sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O que é um estúpido?

De vez em quando sabe bem numa época aproximativa poder recorrer a trabalho de rigor e excelência. Por isso quando ouço algo muito estúpido nada mais repousante que ler matemática, poesia latina ou o bom velho dicionário etimológico do senhor Meillet. Procurando no verbete “stupidus”, de fácil tradução, verifico que tem parentesco com o hitita “tuputu”, “grande barulho”, o “tupto” grego, “bater” e o “tupati” sânscrito, “ele bate”; e, imagine-se, é palavra cognata com “stuprum”, “violação”.


Em suma, para os nossos antepassados, mais sábios e directos, e mais ligados aos dados fundamentais da realidade que nós, porque menos carregados de mediação, um estúpido é alguém que levou uma pancada. De quem? Nada se diz. A verdade é que uma cultura tão aristocrática como a indo-europeia era afinal mais optimista do que geralmente queremos reconhecer. Ninguém nasce estúpido. Existe uma explicação: levou uma pancada. A estupidez é por outro lado barulhenta, incomodativa e em boa verdade pode ser mesmo uma violação.



Quando falo no estúpido entenda-se que a minha intenção não é a de insultar ninguém. Deus, na Sua infinita sabedoria, já lhes tornou a realidade insultuosa, não que pretenda eu substituir-me a Ele. Pretendo apenas que o leitor reconheça o espécime e possa tomar as medidas adequadas para o evitar no caminho, ou, caso não possa evitar as suas emboscadas, se possa defender. Se assim se entender, trata-se de um manual de sobrevivência na selva do estúpido. Como reconhecê-lo, como evitá-lo, e como se defender dele.



Como reconhecer o animal em questão?



O estúpido descobriu um refúgio. Os Temas Inteligentes. Pode comprá-los no supermercado, estão já devidamente enlatados, e dão-lhe um estatuto imediato. Um estúpido reconhece-se por querer fazer algo de temas inteligentes que sejam de fácil acesso. Se alguém quiser falar das formas nominais no indo-europeu pode ser um especialista, um homem dotado de imensa erudição, ou simplesmente um pretensioso. Se alguém quiser discutir sobre os teoremas relativos a grafos ou reticulados estará na mesma situação. Um estúpido não se mete nesses temas. Esses não se encontram ainda nas grandes superfícies comerciais da atenção.


Não, é noutros temas que temos de reconhecer o estúpido. Observe-se o bicho. De que temas gosta ele de falar? Do ambiente, particularmente do buraco da camada de ozono. De buracos saberá, caso tenha experiência de introspecção, mas da molécula do ozono nada sabe. O ozono para ele é um motivo folclórico, como poderia falar nos lírios do campo. Assim faziam os seus antepassados. Assim como antes os seus avós diriam que fica bem a rosa ao peito, ele afirma com determinação que não fica bem um buraco na camada de ozono. Longe de mim fazer a apologia de tal buraco. Apenas saliento que o espécime em causa nada sabe sobre ele.



Outro tema inteligente é tão simplesmente, o dos equilíbrios económicos internacionais. Pouco humilde, o exemplar desta espécie pode nada saber de como calcular juros de obrigações e muito menos saberá avaliar uma opção. Mas o vasto tema da economia mundial está ao seu acesso. Ou defendendo o capitalismo ou atacando, aqui vem ele cheio de impulso de doutrinação definir o que é injusto e injusto e de como resolver o magno problema.



O tabaco é outro dos temas. A alimentação saudável. A Europa, geralmente para dizer que é velha, decadente, e irracional. Ou então para dizer que é democracia, direitos do homem e economia de mercado. Ou então fala de Turquia e diz que ninguém sabe quais são as fronteiras da Europa. Ou então disserta em ciência infusa sobre a guerra e paz, as suas causas e efeitos, bem como a terapêutica para as mesmas. Ou então a importância da vida sexual para a felicidade. Ou ainda a relatividade das civilizações e das religiões. O estúpido é aliás especialista em exotismo.



É evidente que falar nestes temas por si só não denuncia o estúpido. Quem fala disto não comete pecado. Mas quem só fala disto e a esta receita apenas junta discussões sobre o que se encontra na despensa, nos programas de televisão e questões do seu trabalho, aí se encontra o estúpido.



O estúpido reconhece-se pois pela paleta temática em que se considera autorizado para actuar. Bipolar, para ele o mundo divide-se em temas inteligentes e temas do quotidiano.


Mas o estúpido é bipolar noutro aspecto. Não é pelo torpor ou pela excitação que se reconhece. Uma pessoa inteligente pode padecer de qualquer destes estados. O que define o estúpido, o que o denuncia, é passar de um estado a outro com uma grande rapidez. Comece o leitor a falar de temas realmente preocupantes como a violação de regras de etiqueta específicas. O estúpido quedar-se-á no seu torpor. Mas fale-lhe das fronteiras da Europa ou do tabaco, que o estúpido se levanta imediatamente. Aí está uma boa técnica para o reconhecer. O tema inteligente excita-o, porque se sente finalmente legitimado na sua existência. E o que era um silêncio relativamente consolador para os seus próximos transforma-se com rapidez num discurso em torrente.



Anatole France dizia que tinha mais medo de um homem néscio que de um homem cruel, porque ao menos o homem cruel descansa algumas vezes. Bipolar, o estúpido caracteriza-se pela sua infinita coerência. Mesmo a pessoa mais inteligente tem dias de estupidez. O estúpido é a coerência incarnada, constante, perseverante na sua natureza. Diabólico, em suma.



O estúpido descobre-se sempre em alguém que recorrentemente diz que gosta de coisas práticas. A obsidiante enunciação de um dever é sempre confissão de uma carência. Se diz que temos de ser práticos é apenas por não o ser. Um homem inteligente é prático na actuação, não precisa de atirar o mote à praça pública. O estúpido vê em tudo fundamentalismos, porque tem horror à fundamentação. Escapa-se-lhe o que seja e para que sirva.



O estúpido é igualitário. O mundo para ele mede-se todo com a mesma medida, a da sua limitação. Fala de tudo, tem ideias sobre tudo, e manifesta a mais absoluta coerência na matéria: todas elas são estúpidas. A estupidez é violação. Barulho, pancada, violência. Precisamente o que caracteriza a discussão no espaço público actual, em que todos sabem o que é a Europa mesmo que não derivem, demonstrem, declinem ou declamem. O estúpido concentrou-se na discussão europeia exactamente porque quanto mais o tema o ultrapassa mais ele se sente à vontade para o abordar. O mundo escapa-se-lhe e quanto mais se escapa mais ele se sente no mundo. Como o tema complexo por excelência é a Europa assim o estúpido se sente nele à vontade. O seu à vontade a dissertar sobre a matéria apenas demonstra até que ponto a questão o transcende.



Como o evitar? Esta uma questão mais difícil não na resposta, mas no seu custo. Como o evitar? Ficar em casa e desligar o contacto com o mundo. Os romanos têm um provérbio que diz “la madre dei imbecili è sempre incinta”, a mãe dos imbecis está sempre grávida. Se o leitor quiser ter vida social não os pode evitar. Como a doença, os cataclismos naturais ou a morte, o estúpido é uma inevitabilidade da vida.



Como se defender dele? Dê-lhe um leitor uma pancada na cabeça. Apenas o reinstaura na sua natureza. Acto de piedade, entenda-o como uma dádiva. Faz o estúpido retornar a casa, à sua natureza primeira. Alguém que, mesmo que não mereça levar uma pancada – questão discutível – faz bem que a receba. Se não a ele, pelo menos a quem a dá. Criatura barulhenta, perturbadora do silêncio, violadora por natureza, e nascida para o mundo de uma pancada, precisa de ser lembrada do seu estado natural e do seu merecimento efectivo. Não lhe responda o leitor. Mantém a criatura na ilusão de que participa no mundo dos comuns mortais. Responder é socializá-la. Dê-lhe uma pancada e repita a dose, tanto quanto seja necessário. Por mais estranho que lhe pareça, as garantias do Estado de Direito protegem à saciedade o estúpido. Mas mesmo que o Estado não perdoe o leitor, parta confiante para a acção, sabendo que Deus, na sua infinita sabedoria, não se sentirá identificado com o estúpido.


Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

É a ciência cultura?

Entrando em qualquer livraria e procurando livros de matemática ou física (mais raramente confesso, de química ou de ciências da vida) apenas os encontro sob a epígrafe de “livros técnicos”. Quando muito, livros de divulgação encontro-os numa secção de divulgação científica. Consoante a dimensão, qualidade ou especialização da livraria encontro literatura, História, arte etc. Cada um destes temas devidamente diferenciado.


Em programas de televisão, ciência apenas a encontro em programas de divulgação científica, ou quando muito numa entrevista – forçosamente em termos algo ligeiros – a um cientista famoso. A maioria dos programas ditos culturais trata de literatura, ciências humanas ou mesmo curiosidades ou viagens turísticas.


Este traço que marca o espaço público europeu sempre me intrigou. Repare-se que neste aspecto a Europa é bem melhor que o resto do mundo. Ao menos estes programas existem, ao menos têm uma visibilidade acrescida na Europa, ao contrário dos outros continentes. Mas como com o mal dos outros bem podemos nós, gostaria de apresentar algumas reflexões sobre o que isto significa para o definir o espaço mental do homem público.


É que este espaço público me parece formado por uma imensa ilusão, um conjunto de equívocos, que formata a sua argumentação, que lhe atribui uma falsa legitimidade para discorrer, que assenta em premissas todas elas distorcidas. Vejamos quais.

A cultura é humanidades. A ciência não é cultura, é apenas uma técnica. Ou, na melhor das hipóteses, uma especialidade. Quando alguém se quer cultivar lê poesia, romances mais ou menos intelectuais, vê filmes, ouve música. Mas esta atitude tem dois vícios. Em primeiro lugar, resta saber que humanidades estão aqui em presença. Na maioria dos casos duvido que estes humanistas saibam duas regras do latim ou grego clássico, as regras de poética, ou análise musical. Na maioria dos casos, o percurso pelas ditas humanidades é apenas passageiro, em que lugares comuns se sucedem uns aos outros (“códigos”, “linguagem”, “discurso”, “estruturas”, “valorações”, “representações”, etc.). Lugares comuns esses que em acréscimo têm o demérito de serem velhos quando se julgam frescos.


Em segundo lugar, reverso desta medalha é o de que a ciência despreza as humanidades. É pelo menos o que dizem os cientistas menores. Sempre que vejo alguém com formação científica dizer que “letras são tretas” lembro-me dos grandes cientistas, como Maxwell, Heisenberg, Schroedinger, Berthelot, para citar apenas alguns, que tinham um profundo amor pela arte, pela literatura, pela filosofia, pela música, ou por todos elas de uma só vez. Quando vejo um mestre do estilo que era um Poincaré ou um Pascal percebo que alguém que não sabe escrever é em geral fraco cientista. Ao desprezo folclórico dos não cientistas corresponde um desprezo igualmente étnico dos (maus) cientistas.


O outro sofisma é o de que só as ciências exactas e naturais têm arcanos, tudo o resto é facilmente transmissível, e mera questão de opinião. Afinal a cultura é acessível e é apenas questão de predisposição ou interesse, não de capacidade ou trabalho. Uma das reacções a este fenómeno é a tendência que certas ciências humanas tiveram para o barroco durante décadas. As estruturas mergulham, emergem, ficam em banho-maria, são objecto de tortura, marinam... toda a espécie de cozinhado era legítimo, incluso o abuso das ciências ditas exactas, cujo vocabulário foi apropriado e em erro palmar. O caso Sokal demonstrou-o à saciedade, como a fraude e o abuso irrompeu nas ciências humanas. A outra tendência para criar arcano é a do arcaísmo, de que mais sofreu a História. Em que se vê uma tendência irritante para se falar em “mesteres” em vez de profissões, ou de “El-Rey” em vez do “rei”. A verdade é que a História é das mais difíceis ciências que possa existir. Tem um método muito difícil de ensinar e exige uma maturidade de percepção da vida humana simultaneamente proba e universal. Conciliação difícil. Mas é precisamente onde todos se sentem autorizados a pisar. Literalmente. Os arcanos das ciências humanas existem. Basta pensar na complexidade da morfologia histórica ou na imensa complexidade da análise histórica.


Em conjunto e em consequência, surge um outro sofisma. A cultura não reveste carácter técnico. Vive ao sabor do espontâneo e do sentimental. É evidente que isto nunca é confessado desta forma. Mas o pano de fundo é tão planamente este. Cada um tem a sua opinião e nada a fazer. A turba decidiu o que é Europa e nada a fazer. Nada leu das fontes, mas já sabe quais elas são. Das humanidades todos estão autorizados a falar, todos se sentem com opinião própria. Quais são as fronteiras da Europa, quais são as características da Europa. Antigamente este era desporto de aristocratas de província com presunções intelectuais. Hoje em dia todos se acham no direito de ser tão destituídos quanto o fidalgote de província pretérito. No que têm razão, mas é razão que não os eleva.


A ciência é meramente utilitária, mera prestadora de serviços. Por isso basta pôr dinheiro na investigação para se obterem resultados. Há SIDA? Arranja-se cura em data certa desde que se atire dinheiro para a investigação? Não se descobre cura? Apenas falta de investimento, logo, há falta de vontade política.


A cultura comunga da política por circular no mesmo espaço (televisivo, de venda de livros, de discussão). Esta ideia falsa é reforçada pelo facto de a maioria dos políticos terem formação humanística e mesmo quando a têm científica, não a revertem no seu discurso.

Qualquer cientista avisado chama a atenção para o facto de as classes políticas, dos jornalistas e das populações decidirem em tema científico sem conhecerem uma linha do que seja a ciência. Mas o problema não se reduz à ignorância do objecto, ao facto de a ciência ser objecto de decisão política. É que a ciência deixou de ser paradigma de método na decisão política. Se nunca o foi em exclusivo (e ainda bem) deixou de o inspirar (péssima conclusão).

O que é a ciência? É dialéctica controlada, é aventura sindicada, é extrapolação regulada.

Uma visão primitiva da Historia da ciência diz que os senhores cientistas foram buscar à natureza para depois meterem nos laboratórios. A verdade é que o contrário se passou também. Quando no início do século XIX Berzelius quer reduzir a mineralogia à química tenta demonstrar, na medida em que o poude, que com os minerais se passava o que ele observava no laboratório. A História da ciência, sobretudo a experimental, europeia, foi feita sempre desta dialéctica controlada.


O afastamento do paradigma científico por um paradigma mágico faz das nossas democracias um espaço que tem horror à dialéctica controlada. Não há dialéctica, mas discursos sobrepostos, não há sindicância, mas apenas incontinência. E quando um espaço público é constituído de uma mera sobreposição insistente a acumulação é a do detrito e em vez de tesouro temos lixo.


Mas a ciência é aventura. Só é cientista quem procura sustentadamente o desconhecido. Os outros podem ser quando muito pessoas de cultura científica (nada mau) ou meros burocratas da ciência. O abatimento do paradigma científico significa que ou o homem público se atira ao desconhecido de forma infundamentada ou, o que é mais comum, se agarra ao seu folclore, e às suas ideias feitas. O problema é que ambas as negações se verificam na nossa época. De tanto se agarrarem ao folclore a que estão habituados (basicamente, os quadros da guerra fria, em que a Europa é a Europa NATO, a Rússia é nossa inimiga, a Europa não é uma civilização, mas uma aliança) são os mesmos aldeões que nos afirmam o que lhes é apenas desconhecido.

É igualmente extrapolação regulada. Nenhum cientista analisou todos os fenómenos, nem sequer todos os da mesma espécie. É impossível. Não assistiu a todas as quedas de graves que no mundo se passaram nem a todas a criações de antipartículas. Tem por isso de extrapolar. Mas fá-lo com regras.


Um espaço onde a cultura científica é falha é um espaço sem dialéctica, sem aventura ou sem extrapolação. Onde tudo se reduz ao diktat, ao caseiro ou ao denotativo. Ou então onde elas existem sem controlo, sindicância ou regulação. Tudo se traduz a mero empilhamento de fonações, à temeridade atrevida ou à mera generalidade. É um espaço caótico e em boa verdade da pura intolerância.


Este espaço da intolerância que nega o seu nome é o da aldeia global, em que o adjectivo apenas está para significar o seu lado totalitário e tirânico e o substantivo é o imperante: uma aldeia, como tudo o que isso significa de isolamento, pequenez e mero folclore.


Alexandre Brandão da Veiga

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