segunda-feira, 19 de julho de 2010

STABAT Mater







STABAT Mater dolorosa
iuxta Crucem lacrimosa,
dum pendebat Filius.

Quando medimos a grandeza de uma civilização temos de medir aos sues picos mais altos, mas igualmente a sua capacidade de reelaborar os dados de base. Que um evento do séc. I contado nesse mesmo século e no século seguinte dê uma poesia no século XIII, inspire uma música no século XVIII e audições no XXI é-nos tão trivial que esquecemos o que este mecanismo de transmissão tem tudo menos de evidente.

Que Pergolesi se tivesse deixado inspirar por este hino não é de espantar, se tivermos em conta a sua beleza. Que esta se tenha preservado numa cultura tantos séculos, viva o suficiente para meio milénio depois de ser feito ainda tocasse um músico, é que é de espantar.

O primeiro elemento, muito esquecido, é o da permanência da literatura em língua latina por mais de 1000 anos após a tão batida queda do império romano. Quando e diz que a língua latina é morta cada um sabe se fala da sua. Viva o bastante para inspirar obras-primas na musica.

Mas viva o suficiente para inspirar obras-primas na literatura também. Quando se fala na novidade do realismo como movimento, tendemos a esquecer-nos de que os seus instrumentos são seculares.

Stabat. Em bom latim dir-se-ia “erat”. E de boa forma se traduziria por “estava”. Mas em latim “stabat” tem um significado mais preciso, que um autor de poesia latina não ignorava. Não foi por isso por evolução semântica que teria usado um verbo incorrectamente. Sabia bem que verbo estava a usar: “stare” significa estar de pé, firme, assente, sólido. O seu parentesco com estável, estaca é evidente. De quem se fala estava bem ancorada no solo, firme, plenamente segura do que fazia, o seu corpo obedecia-lhe, não fraquejava exteriormente.

E quem estava? Uma “mater”. Não que as religiões não tivessem já falado de mães de deuses, ou do sofrimento de Cibele, nem a tristeza que invadia quem perdia os seus nas histórias divinas. Mas é de uma mãe concreta que se trata. Uma e só uma. Aquela, aquela que efectivamente viveu o que viveu, e por isso única, e exemplo para as outras.

Dolorosa. É um dos lugares comuns falar-se do dolorismo do cristianismo, e sobretudo do catolicismo. Uma civilização que criou oi Carnaval, o gótico e o barroco está bem longe de ser dolorista. A síntese histórica em mão de cavador é natural que cheire a grão de terra. Em vez de os terem nas mãos têm-no nos pés. Por isso é natural que análise pareça sempre feita com os pés. Dolorosa porque a vida na sua intensidade máxima tem também momentos de dor profunda, insuportável. Nada é esquecido, nada é poupado a uma vida plena. É sabido que o dogma da assunção, que Jugie analisou com grande profundidade e beleza é neutro em relação à morte de Maria. Não se pronuncia sobre ela. Por isso e morte de compaixão à frente da cruz é aceite por muita teologia. Sofrer pelo outro ao ponto de ter morte na alma é expressão de diferenciação sentimental bem maior que o da ataraxia estóica. Não se foge à vida. Deixa-se-a fluir plenamente em nós.

Uxta crucem. Onde está esta Mãe? Ao pé da cruz. É natural que não dê pulos de contentamento. É natural que não seja esse o momento de bodas ou alegria. Não padeceu da cruz directamente, mas da forma indirecta mais profunda. É a tese da com-paixão de Nossa Senhora, que muitos teólogos entenderam como o martírio de Maria, o seu verdadeiro martírio e não um legendário que gerasse a sua morte. Co-redemptora em com-paixão.

Lacrimosa. E eis que chora. Não é uma mãe de plástico. Toda divertida por saber que o seu Filho afinal vai estar bem. Ao contrário das crenças muçulmanas, que vem de algumas heresias gnóstica, acreditando que na cruz apenas estava um simulacro de homem, estava um homem pleno na cruz. E em vez de uma impassibilidade estóica, que poderia ser a única fundante da civilização cristã, entra em jogo pela primeira vez, e de forma nobilitada, uma expressão essencial do sentimento humano: a lágrima.

Dum pendebat. Não é em qualquer momento que esta mãe é vista. É num momento concreto. Enquanto alguém pendia na cruz. Na perspectiva do eu poético somos obrigada a vê-la enquanto ela vê alguém. Sob o ponto de vista da criação de situações, esta mostra arte bem complexa. Não é para o crucificado que olhamos, mas para a mãe, que por sua vez vê alguém. Somos obrigados a focar a nossa atenção, como num filme, para uma só pessoa, para percebermos indirectamente a sua situação. Não se olha para o crucificado, mas para quem O olha.

Filius. Não é qualquer um que está a ser visto pela mãe. É o seu próprio Filho. E eis que a coisa se revela em toda a sua veracidade e pertinência. Que houvesse relações filiais parte de histórias divinas já se sabia. Que estas se passassem na terra, também temos muitos exemplos na mitologia. Que o sentimento da Mãe que perde o Filho seja presente, também se sabia. Cidipe chora pelos seus filhos, presume-se. Não são apenas deusas que o fazem. Mas que duas pessoas humanas, plenamente humanas vivam a mais humana e terrível das situações, e que seja essa humanidade a revelar o plano divino para o mundo, essa é a novidade.

A poesia neolatina não é um conjunto de artificialidades de corte. Que o Império Romano tenha acabado com data certa e encerramento de contas é mito constitutivo da Europa, mas em boa verdade mito. Com tudo o que isso tem de pertinente, mas de falseador também. Não é por vontade de erudição que se verte em latim um dos momentos mais relevantes da História da humanidade. Procura-se a universalidade? É bem provável. Procura-se a língua sagrada? Admitamo-lo. Mas encontra-se sobretudo o que é a língua natural da vida intensa, bem mais que o vernáculo na época. Não é por necessidade tabular que se latiniza. É por inevitabilidade vital. Latim, Idade Média e cristianismo apenas são realidades menores para quem não as viu. O turista distraído prefere o sorvete tanto ao pequeno episódio que se passa à sua frente quanto ao grande monumento que o constituiu. O maior e o mais pequeno são-lhe estranhos. Apenas vive com base no directo, o imediato, o mediano. Que um facto tão irrelevante (Tibério soube algum dia desta crucifixão?) seja afinal o mais importante é categoria estranha para o turista. Mas para ele é sempre estranho o que é relevante.



http://www.youtube.com/watch?v=mNt13Vw-K6Q
http://www.preces-latinae.org/thesaurus/BVM/SMDolorosa.html
http://www.stabatmater.info/
http://www.lastfm.com.br/music/Giovanni+Battista+Pergolesi/_/Stabat+mater+dolorosa
http://www.wf-f.org/Sorrows.html
http://campus.udayton.edu/mary/resources/poetry/stbmat.html


Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 16 de julho de 2010

O pavor estéril do PSD


Ontem António Barreto e José Miguel Júdice indignaram-se por o líder da Oposição do PSD raras vezes ter lugar na Assembleia da República (SIC-Notícias com Mário Cresco).
Na verdade, alguns líderes do PSD não têm humildade democrática nem sentido de Estado para, antes das eleições, incluírem no futuro arco parlamentar os rivais que lhes podem suceder no caso de perderem as eleições. Constroem bancadas, supostamente sólidas, fiéis e monocromáticas. Sem futuro.
Em 85, Cavaco não inclui Salgueiro, com quem se batera na Figueira da Foz. Em 87 e 91, o peso do cavaquistão inibiu alternativas e purgas. Nogueira inclui muitos em 95, mas não se terá lembrado de Marcelo que parecia fora de órbita mas conquistaria o PSD, sem voz própria na bancada. A história de Guterres poderia ter sido diferente com aquele rival parlamentar.
Em 99, Durão não se demite perdendo as eleições e fica com verbo em São Bento. Em 2002, não incluiu Santana ocupado com a Câmara de Lisboa. Santana inclui Marques Mendes em 2005. Meneses - também incluído por Santana - prefere a Câmara de Gaia ficando parlamentarmente afónico durante a liderança do PSD. Manuela Ferreira Leite exclui Passos Coelho em 2009.
Conclusão: houve apenas uma sequência de líderes adversários com voz no Parlamento: Santana Lopes - Marques Mendes.
Se o Povo diz que a sorte protege os audazes é caso para dizer que o medo não tem protegido o PSD.

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terça-feira, 13 de julho de 2010

SERMÃO AOS INTELECTUAIS

Quem anda sempre atrás dos bons sentimentos deixa ficar para trás os seus.

Não há temas inteligentes, mas formas inteligentes de os estudar e exprimir.

A revolta de quem está sentado numa cadeira é sempre mais fácil que a concessão de quem enfrenta a luta.

Criticar o poder e estabelecer máximas de governação é de quem sendo impotente pretende definir o prazer dos outros.

Não acredito nos que defendem a liberdade com uma voz tão alta que não deixam os outros falar.

Só pode mostrar a indignação quem pretende pagar o serviço ou o sabe prestar.

Não desprezes os técnicos por ignorarem o que tu sabes, pois sabem eles fazer o que tu não fazes.

Invocar a humildade é bem pior que mostrar a arrogância. O segundo é parvo, o primeiro é perigoso.

Não grites tanto que não te ouves pensar.

Estranho sentimento de revolta que não afecta a digestão.

Tanto idolatras a intranscendência que ela te vence.

Criticas o burguês. Mostra primeiro a tua árvore genealógica. Se tiveres sangue real a correr-te nas veias duvido que o faças.

Não confundas as tuas indisposições com a lucidez.

Quem suspira por ideias corre o risco de não o fazer por pessoas. Quem não o faz corre o risco de não as entender.

Quem diz que ninguém o influenciou ou é ignorante ou destituído. Porque só ignorando ou não percebendo se pode ser insensível às obras-primas do passado.

Os teus dois maiores inimigos são o cansaço e a estupidez. Muitas vezes o que escreves vê-se que resulta da falta de férias. O segundo vício, no entanto, não se corrige com a posição horizontal.

Os que fazem alarde de serem responsáveis pelos outros são muitas vezes os menos responsáveis com a própria vida. Querer olhar apenas para as multidões, os grandes espaços, ou a humanidade em geral é sinal de desejo de afastamento, mais que de comunhão. Quem não verte uma lágrima pelo próximo aconchega-se na melhor das hipóteses com abstracções de justiça social.

Andam muito esquecidos aqueles que criticam a futilidade. Nada há de mais fútil que a criação cultural. É por isso necessária.

A tua adesão a um movimento político só o prestigia aos olhos de quem não percebe que nele apenas serás útil se tiveres competência política.

Opinar sobre as sortes do mundo ou abster-te de o fazer é algo que deverias ter a coragem de fazer como pessoa e não como intelectual.

Sempre que apoiares uma guerra arrisca primeiro o teu sangue. Sempre que a condenares compensa quem perde com a sua ausência. Não o fazendo tens direito à palavra ou ao silêncio. Mas como qualquer vendedor ambulante o faria numa conversa transeunte.

Se não tens fome de absoluto, pouco te dá saciedade. Se apenas falas nele confundes o tema com a pertinência.


Alexandre Brandão da Veiga

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sexta-feira, 9 de julho de 2010

A liberdade vai passar por aqui


«Havana vai libertar 52 presos políticos» anunciou esta semana a TSF. Raul Castro cede assim, finalmente, aos pedidos da Igreja Católica na «mais formosa das ilhas», como lhe chamou Colombo.
Poucas notícias internacionais me deixaríam mais satisfeita. Conheci a situação da oposição cubana a Fidel Castro no início dos anos 90. Tinha recolhido no escritório de Madrid do exilado Carlos Alberto Montaner a lista destes políticos para entrar em Cuba como turista acidental. Levava uma mala cheia de literatura anti-Castro que Montaner me pedira para entregar a Elizardo Sanches.
Para além do emblemático Elizardo que, sob a defesa dos Direitos Humanos, se mantinha fora do cárcere na ilha, falei com uma série de gente valente que tentava o impossível para manter acesas a chama da liberdade interior e a esperança da liberdade pública.
Foram três semanas surrealistas. Evito os nomes porque desconheço a situação actual destes cubanos. Lembro a poetisa com grades nas janelas e nas portas para evitar a delinquência política diária dos jovens da revolução. Não esqueço o homem de meia-idade que, nos subúrbios de Havana, me passou apressadamente um molhe de papéis manuscritos com os seus pensamentos e denúncias. Já era perto das dez da noite e atravessávamos uma pequena mata entre a sua casa e a paragem do autocarro que me traria à cidade. Tirou então os papéis de dentro da camisa e falou muito depressa. Ali sabia que não tinha microfones.
Recordo ainda o tristíssimo encontro com um velho opositor de Castro, num terceiro ou quarto andar, com escada suja e vigiada. A casa parecia uma cela. Com guarda, colchão no chão e pouco mais. Mas a verdadeira prisão estava dentro deste homem de barbas brancas. Ao fim de alguns anos, não resistiu ao cárcere, denunciou os amigos e pôde sair. Vivia assim atormentado pela traição, pela fúria das familias dos presos seguintes e pela amargura de um sacrifício em vão. Estava preso na ilha. E não pertencia a ninguém. Para não ser tão trágica, também me lembro de um actor de aparente sucesso que estava revoltado com Fidel alegadamente porque este lhe prometera uma bicicleta mas, por causa uma pequena liberdade de verbo, perdera o direito de a receber... Vá-se lá saber se é verdade. Este não estava na lista de Montaner.
Muitos já estão no exílio. Outros na prisão. Podem ter sido denunciados em troca de uma lata de carne, de um par de calças de ganga ou da manutenção de um posto de trabalho.
O único espaço de liberdade ficava dentro das igrejas onde Fidel Castro, reconhecido pelo papel de assistência social dos católicos num país órfão dos dinheiros soviéticos, permitia maiores liberdades de culto. Ali se trocavam documentos. Ali se procurava a ponte com o exterior. De ali partiram vozes que chegaram ao Vaticano. E que chegaram da Santa Sé, em discurso directo, na histórica viagem de João Paulo II em Janeiro de 1998 quando o Papa exortou: «Que o Mundo se abra a Cuba e que Cuba se abra ao Mundo!». Não conseguiu o fim do embargo, ponto de honra de americanos e de alguns cubanos radicais de Miami. Penso que a única vitória imediata foi mesmo a de transformar o dia de Natal, finalmente, em dia feriado. Ou talvez não. A mesma semente de liberdade dá hoje frutos em Havana com a libertação de 52 presos, como dará amanhã na Venezuela de Chavez.

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quarta-feira, 7 de julho de 2010

Só visto.


Em boa hora a Cinemateca Portuguesa, na secção «Abrir os Cofres» fez passar, há dias ao fim da tarde, uma série de doze filmes inéditos, do período de 1902 a 1932. Lá estava Rui Ramos para os comentar e enquadrar políticamente com a capacidade de se surpreender que só os melhores historiadores mantém pura. «Foi como se, de repente, estivesse a ver o Ramsés II a mexer-se e a andar de um lado para o outro. Lá estavam todos, vivos, o Rei, o Hindze Ribeiro, o José Maria de Alpoim, que aqui segue o cortejo mas sabemos que os haveria de trair, os revolucionários nas calmas...», dizia, animado com a descoberta.
No anfiteatro da Cinemateca, à cunha, adivinhavam-se monárquicos, intelectuais ligados ao cinema de arquivo e republicanos. Foi divertido «assistir à assistência» ao longo daqueles 40' de pequenos filmes, quase todos tornados cómicos pelos protagonistas na época e pelos espectadores 100 anos depois. A normal contenção «democratico-cerimoniosa» do público cedeu cada vez que a fita desautorizou a versão histórica do século republicano.
Ver os heróis de Chaves (que esmagaram uma incursão monárquica) levarem tabefes do instrutor que lhes endireitava o boné e os reprimia pelo estado em que tinham a arma, foi uma delícia. Reparar na amabilidade das capturas de monárquicos no campo, filmadas pela propaganda republicana para provar que não havia execuções sumárias e que o inimigo era levado a julgamento, foi outra delícia. Só faltava pôr o figurante a dizer: «Não vale aleijar! Porra, isto é só para o boneco!».
Assistir à sesta dos revolucionários no chão do Rossio, em plenos combates do 5 de Outubro, rodeados de Povo, de mantas e de comida foi revelador da violência da refrega. E a maneira como os bravos soldados da Rotunda se exibiram para a câmara, mortos de riso, em pose de guerra, apontando armas, não para o inimigo, mas para o camaramen que continuava a gravar descansado, foi hilariante.
A assistência da Cinemateca não se conteve. Republicanos e monárquicos riram, sem cuidar das trincheiras tal como os soldados da reportagem. Parabéns à Cinemateca. É para descobrir a História que servem as efemérides. Esperemos que a RTP tenha a mesma abertura e passe estas imagens inéditas.

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terça-feira, 6 de julho de 2010

Inglaterra e Turquia

É bem sabido que a Inglaterra é desde sempre, juntamente com os Estados Unidos, o mais fervoroso adepto da adesão turca à União Europeia. É sabido, e assumido pela Inglaterra, pública, oficial e recorrentemente. A mesma Inglaterra que não quis nunca uma união política e nunca foi criadora da integração europeia.

É bem conhecido o episódio em que a senhora Thatcher (baronesa, corrijo, mas não senhora; a Inglaterra tem isto de maravilhoso, que é o de a manter como low middle class por mais baronizada que tenha sido) quis a adesão imediata de todos os países da Europa central à União Europeia logo a seguir à queda do muro de Berlim. Os interessados desdenharam a oferta porque bem sabem o vale a generosidade de oferecer aquilo que é sobretudo dos outros. As intenções de dissolução da União Europeia num mero mercado são bem conhecidas, e mais uma vez, embora mais discretamente, assumidas.

Que a Inglaterra tenha interesse em impedir o aprofundamento da União, ou melhor que tenha essa vontade, é de seu direito. Cada povo escolhe da sua vida. Posso achar que são pouco lúcidos quanto aos seus próprios interesses, mas não nego a legitimidade de tal decisão.

O que tem de ser analisado é porque razão a Inglaterra tanto quer a adesão turca, o que espera ganhar com ela, e o que efectivamente ganhará.

A Inglaterra não tem um passado de especial ligação à Turquia. A presença francesa e sobretudo alemã na Turquia é bem mais forte. A Turquia deve à Alemanha grande parte do seu Direito, a estruturação do seu exército (e exército e identidade turca estão correlatas desde há quase um século), a modernização tecnológica. A maior comunidade turca no estrangeiro está na Alemanha e daí vem uma das mais preciosas fontes de divisas para a Turquia. A Alemanha é dos principais parceiros económicos da Turquia, senão mesmo o maior. Da França a Turquia recebeu uma certa versão do pensamento laico, ao mesmo tempo que os restantes países turcófonos da Ásia Central, embora sob a forma cesaropapista do “turquificar, islamizar, europeizar”, válida para todo o Turquestão. Se a língua inglesa tem peso na Turquia é por via americana e não britânica. E se tipicamente a Inglaterra é o segundo mercado da exportação da Turquia sob o ponto de vista da importação é pouco representativa.

Porque insiste a Inglaterra então nesta adesão? Porque lhe dá tanta importância? Em primeiro lugar joga um factor de pura mentalidade. A Inglaterra, não menos que os outros países, está formada pela Guerra-fria, que distorceu a auto-imagem da Europa. A imagem da Europa é a da Europa NATO, entidade que nasceu de uma tara, uma divisão artificial da Europa e que, de bom penso, tem acumulado ao longo dos anos o pus da sua malsã origem.

Em segundo lugar porque sabe que, entrando a Turquia, nunca haverá união política. E que qualquer aprofundamento da União será muitíssimo mais difícil. Uma União implica sacrifícios, mesmo que os ganhos de longo prazo os justifiquem. E nem a Turquia quer a União Política, nem as outras populações europeias a quererão caso a Turquia entre. Dissolver aumentando é o moto britânico, e assim pretende fazer também com a adesão turca.

Em terceiro lugar, porque pensa que, sendo paladino da adesão turca, terá na Turquia um fiel aliado. Em quarto, porque não tendo a forte imigração turca ao contrário da Alemanha, pensa que o preço desta imigração incidirá sobretudo na Europa continental e não nas suas fronteiras (recentemente o governo britânico já deu a entender que mesmo em relação à Roménia e à Bulgária não terá a generosidade de regime migratório que mostrou em relação aos restantes novos aderentes, o que não faria com uma adesão turca?). Em quinto, porque pensa que reforçará a dimensão NATO da Europa, aproximando-a mais da sua visão europeia. Finalmente, porque projecta no plano internacional a sua política interna multicultural.
Resta saber se a Inglaterra ganhará alguma coisa a longo prazo com esta adesão, se a sua aposta é ganhadora.

Em primeiro lugar os padrões da Guerra-fria desapareceram. E quando o substrato desaparece a mentalidade pode teimar em inércia de movimento mas vai perdendo cada vez mais a sua base. Pode durar muito mais que o seu fundamento, mas não durará perenemente para além dele. Por isso, uma Europa formada sob os padrões NATO está condenada a desaparecer. Mesmo que se queiram manter artificialmente hostilidades com a Rússia estas são insustentáveis a longo prazo. Mesmo para os que não gostam, a Rússia é um parceiro importante e sê-lo-á cada vez mais. Ou seja, a imagem sob que se baseia a sua decisão é a de um mundo em retrocesso.

Em segundo lugar tem razão que com a adesão turca nunca haverá real aprofundamento da União. O paradoxo britânico é que precisa de uma União estável. Cada vez mais irrelevante para os Estados Unidos pela a sua dimensão e força estratégica a importância do Reino Unido depende cada vez mais da importância da União Europeia. Uma União instável, com fracturas internas, torna a Inglaterra cada vez mais irrelevante como país.

O terceiro aspecto é aposta fraca. Duvidosamente a Turquia poderia ser aliado perene da Inglaterra. É evidente que teriam interesses comuns. Seriam os dois extremos da União, e ambos com interesse em que esta não seja uma união política. Mas a Inglaterra tem interesse numa política social e estrutural pouco custosa: exactamente o oposto dos interesses turcos. Dificilmente se veria a Turquia como paladina do liberalismo económico. A Turquia tem interesse na dimensão militar da Europa, exactamente o oposto do interesse britânico. Além do mais os turcos bem sabem que o apoio britânico não se baseia numa particular simpatia pela Turquia mas numa antipatia pela Europa. E bem conhecem o desprezo britânico pelos turcos (“se Portugal e a Hungria entraram, os turcos podem entrar”, ouvi muitas vezes). Os ingleses não podem esperar gratidão turca. As populações turcas desprezam os ingleses como lacaios dos americanos bem mais que o europeu continental, que sente afinidades de civilização com os britânicos. A Turquia dificilmente teria aliados europeus estáveis, obrigando a Europa a dirigir os seus interesses para o Médio Oriente e para a Ásia central. E se a Inglaterra tem interesses nessa zona o centro de gravidade da Europa ficaria mais a Leste. Seria, pelo menos a longo prazo, o país mais reivindicativo de fundos estruturais, que a Inglaterra não está disposta a dar. Os conflitos financeiros seriam um dos pontos de fractura perene da Inglaterra e a Turquia. Além disso a regra tem sido a de as alianças serem moldáveis. A Turquia estaria mais próxima da França na sua concepção de Estado, da Alemanha na sua dimensão e relações económicas, dos Balcãs na proximidade geográfica, dos países da Europa mediterrânica quanto ao grau de desenvolvimento.

Em quarto lugar, a Inglaterra já não pode contar com a constância dos fluxos migratórios tradicionais. Sendo conhecido como país de mais flexível mercado de trabalho e com menos exigências de integração (apesar das novas leis de imigração terem endurecido, estas não seriam aplicáveis a futuros cidadãos comunitários), a Inglaterra seria um dos pontos principais de chegada das novas imigrações turcas. E numa população que está cada vez mais cansada do modelo multicultural (a Inglaterra dar-nos-á surpresas nesta matéria no futuro), é a própria estabilidade interna que estará em jogo.

Além do mais terá de arbitrar entre alianças cada vez mais contraditórias, entre os países da Europa central e a Turquia. A visão NATO da Europa mostrará aí mais um dos seus campos de falência. Para países em que a experiência multicultural foi a de serem dominados e não dominadores a adesão turca será, não apenas concorrencial sob o ponto de vista dos fundos, mas sobretudo contraditória com o seu sonho de Europa.
E para finalizar, a Turquia retirará importância estratégica à Inglaterra. Sempre que os Estados Unidos quiserem uma Europa mais unida, não é com a Inglaterra que contam. Ford ligou-se a Giscard e Schmidt. Sempre que quiserem desestabilizar a Europa, a Turquia fará bem melhor papel. De boa ou má vontade, o peso da Turquia junto dos Estados Unidos aumentará a expensas da Inglaterra.

Alguns americanos começam a perceber mais depressa que os ingleses o erro da aposta turca. É natural que quem está à frente veja mais coisas. O problema é que se a inversão da política americana nesta matéria, a ocorrer, poderá ser tardia, a da Inglaterra poderá sê-lo de forma desastrosa.

São os ingleses estúpidos e não percebem que esta política lhes é desvantajosa? - Adivinho a pergunta. Duvido. Mas pior que a estupidez é a cegueira e a força de inércia. Os atenienses não eram estúpidos, mas deixaram que a inércia das suas rivalidades abrisse caminho para Filipe. O pior cego é o que não quer ver. Sobretudo numa época em que se quer pôr pedras nas bocas em Demóstenes que delas não carecem.


Alexandre Brandão da Veiga



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