaça. Apoiantes ou opositores oficiais da Europa confundem-se neste festim. Uns por a quererem encher de parasitas, outros por lhe querem tirar a seiva. Não há reais diferenças entres eles, porque só num mundo feito despojo se sentem em casa.


Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A aristocracia é necessária?

Por vezes há alguma tendência a condenar os lugares comuns só por o serem. Ora o que condena um lugar não é a sua natureza comum, mas a sua injustiça. Se são com frequência condenáveis é porque a injustiça é com frequência muito comum. Mas existem lugares comuns cuja valia se percebe melhor quando desaparecem, quando o deixam de ser.

Era lugar comum citar a tese de Políbio quando este afirmava que a origem da excelência e do poder do sistema romano se encontrava no facto de conciliar democracia, aristocracia e monarquia. Todos os sistemas equilibrados, se bem repararmos, distribuem de forma equitativa o poder entre todos, alguns e um só. O poder do presidente da república não é igual ao do merceeiro da esquina, o poder da massa da população não é igual ao dos que vivem nos vários círculos de decisão. É assim em todas as comunidades, a questão é a de saber em que graus e com que justiça se distribuem esses poderes.


A aristocracia não é apenas um conceito de poder. Nem um conceito quantitativo. É qualitativo. É o poder dos melhores. Não vou discutir a questão de saber se tem de haver a formação de novas aristocracias. Nem sequer directamente o papel das tradicionais aristocracias hereditárias. Aquilo que quero salientar é a própria importância da ideia de aristocracia numa sociedade, que papel pode desempenhar.


Uma sociedade não vive apenas quatro ou cinco anos. Uma das técnicas de limitação do poder é a sua limitação temporal. Mandatos limitados no tempo, prescrições, toda a técnica do Direito Público desemboca de uma forma ou de outra nas limitações temporais do poder. Facto positivo. Mas nada na vida é só positivo. O perigo deste sistema é o da impermanência. O do império da impermanência. Nada existe que não influencie de uma forma ou de outra o longo prazo. E o mais importante só nele se instala. Quando se fala em reformas estruturais e da incapacidade de muitas democracias de as fazerem é desta incompatibilidade entre mandato (poder) e tempo (serviço) que se fala. Entre o melhor e o mais eficaz a curto prazo opta-se pelo segundo.


Os economistas têm vindo a analisar a influência dos ciclos eleitorais na gestão da economia. Mas os ciclos eleitorais têm influências muito mais vastas. Na educação, na saúde, na justiça social, existe sempre a tentação de sacrificar ao curto prazo o que deveria ser feito no longo.


Aristocracia não é só governo dos melhores, mas governo pelo melhor. E o melhor é por definição um projecto inatingível na modalidade e no tempo. O aristocrata projecta-se assim sempre no infinito e na eternidade. O que faz é com frequência absurdo para a sua vida, para o pequeno espaço de tempo. Porque a sua meta não obedece a ciclos de poder.


Damos como evidente associar aristocracia a hereditariedade. Esse é mais um dos aspectos que demonstra o nosso etnocentrismo e a dimensão pagã da civilização europeia. Não se encontra no cristianismo nada que justifique uma aristocracia hereditária. E no entanto, a Europa foi governada mais de 1400 anos por esse sistema. É evidente que em todos os sistemas há tendência à reprodução das desigualdades sociais, tendência maior ou menor. O filho do burguês tem sempre mais hipóteses de vencer que o do proletário. Mas a hereditariedade como factor de posição social é típica do paganismo, sobretudo o indo-europeu. Platão era nobre porque descendente de Codro, rei de Atenas, Heraclito era “rei”, Júlio César porque descendente de Iulus, filho de Vénus, os sistemas de poder germânicos e celtas, embora não baseados na primogenitura, eram baseados na descendência.


Em países não europeus, como a Turquia e a China, nada disto se passa. Um escravo passa a grão-vizir, o mandarim pode ser filho do pobre. Mais uma vez saliento: a tendência para a reprodução de desigualdades sociais existe sempre. Mas a hereditariedade como fundamento não existe. Na China eram nobilitados os ascendentes quando o era alguém, não forçosamente os descendentes. Ao contrário do que se pensa, a hereditariedade contribuiu para a atenuação de desigualdades sociais e não o contrário. Nunca como nos regimes orientais foi tão escandalosa a má distribuição de riqueza. Nunca como no capitalismo.


A perenidade no tempo pode ser incarnada por uma ideia transmitida de múltiplas formas. Assim fizeram as repúblicas. Mas a verdade é que os mitos de continuidade que criaram foram sempre frágeis a longo prazo sem aristocracias. A república romana vive da sua aristocracia, mesmo que absorvendo novos membros. A democracia ateniense tem como patronos aristocratas (Sólon, Clístenes, Péricles) a república francesa mais longeva nasce da aceitação de padrões aristocráticos. Portugal, república durante 90 anos, ainda tem horror ao verde e encarnado como de mau gosto, apesar de ser de bom tom em Itália.


Os aristocratas não são melhores que os outros a fazer coisas, nem mais inteligentes, nem mais estúpidos. Mas foram sempre melhores a escolher coisas. Escolheram Mozart e Beethoven, e mesmo Strawinski. Projectando-se no eterno, não têm de fazer escolhas para agradar no curto prazo. Podem-se dar ao luxo de proteger Molière contra a vontade dos pudibundos.

E são melhores nos modos. Quem apenas luta para sobreviver ou para subir tem menos tempo para o modo. Se a opção é entre comer ou não comer apenas se discute do sim e do não. Quem carece de subir na sociedade usa o modo como instrumento, mas não como postura.


Infinitivos, modos, optativos. Categorias gramaticais que se esvaem na nossa época. Categorias gramaticais que mostram a riqueza de perspectivas de vida que a aristocracia nos trouxe. As nossas línguas indo-europeias, tanto quanto a erudição o pode retraçar, são línguas aristocráticas, enriquecidas pela aristocracia.


O que se perde com a perda da aristocracia? Não a comida, que abunda. Não a saúde, que é medicalizada. Nem forçosamente a ligação à vida, porque o povo também a tem. O que se perde é tão simplesmente a possibilidade de viver a vida em civilização. Civilização e vida opõem-se sem aristocracia. É quando esta perde o poder que se percebe a sua oposição. Antes uma era consequência de outra.


Daí que o perigo na política seja o de se ter de optar hoje em dia entre uma ou outra. Na melhor das hipóteses. Porque se corre o risco de perder ambas. Os homens públicos já são destituídos de civilização, e muito menos a incarnam. A sua ligação à vida é mediatizada e não serve de paradigma. O grave ainda está para vir. É que se identificam com o mundo que os rodeia, porque esse mundo está cada vez mais como eles. Sem seiva, sem infinitivo, nem modo, sem optativos. Apenas um indicativo, um presente fugaz, um pequeno futuro, um pretérito estreito. A redução gramatical está na medida da redução da vida possível. Ou seja, não vai além do simplesmente indicativo. Ignora a possibilidade, a alternativa e a escolha. Sem civilização pode florescer o selvagem. Nela, sem aristocracia, impera o mendigo da vida. É esse que nos aparece nas televisões.


Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O Islão civilizador

Neste modo de pseudo-exotismo que invade a Europa ouve-se falar com frequência no papel civilizador do Islão. Talvez seja bom ter um quadro mais adequado da coisa. E perdoem-me aqueles que se queixam que falo mais de História que de política, mas tenho pena que sejam aqueles que falam de política que mais se aventuram num terreno em que são ignorantes, o da História.


O islão é criação de sarracenos. O sul da Arábia, a Arabia Felix, era na altura zona de civilização sofisticada (o mesmo se poderia dizer dos árabes da grande Síria na época helenística e império romano, como os nabateus e iturianos, por exemplo). Não um grande centro de criação de civilização, mas zona que sofreu as múltiplas influências do Egipto, do Império Romano e mais tarde bizantino e das correntes do tráfego do Oceano Índico. O sul da Arábia, embora não centro de expansão da civilização, era região efectivamente civilizada no século VII d. C., quando surge o islão.


No entanto, o corpo central da península arábica, onde nasce o islão, é zona desprezada pelo sul da Arábia, que a considera bárbara, e pelos grandes impérios circundantes, o persa e o bizantino. É a zona dos sarracenos, povos nómadas ou semi-nómadas, de fraca criação cultural.


Ao contrário do que se diz, o islão não civilizou o espaço cristão, mas foi o inverso que se passou. O cristianismo é seis séculos mais antigo que o Islão. Maomé é influenciado pelo cristianismo, crê-se que de tipo nestoriano, e pelo judaísmo. Na sua base religiosa, na sua matriz cultural de base, o Islão deve ao cristianismo e não a inversa.


Continuemos, com o risco de chocar os bem-pensantes. Quando o islão se torna conquistador, muito prematuramente, não partiu para conquistar hordas bárbaras. Conquista dois impérios de brilhante civilização, muito superior à sua: o império bizantino cristão e o império persa mazdeísta e com uma forte minoria cristã nestoriana, nomeadamente. Quando o islão conquista este espaço não tinha estruturas nem administrativas, nem culturais, nem políticas preparadas para governar tão vasto império. Vai beber ao império cristão e ao persa o seu desenvolvimento civilizacional. Não é por acaso que São João Damasceno, santo ortodoxo para o Oriente e para os Latinos, foi grão-vizir. Os sarracenos não tinham outra alternativa.

O mérito do primeiro império muçulmano foi fazer uma síntese de duas grandes civilizações, o império cristão bizantino e o persa. Entrou em zona mais civilizada que a deles, a eles deve a sua civilização.


O mesmo se passa com o segundo grande movimento de expansão do Islão, o turco-mongol (esqueço agora o islão relativamente marginal, como o dos curdos, e afegãos). Quais são os seus pontos de invasão? A Índia, zona mais civilizada que as hordas turco-mongóis. Ou a Europa e Bizâncio, zonas que civilizaram, em conjugação com a civilização árabe, os turcos. Mais uma vez, a força de conquista islâmica não se abateu sobre povos primitivos, mas sobre povos ainda mais civilizados. Foram os conquistados que civilizaram o Islão e não o inverso.


Vejamos um terceiro ponto de actuação do Islão. Na África norte ocidental e em geral da África negra. O Islão trouxe alguns paradigmas de civilização novos para esses povos, sem dúvida. Mas eram povos marginais às grandes correntes históricas e não o deixaram de ser. Mouros e núbios já tinham sofrido a influência de impérios egípcio, púnico, romano, pagãos, cristãos. De marginais que eram, marginais ficaram.


E um quarto ponto, a Europa. O domínio tártaro, turco-mongol, em suma, da Rússia. O tempo do governo da Horda de Ouro não é tempo de expansão cultural na Rússia. O domínio turco nos Balcãs fez dos Balcãs a zona mais pobre e subdesenvolvida da Europa. A Hungria divida entre turcos, Habsburgos e o principado da Transilvânia, tem a sua zona mais pobre na dominada pelos turcos. E o principado só se desenvolve quando sai do protectorado turco para passar a mãos austríacas.


O Islão teve como efeito a miscisgenação de culturas já por si desenvolvidas e teve o mérito de criar grandes espaços de circulação de culturas. Comunicação e miscisgenação são as suas palavras-chave. Mas nunca elevação.


Vejamos o contra-teste. O cristianismo parasita uma grande civilização como a romana. É natural. Qualquer religião começa por parasitar um espaço já circundante. Mas quando se expande para zonas primitivas, ou mais primitivas, cria o grande cristianismo irlandês, do séc. VI, a conquista da Germânia pagã, das regiões eslavas e magiares faz surgir países com uma imensa cultura. Não viveríamos na mesma cultura sem os nomes de Leibniz, Gauss, Alberto Magno, Dürer, Bach, Tolstoï, Liszt, Brahms, Cantor, Kant... A lista é sem fim. O cristianismo entra nas Américas e um continente com civilizações de desenvolvimento irregular, desde o mais primitivo ao civilizado, passa a fazer parte de um mesmo padrão civilizacional. Tirando um período que vai do séc. VIII até ao XI a superioridade civilizacional do Islão em relação a certas zonas do cristianismo (não em relação a Bizâncio) inexiste. Ou seja, apenas durante quatro séculos. O cristianismo teve seis séculos em que teve o papel de comunicação e miscisgenação seguidos de mais de mil anos de elevação civilizacional e dos quais mais de seis séculos de notória superioridade civilizacional.


A rede de comunicações mais vasta do mundo foi criação europeia, cristã, as maiores fontes de miscisgenação foram europeias cristãs, e as maiores fontes de elevação civilizacional foram europeias, cristãs. Mais nenhuma cultura transformou o descendente de camponês alemão em Mozart e Bach, ou o nobre caçador russo em Turgueneev ou Tolstoï.

Adivinho uma objecção do leitor. O islão elevou turcos, mongóis e tártaros. A resposta é bem algo mais complexa. O judaísmo e o cristianismo, bem como o hinduísmo e as religiões chinesas tiveram semelhante papel. Mas os turco-mongóis pertencem ao imenso buraco negro que é a Ásia Central, constituído por povos simpáticos quando não tem poder, mas que deixaram na História não pensamento nem glória, mas apenas impérios guerreiros e destruição das quatro grandes fontes de cultura da humanidade: a Europa, o Levante, a Índia e a China. Se o leitor pretender viajar de acordo com a física turca que use um burro e esqueça o avião, se pretender fazer cálculos de acordo com a matemática mongol que use os dedos e não um computador. E a cozinha huna é bem simples. Coloque o leitor carne crua entre as pernas durante um dia até a amolecer enquanto cavalga e depois delicie-se com esse petisco. Convenhamos: elevar turcos e hunos não é tarefa difícil.


Se invoco esta questão, tenho de o lembrar mais uma vez, não é por prazer em escavar o passado. É que os indigentes da História passam a vida a invocar farrapos da mesma, mal pintados, de falsa textura e mau fabrico, falsificações e conclusões forjadas, apenas para assentar a sua prática de um irenismo desrespeitoso da Europa. Que se desrespeite a Europa não os preocupa. Estão habituados a viver no desrespeito. No que me toca eu não me habituarei nunca a isso.


A História não é qualquer coisa que já se passou. É o que se está a passar. E quem tem uma visão esfarrapada da História apenas pode ser uma vivência do dia a dia indigente. O discurso político que visa adocicar minorias sub-proletárias na Europa lembrando-lhes gloriosos passados faz-me lembrar o fidalgote mal instalado e pouco provido que é lisonjeado pelos seus avoengos. Sem mérito neles, e convenhamos, com avoengos não tão gloriosos quanto isso. Se insisto nesta ideia é porque semi-alfabetizados, incapazes de fazer grandes viagens no tempo ou no espaço, insistem do alto dos seus púlpitos na grandeza civilizadora do islão como forma de manipulação da acção e da decisão políticas. Se alguma consolação podemos ter é que destes farrapos a História não reza e não temos por isso de rezar por eles.



Alexandre Brandão da Veiga

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