quinta-feira, 16 de junho de 2011

Quem são os artistas?

Cada um tem a sua história e o seu gosto. No meu caso confesso ter sempre preferido a gnoseologia, em especial a epistemologia, e, em épocas variáveis, a metafísica à ética e à estética. A penúltima sempre me pareceu algo arbitrária sem um sustento religioso e a segunda algo mais esparsamente elaborada que as primeiras. Mas a verdade é que há épocas para tudo na vida e a seu devido tempo acabei por me decidir a estudar algo de estética.

Reconheço que não foi um frete, mas seria igualmente exagero considerá-la uma paixão. Um trabalho necessário e frutuoso sem dúvida, pouco mais, e já não é ser pouco. A verdade é que no meio de tantas teorias, ora genialmente elaboradas mas como que nas fronteiras dos grandes sistemas, ora centro de preocupação mas com destrinças algo bizantinas para o meu gosto, tentei orientar-me para dar um assento simples para algo que sabia ser sumamente complexo.

Se algo caracteriza a arte, pensei, é o facto de se tornar presente. A realidade por vezes escapa ao homem e existe sempre um ruído de fundo que nos avisa da relativa dissonância que existe entre o facto de estarmos por aqui e isso tornar-se-nos vivamente incarnado. Para regular esse desvio o homem criou a arte. Torna a realidade real, torna presentes as coisas. O ex-voto é assim uma das pedras fundadoras da arte.

Tornar presente tem sempre três momentos: quem torna presente, o que se torna presente e para quem se torna presente. A situação paradigmática da arte encontra-se na adoração dos reis magos. Mostra que o mais importante é sempre para quem se torna presente. De seguida o que se torna presente. E o menos importante quem dá o presente.

Uma arte que tem o destinatário como centro, desde que este seja o merecedor por excelência é uma arte de grandeza. Uma que se centre no presente é uma de pertinência. A que se centra em quem dá é folclórica. Não é por caso de quando os reis magos se transformam em figura principal do presépio é sinal de que a teologia foi destronada pelo folclore.

O problema é que o folclore redunda rapidamente em comércio quando os reis magos passam a ser substituíveis. Por Pais Natal nomeadamente. Quando o que se dá é centro, mas se torna obsessão, a arte transforma-se em feiticismo. E quando a quem se dá presente passa a ser medíocre a arte passa a ser mera adulação. Comércio, feiticismo e adulação são os três estados tristes da arte.

A herança romântica deu-nos o artista como centro. Os classicismos a coisa em si. E o barroco o destinatário. Cada um deles tem o seu mérito, mas cada um o seu perigo. A verdade é que é a avalanche romântica que ainda nos domina. A arte considerada legítima centrou-se no criador, geralmente a pessoa menos interessante para falar dela e com frequência pessoa pouco interessante em si mesma. Ou seja a arte tendeu a ser folclore.

Mas se assim foi enquanto o artista era insubstituível, quando passa a ser reprodutível passa a puro comércio. Nunca tanto se bradou pela pureza da arte e nunca tanto esta passou a ser comercial. O que há que ver é que espécies de Pais Natal nos aparecem sob a figura de artistas.

Em primeiro lugar são pessoas que “não ligam”. Seja a convenções, seja aos outros, seja às pequenezas da vida, seja à opinião do público. Como nestas coisas os sentimentos são recíprocos, nunca tão pouca gente lhes ligou a eles. Se o Estado os subsidia fá-lo não a vidas de abandono, mas com frequência a vidas de abandonados.

Em segundo lugar são pessoas profundamente preocupadas, que gostam de dizer que andam profundamente preocupadas. O que é estranho para quem não liga às coisas. O que só pode ter alguma coerência caso a sua preocupação seja destituída de conexão. E portanto para não ser muito levada a sério.

Em terceiro lugar são pessoas com sentimentos, pessoas que são movidas pelos sentimentos. O que é razoável na devida dose, mas que corre sempre o risco de criar tartufos quando é permanentemente exposto. E sentimentos geralmente algo malcriados, em que se indicam recorrentemente os sacrifícios e os custos em que incorreram para nos ofertar a obra de arte. Como o oferente malcriado que nos lembra o preço do presente e quanto custou encontrá-lo.

Em quarto lugar, se bem observarmos o espécime típico, são pessoas de expressão espasmódica, do esgar, do olhar virado para o tecto, em que o discurso não fluí, mas é entrecortado por auto-concentração, como se buscassem algures na alma, mesmo no fundo da alma, algo para dizer. O que não é bom sinal, porque quando é necessário ir buscar ao fundo da alma algo que dizer, quer isto significar que se trata de um poço com reservas esgotadas, de colheita difícil. O seu paradigma não é o rio que corre, mas o poço no meio do deserto, de onde se retira o líquido a custo. Mesmo que o espasmódico seja calmo, isto quando não é realmente ciclotímico, mostra que a sua vivência é entrecortada, descontínua, e portanto fracturada. São convalescentes da existência, pouco saudáveis, a recuperarem do facto de existirem.

Tendo exposto este quadro clínico, facilmente verificamos que a arte, e isto é tanto mais verdade quanto mais afastada do êxito de audiência, tende a ser cada vez mais comercial. Centrada no autor deixou de ser folclórica, porque os personagens passaram a ser substituíveis. Contestou os heróis e foi por isso engolida por essa contestação. O artista passa a ser um produtor comercial, fungível, um entre tantos. Perdeu o estrelato.

Comercial?, saltam já algumas almas caridosas? Como, se é tantas vezes contestatária, marginal, fora dos circuitos comerciais? Ora essa, respondo, comercial sem dúvida. Se incompetente, inepta também sob o ponto de vista económico, apenas mostra mais uma sua fraqueza e não uma escusa da qualificação.

Comércio inepto, centrado em produtores desligados, preocupados não se sabe bem com o quê e porquê, proclamadores de sentimentos e de expressão espasmódica. Que arte é esta? Que efeitos pode trazer ao espaço público?

Não vou dizer que uma arte na sua versão menos adulterada serviu sempre a verdade. Não foi de verdade que falei, mas de tornar presente. Se inepta, apenas deixa de preencher a sua função de tornar presentes as coisas. Uma arte inepta começa por ser uma arte desautorizada. Nunca se levou tão pouco a sério os artistas. Mesmo que se possa dizer que os concretos que temos o mereçam muitas vezes, este não é facto que nos deva causar regozijo. Uma sociedade com artistas desautorizados é uma sociedade que desautoriza o próprio facto de tornar presente, de conferir realidade às coisas.

Aqui é difícil destrinçar quem foi a causa quem o efeito. Se os artistas se desautorizaram e desautorizaram o próprio facto de tornar presente na sociedade, ou se o facto de esta ter desautorizado este facto desautorizou os artistas. Ambas as hipóteses devem ser verdadeiras em graus diferentes consoante as épocas. O fundamental é que se a arte sempre serviu a propaganda, mesmo quando o fazia, as origens que tornavam as coisas presentes eram identificáveis. Podiam ser por isso mais facilmente atacáveis. A arte não escapou à deslocalização, à massificação, aos fenómenos do comércio. A autoria evanesce de tanto o autor fungível ser importante. E por isso se a arte perde a sua função de propaganda dirigida, perde também o seu papel identificador. Significativo o facto de à explosão de movimentos de ter seguido a sua quase desaparição. Cada autor gosta de afirmar que não pertence a nenhum movimento, ou pertence a vários.

Deixando de ser propaganda não colabora com a mentira, mas em nada ajuda a verdade. Apenas passou a ser inepta, mais um elemento na paisagem do espaço público dissolvido e mole. Se antes podia manipular, podia igualmente impedir a manipulação. Hoje não faz nem uma nem outra coisa.

O homem público não podia negar nem Vénus nem a Madonna ou o vitral. Estavam presentes, tornavam a realidade evidente. E evidente o passado indo-europeu da Europa. Se se alimenta dele ainda hoje, a arte apenas o obnubila.

Num espaço público em que ninguém assume a função de tornar presente, seja a verdade, seja a mentira, tudo é manipulável, a realidade esvai-se. Por isso é fácil afirmar que os tapetes de Antalya ou Izmir são Europa. Com artistas perpetuamente demissionários, temos mais um elemento que forma o caldo da manipulação do espaço público. Quando contestam, contestam o que é fácil contestar e por isso nem geram escândalo, nem são ouvidos.

Qual a solução? De preferência que os artistas tomem a iniciativa de tornar de novo presentes as coisas. De preferência a verdade. Se ainda forem capazes. E se para isso não lhes falhar a coragem.

Alexandre Brandão da Veiga


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quarta-feira, 8 de junho de 2011

António Manuel


Conheci-te no I Congresso dos Jornalistas Portugueses, no início dos anos 80, na Gulbenkian.
Ali estavam os homens da imprensa, os rapazes da rádio e as meninas da TV.
Tu trabalhavas na RDP com um grupo assombroso de jornalistas onde pontuava Fernando Alves. Eu ainda andava na Faculdade.
A esquerda de Abril tinha aberto as portas das redacções e a Democracia definiria rapidamente uma fronteira entre os que teriam voz e os que ficavam na prateleira, alternadamente. A maioria dos media era propriedade do Estado o que facilitava essa arrumação. Numa cave da Estefânea, a TSF de Emídio Rangel fazia emissões experimentais clandestinas.
Gostei daqueles dias em que pude conhecer os injustiçados do momento. Lembro-me do cuidado que tinhas com os que não iam à Bicaense, por falta de verba, e só apareciam para o café. Lembro-me da tua calma e da capacidade de fazer pontes. Lembro-me do sentido de humor e do que ríamos com as historias caricatas do jornalismo português.
Fiquei com pena quando, mais tarde, soube que tinhas decidido ir trabalhar com os socialistas. Mas mantiveste intacta a afabilidade, a vontade de esclarecer e de fazer pontes nas conversas que tivemos de cada lado da linha.
Faria depois uma escolha parecida com a tua mas sem contacto com jornalistas para não cruzar registos. Não saberia fazê-lo como tu. Não saberia manter-me, como tu.
Que Deus guarde a tua alma.

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quarta-feira, 1 de junho de 2011

A grosseria como modo de governo

O primeiro-ministro italiano chama nazi a um deputado alemão. Intervém na televisão pública interrompendo um programa de futebol, invocando a sua qualidade de primeiro-ministro. Diz que o islão é uma cultura inferior e depois diz que a Turquia tem de entrar na União Europeia (vê-se assim o calibre dos defensores desta ideia). Em Portugal um ex-primeiro-ministro insulta deputados lembrando o seu passado criminoso de revolucionários de esquerda e leva uma resposta na mesma medida. Um político da oposição ataca um ministro com artigos que ele escreveu há vinte anos atrás, ao que este responde na mesma moeda. O dito ex-primeiro-ministro e o citado ministro batem as palmas das mãos no parlamento como jogadores de futebol americano. Um presidente de câmara distribui frigoríficos, outro dá pontapés num estádio de futebol, outra foge à justiça. Dois ministros saem de consciência tranquila depois de acusados de uma reles cunha.

Já nem refiro exemplos internacionais, nomeadamente americanos. O espaço público é invadido destes exemplos.

Argumentam-me que estão sujeitos a grande pressão. Do espelho suponho. Porque a verdade é que conheço pessoas sob pressão que são grosseiras e outras que não o são. O que faz a diferença entre elas não é estar ou não sob pressão. É serem ou não... grosseiras. É disso que se trata.

Confesso que ainda seria (a custo) suportável o facto de estarem bem longe de serem belezas clássicas. Menos admissível que sejam destituídos de grande inteligência ou qualquer cultura. Que sejam grosseiros de aspecto é facto que já nos provoca anestesia. Mas que sejam grosseiros de modos, que o atrevimento, a má-criação passem das suas casas, bastamente habituadas ao espectáculo, e nos ofereçam de bandeja aquilo que são, começa a ter significado político.

Os políticos sempre foram acusados de hipocrisia. Agora pelo contrário mostram-se como são. Devemos assim reflectir se queremos sempre a sinceridade no espaço público. Se sob o ponto de vista pessoal o fenómeno é de despudor, sob o ponto de vista político mostra que a ágora se transformou em cozinha. O povo quis que os políticos fossem populares, espontâneos, os meios de comunicação social incensaram esta ideia, e obtivemos a satisfação deste desejo. Se os políticos são grosseiros no espaço público é tão simplesmente porque são grosseiros.

É que há certas coisas que não se justificam nem se desculpam nem sequer a posteriori. Pura e simplesmente não se fazem. Não devem existir. Nada mais.

Que o fossem no espaço privado era fácil de adivinhar. Basta ter olhos de ver, para se perceber que não são grandes aristocratas. Mas coisa bem diferente é terem invadido o espaço público... com o que são.

Tentemos avançar mais um pouco.

É que os políticos não se apresentam apenas na glória da sua grosseria. Apresentam teorias justificativas do seu comportamento. Uns afirmam que os actos foram reflectidos. É grave, na medida em que mesmo com reflexão só chegam a estes resultados. Além de grosseiros, com fracas capacidades de reflexão. Outros que é campanha contra eles. Grave igualmente, dado que estão a afirmar que a grosseria própria se explica pela alheia, o que só pode ser verdade se os alheios forem os pais. Outros afirmam que apenas são espontâneos e não hipócritas, e isso leva-nos de novo a reflectir se queremos que, políticos que são assim, sejam como são no espaço público.

A grosseria passou a estar no espaço público e que em consequência o espaço público passou a ser um campo de grosseria. Vemos agora que a grosseria criou uma teoria política própria. Pobre, mas própria, ou talvez pobre porque própria.

É que há certas coisas que depois de feitas é melhor nem serem referidas. Não se pede desculpa por se ter arrotado. Facto lamentável, é sempre melhor fazer de conta que não existiu. Já que entrou da História, ao menos que seja esquecido.

Demos um terceiro passo.

Confesso não saber como cuspir na rua. Não se trata de um imperativo moral. De algo em que me tenha de conter porque sei ser ordinário. Não me implica esforço. Pura e simplesmente desconheço a técnica. Não vi como se fazia, a não ser ao longe, e por pessoas que se distanciavam do meu mundo pelo simples facto de o fazerem. Os meus pais não me transmitiram essa ciência. Em conclusão: falta-me a técnica.

Mas, mais importante que isso, inexiste no meu mundo. A educação não significa apenas alargar. Significa igualmente afastar do nosso mundo. A fome de crueldade, o desejo de vingança, o desrespeito dos outros, em suma, as várias formas de grosseria, fazem parte do elenco dos instintos naturais dos homens. Não carecem de grande formação para serem exercidas, apenas para o serem com requinte. Uma educação supostamente tem como papel igualmente afastar do mundo pelo menos algumas misérias da alma humana. Quando se diz que alguém é incapaz de inveja a nossa tradição europeia vê isso como um elogio. Algumas incapacidades são méritos. Em grande medida porque é mais fácil ter a capacidade correspondente que dela ser destituído.

O espaço público está repleto portanto de sobredotados... para o lado errado da vida. Pessoas espontâneas, que se apresentam como são, com uma grande cultura técnica, manifestando aspectos da vida não realmente inovadores, mas diversos.

Um espaço público decorado de grosseria, com uma teoria política subjacente e uma sobreabundância de vida. Três elementos já referidos.

É que há certas apetências que é melhor não se ter. Quem as tem, que as ampute, ou ao menos as contenha. Já que estão lá que se faça ao menos conta que não existem.

Falta um quarto passo a dar.

É que a questão não é apenas de bom-tom, de boa sociedade, embora no que me respeita isso já lhe dê importância bastante. É que a própria forma de fazer política, a técnica, o instrumento político se transformou em grosseria. Sem ideias, sem berço, sem projecto, o espaço político transformou-se no espaço da gestão da grosseria. A grosseria não é um seu episódio, mas um seu fundamento, e o seu instrumento privilegiado.

Tenho plena consciência do que digo pode passar por exagerado, mera vontade de caricaturar, pura arbitrariedade. Ou então de que afinal, trata-se “apenas”(!) de uma questão de boas maneiras, sem grande relevância na decisão política. Mas gente com modos grosseiros e aspecto grosseiro tem o teimoso hábito de ter sentimentos grosseiros, desejos grosseiros, aspirações grosseiras, ideias grosseiras. Tudo o que subjaz à decisão política. E se as finalidades da política forem grosseiras os efeitos sê-lo-ão igualmente. A longo prazo são os homens do bem comum que deixam obra feita na História. Os desesperados e os grosseiros (são duas formas de dizer a mesma coisa no espaço público), deixam apenas um rasto. O de Átila, o seu paradigma. Ou o dos bobos da corte, um outro. Antes os reis tinham bobos, hoje são os bobos que esmagam os reis. E as decisões estratégicas a que assistimos, com uma Europa fracturada, subserviente ou timorata mostram o resultado prático dessa grosseria.




Alexandre Brandão da Veiga

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