terça-feira, 26 de abril de 2011

Como nos verão os vindouros?

É um exercício simultaneamente arriscado e divertido proceder a este tipo de ponderação. A impunidade presente é compensada pela condenação futura de um eventual leitor que tenha a paciência de ler o que escrevo daqui a cinquenta ou cem anos. Para o qual pisco o olho antecipadamente, é óbvio.


Mas assim como fazer cartas persas permitiu, pelo distanciamento geográfico, ver o mundo onde estamos, da mesma maneira afastarmo-nos um pouco no tempo para o futuro permite-nos ver com maior perspectiva o que somos.


Como aparecerá a nossa época aos olhos dos vindouros?

Para começar uma época muito fechada sobre si mesma. Desprezando o passado, pudibunda na projecção do futuro.


As épocas míopes vêem-se mais pelo que desprezam no seu passado no que a ela estão agarradas. Para um romano os seus maiores eram referência. A decadência em relação aos tempos primevos da República foi sempre tema recorrente desde a maturidade da mesma até ao fim do Império. A cultura cristã, para se impor na cultura antiga, teve de salientar a sua antiguidade por estar ancorada no judaísmo. Lembremo-nos que uma das acusações que se lhe fazia era a de novidade. Uma acusação, entenda-se, não um mérito. E no entanto, ninguém pode negar o papel de Roma na História.

A nossa época é pouco inteligente no seu conjunto e pouco criativa. Pergunte-se pelo Bach, o Dante ou do Rafael da segunda metade do século XX que ainda hoje vivemos. Mas está pronta a ter um olhar condescendente em relação ao seu passado. A verdade é que o cidadão comum, (e falo de políticos, universitários, homens da comunicação social, por exemplo) é incapaz de perceber uma linha de Duns Scoto e sumariamente frequentou Platão no liceu. É incapaz de perceber a primeira linha dos Elementos de Euclides, e muito menos as Disquisitiones Arithmeticae de Gauss. E no entanto, sente que esses senhores de toga, peruca ou hábito são algo ridículos porque não tomavam banho todos os dias nem apanhavam aviões.


As projecções de futuro reduzem-se a uma ficção que se apelida de científica, mas em bom rigor é meramente tecnológica. O que nos apresentam são culturas, não mais sábias, mas que viajam mais depressa, curam melhor as doenças, mesmo se se vestem com um gosto duvidoso. A incapacidade de antecipar, de imaginar novos gostos, novos valores, novas formas de comportamento, é evidente. Imitações boas ou más (geralmente más) da Antiguidade, da Idade Média repetem padrões, não os criam. A nossa época gosta de lustro. O projecto político, a antecipação realmente estratégica, essa quase inexiste. Tirando o projecto europeu, tão mal tratado pelos seus usuários, nada de futuro, de nova ideia se apresenta na política mundial.

Em segundo lugar uma época que quer sair de si geograficamente. Se é fechada no tempo e se encosta na sua ilusoriamente perene contemporaneidade quer sair do espaço onde está. Os não europeus ou se pretendem europeus ou querem imitar o padrão primeiro ou as versões revisitadas (americanas). Os europeus querem deixar de sê-lo, ou têm vergonha de dizer que o são, ou sobretudo porque o são. Mais que as viagens físicas, a migração cultural é aflitiva, desesperada, desencontrada.


Um pateta lê um livro, não sabe uma palavra de sânscrito ou pâli, e toca de dizer que é budista ou adorador de Krishna. Outros inventam neopaganismos que têm mais similitude com a banda desenhada que com o verdadeiro sacrifício humano. Outros fazem-se adoradores do diabo, ignorando que ele não perde tempo com medíocres. Há muitos candidatos a vender a alma, mas a procura é exigente e majestosa. Analfabetos não lhe interessam. Outros ainda encontram no Terceiro Mundo culturas integradas, onde as pessoas vivem alegremente imersas numa cultura. E daí criticam a cultura europeia por não ter essa capacidade de integração do homem na vida. Autobiográfico empedernido o turista fala sempre do seu próprio umbigo.

A terceira característica que vai encontrar é a superficialidade. Tudo está tão facilmente disponível que muita pouca coisa é realmente absorvida. O argumento é bem sabido: antigamente havia tão pouca coisa que saber que era fácil saber de tudo, hoje em dia há tanto que isso não é possível. Realmente... Mas quando pergunto que opção fez quem diz isto, se se dedica apenas a Jâmblico já que não pode estudar toda a filosofia de língua grega, ou apenas a Desargues porque não pode saber toda a geometria, ou apenas Burke, dado que toda a teria política lhe é inatingível, e estas perguntas podem ser alargadas até ao infinito, a resposta é invariavelmente que nada foi estudado.


A bíblia da época está nos anúncios publicitários, nas frases tão rápidas nos debates que se reduzem à condição de meros slogans, sem demonstração, simples expressões tabeliónicas de revisor oficial de contas, em jornais, em sítios da Internet que se vasculham distraidamente. E estudo, a releitura, a memorização, a atenção deixaram de ter espaço nobre na nossa cultura sendo reduzidos a uma semi clandestinidade.


A quarta, o desenvolvimento material, sobretudo tecnológico. No entanto, não podemos esperar que os vindouros nos idolatrem nesta matéria. Em primeiro lugar, porque é natural que estejam mais desenvolvidos tecnologicamente que nós. Admiraram a aceleração, mas não se sentirão esmagados pelos resultados. Por outro lado, é verdade que a Europa, mais que qualquer outro continente, conseguiu um equilíbrio entre prosperidade económica e redistribuição da riqueza raro na História. Mas essa era está a esgotar-se, pelo menos no modelo inicial. É comum os eruditos admirarem grandes realizações materiais. Os turistas fazem-no também por breves momentos. Mas ainda hoje em dia é mais comum a paixão pelos gregos que pelos romanos. É que as obras que tocam o coração humano e o seu espírito deixam marcas mais profundas e mais excitantes. E a nossa época anda algo falha de Leibniz.

A quinta, o medo da vida. Timoratos, queremos ser imunes a tudo, à doença, à vida, à morte, à guerra, ao desemprego, à miséria, à velhice. Nós, que nos julgamos os últimos juizes, esquecendo-nos que essa situação é por definição verdadeira mas rapidamente caduca, achamos os nosso juízos definitivos. As cruzadas são condenadas pela opinião corrente, mas esquecemo-nos que ainda há um século atrás eram vistas como heroísmo e glória europeia. O Islão é agora religião de tolerância quando secularmente (em 1960, por exemplo, a biografia de Beaumarchais pelo duque de Castries ainda identificava islão e fanatismo, como é longa tradição europeia).


Muitos de nós se riem da toga romana, da peruca da Europa clássica, da cota de armas cruzada. Esquecemo-nos que o futuro se vai rir de nós, com a diferença que tenho francas dúvidas que sinta uma imensa admiração. A toga romana produziu Virgílio, a Europa clássica Bach a cota de armas cruzada produziu Dante. As nossas calças apenas se borram. Sem heroísmo, sem projectos de longo prazo, com um sorriso alvar e condescendente típico do novo-rico perante tudo o que é sério, eterno, ou absoluto, o pateta contemporâneo passeia-se no transitório e julga-o definitivo. Mas, sabendo que não o é, e porque tem tanto medo de morrer como de ser eterno, diz que a morte e a eternidade têm o mesmo valor, ou seja nenhum.


Os vindouros, esses, rir-se-ão uns, ou terão piedade outros, de tanta estreiteza, de tanta obcecação com o presente, tanta ânsia de se estar onde não se está, de tanta superficialidade e distracção e de tanto mal-estar perante conquistas técnicas que afinal foram gloriosas mas tornaram-se banais. E o riso só não será maior caso respeitem um pouco mais os seus antepassados que nós. A nossa redenção estará em serem eles o oposto do que nós somos.

Alexandre Brandão da Veiga


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sexta-feira, 8 de abril de 2011

Para que serve a arte?

Confesso que nunca concordei com a pudicícia que leva a traduzir “Israel” como aquele que lutou contra um anjo. Se “el” significa recorrentemente Deus, é estranho que só com Israel a tradução seja diversa. Daniel é “Deus é o meu juiz”, Miguel é “Deus é o meu rei”, Manuel o “enviado por Deus”, Parente do “ili” babilónio (Babel, Bab-ili, é a “porta de Deus”) e do Alá árabe (são todos semitas afinal) seria natural que a tradução corrente fosse a de “aquele que lutou com Deus”. Não é para todos, mas nem sempre é pecaminoso. Sendo dos episódios mais estranhos do Antigo Testamento, ainda não teve a mesma profunda análise psicológica que Job teve com Jung.

O que têm estes considerandos a ver com a arte?, pergunta o leitor mais apressado. O que tem a ver com o espaço público?, insiste o que preza as coisas directas.

Já antes o tinha confrontado com algo de muito simples, o facto de a arte ter como papel o tornar presentes as coisas. Essa a sua razão de ser e essa a sua bitola. Nesta perspectiva a arte é guerreira, invasiva. A arte é por definição bélica. Hesíodo n’”Os Trabalhos e os Dias” insiste na ideia de que a vida é luta. Camponês e guerreiro são parte da alma fundamental da Europa. São os seus símbolos perenes. A arte impõe-se-nos, luta connosco. Uma arte que não dê luta é uma arte fracota.

No entanto, qual é o discurso da arte e sobre a arte a que assistimos desde a segunda metade do século XX sobretudo? O espectador queixa-se de que não compreende ou que os outros não compreendem. O crítico fica satisfeito ou agastado pela incompreensão do vulgo. O artista sente-se incompreendido. A arte deixa de ter de ser centro de luta para ser centro de compreensão. A arte tem agora de ser compreendida, esse o centro da apreciação estética.

Quantas vezes não viu o leitor alguém sair de um filme, de uma exposição, da leitura de um livro e dizer: “não compreendi”, julgando que esse era o centro da questão. As pessoas postam-se perante a arte procurando compreendê-la. E a arte busca compreensão. A imagem antropomórfica da arte actual é a do adolescente, que procura ser compreendido. Perante uma arte com borbulhas considera-se que a postura adequada é a do assistente social. Uma arte púbere e em crise existencial atrai assistentes sociais. O curioso é que o que é problema, reconhecidamente problema, torna-se de repente mérito.

O segundo comentário a que assistimos é “gostei, não gostei”. Esse o discurso que gira à volta da arte. Nada mais. Como se a arte estivesse para ali postada para dar prazer ou não, e esse fosse o critério de apreciação último. Para o espectador comum, a arte, além de adolescente, é uma espécie de menina que é apreciada segundo um concurso de beleza. “Acho esta mais bonita, esta menos bonita”. A arte dá ao fruidor a vantagem de se sentir consumidor com poder, podendo escolher entre este sabor do gelado ou outro, entre esta cachopa ou outra. A arte não o põe em causa, a arte apenas confirma o seu poder. A teoria da escolha do consumidor invade o campo da apreciação estética.

O terceiro nível de análise do fruidor é o “este filme é melhor que outro, este escritor pior que outro, ah este disco é muito melhor que o anterior”. E por aqui se queda. A terceira postura do fruidor é a do júri de um concurso não fundamentado. O paradigma é agora desportivo. O pódio a sua maneira de hierarquizar. “E o vencedor é...”. E está tudo decidido. Nada mais há que dizer. A arte é um campo onde se encerra de vez um concurso. Quando muito pode-se esperar que reabra no ano seguinte.

O leitor mais avisado já compreendeu. Adolescentes, apreciações sumárias e não fundamentadas, poder do julgador...O paradigma da arte contemporânea é... o concurso de misses. A arte pode ser assim um percurso turístico, inessencial, em que se espera algum choro, mas em suma em nada determinante.

Isto para não falar no mercado da arte. O mecenas escolhe para o bem e para o mal como ser humano. O mercado de arte é um mecenas sem alma, apenas com licitações, em que se cria um produto vindo não se sabe de onde para dar valor não se sabe bem ao quê, com motivações que são a única coisa efectivamente palpável e cognoscível no meio desta imensa Babel.

Convenhamos: há mais dialéctica nos sorrisos de Sant’Ana, mais percurso de conhecimento, que nas infantilidades de Pollock. Há mais complexidade em Mondriaan que nas infantilidades de Andy Wharol.

Qual a alternativa que Hesíodo nos ensina? A arte é luta, como a vida. Fruto do superávite de energia que é concedido a alguns, sinal do privilégio dada à raça humana, a arte é um campo de batalha. Logo, de conhecimento. De sentimento, sem dúvida. Mas de emoção, apenas lateralmente.

Para enfrentarmos uma obra de arte temos de nos preparar como o guerreiro ou como o camponês. Juntarmos as armas e o arado e estar prontos para umas vezes ganharmos ou perdermos. O que faz a grande arte não é a maior fruição, mas a maior luta. Quando se vence facilmente é arte menor. Quando se lavra o campo sem dificuldade é mero passatempo. Pessoas sensíveis fazem massagens, não arte.

Retornemos ao espaço público, fazendo de conta que antes não falávamos dele. Que relevância têm estes considerandos para o espaço público?

É evidente que a arte tem (também) por mecenas os Estados. E os vários Estados europeus patrocinam a arte e certa arte, ou certas artes, por critérios e razões que são elas políticas. O nosso dinheiro de contribuintes é gasto em propaganda que tenta demonstrar que umas tantas culturas são europeias, ou pior ainda que não há cultura europeia, que tudo é difuso e afinal europeu é o que alguns homens querem. Resta saber quais.

Mas a relação da arte com o espaço público é bem mais profunda que a anedota do servo e o novo-rico a querer-se fazer de mecenas. É que – e isto é tanto mais verdadeiro quanto menos conhecimento de arte tem o homem no espaço público – a arte define o nosso espaço, para o bem e para o mal. A capacidade de tornar presente, a confiança na efectividade é muito determinada pela imagem da arte que nos é transmitida. Uma política cubista pode ser imaginativa, mas deixa-nos sem perspectiva. E quando o surrealismo invade a prática e o discurso político podemos começar-nos a assustar, porque o mundo de pesadelos deixa de estar contido na tela, para nos invadir a vida quotidiana.

Esta concepção da arte atravessa o discurso político. Perde-se um referendo? É simples. Os políticos foram incompreendidos. Têm de explicar a obra de arte que construíram. Construir a Europa? É uma questão de gosto. Uns gostam da Europa outros não. Assim como uns gostam de um partido outros não. E no final, no concurso de misses escolhe-se a mais bela, seja ela um partido político, seja um país asiático com presunções europeias.

Desde que explicada a arte é legítima. Contaram-me outro dia que numa exposição em Londres alguém expôs bosta de elefante, tel quel, como obra de arte. A obra é de magnitude e acredito que o autor se reveja na obra. Sou mesmo um fervoroso adepto que o faça ao ponto de nela viver. Da mesma forma que, desde que bem explicado, qualquer bosta de mamute se pode tornar em país europeu, desde que se manipule o valor da obra no mercado da arte. Faz-se propaganda, folhetos bem coloridos, e tudo se transforma no seu contrário. A contestação do contexto ficou bem a Duchamps. Era novo, fez pensar. Hoje em dia temo bem que apenas enfade... e cheire mal.

“Pai, afasta de mim esse cálice” remete para um mundo onde a arte é desnecessária. A presença é efectiva e plena. O facto de haver arte cristã é uma contradicção nos termos caso o plano divino estivesse plenamente realizado. O facto de existir é a demonstração de que é cristã na sua finalidade, mas careceu de um substrato não cristão onde assentar. Isso mesmo: o paganismo indo-europeu. Porque o cristianismo tem a maturidade de se saber um projecto. E hoje em dia qual é oficialmente? Os critérios de Copenhaga. Os tais que inspiram epopeias, alimentam dípticos e foram musas para um sem número de sinfonias. Não as incompletas, mas as desconhecidas. Instrumentos úteis, mas que, transformados em obras de arte, nos remetem para um mundo sem luta, e por isso de submissão, sem projecto substantivo, para o puro pesadelo, para o embuste e para a bosta.




Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 7 de abril de 2011

Topo de Gama!

«É caso para o Presidente da Assembleia da República dizer ao Deputado Jaime Gama: Senhor Deputado, terminou o seu tempo». Foi assim que, esta semana, Jaime Gama se despediu da Assembleia da República como Presidente e como Deputado. Custa-me aceitar que este «peixe de águas profundas», como um dia o definiu Mário Soares, saia da cena política. O tempo de Jaime Gama não acabou porque não começou. As suas capacidades políticas e pessoais são de primeira linha mas o casuísmo da partidocracia, mal casado com a oportunidade mediática, nunca o apurou para o topo. Na única vez que Jaime Gama se perfilou para a liderança do PS desistiu por ponderáveis razões familiares. Portugal perde com este desencontro. Por enquanto. Porque o seu tempo não terminou.

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