terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Citação e referência







Nada tenho contra citações e referências. São uma boa ajuda para escorar o percurso intelectual e sobretudo marca de honestidade intelectual. Se a ideia não é nossa, é bom que se indique tem a teve.

Nem sequer me oponho a que na conversa corrente surja a referência erudita, ou sequer a citação. Basta que seja sinal de intimidade e tenha pertinência para estarem legitimadas uma e outra.

Está dito o essencial; não me oponho por princípio a tais práticas. Cada uma tem a sua razão de ser, o seu local próprio e a sua pertinência.

Podemos entrar assim na sua dimensão pantanosa, no seu lado obscuro.

Cita-se um texto, refere-se um autor ou uma obra. Existem diferenças importantes entre um e outro facto.

Quem cita tem boa memória. Integrou em si um pensamento, uma observação, um modo de ver o mundo. Ou ao menos sabe onde procurá-lo. Não é mau em si mesmo. Quem refere apenas menciona. O conteúdo não o ocupa forçosamente, avança com um sinal, uma bandeira, alerta, demarca. Nada mau em si mesmo da mesma forma.

Coisa diversa é o citador impenitente, o referenciador obsessivo, sobretudo sem pertinência. Geralmente esconde vários vícios.

O primeiro, o da parasitagem. Quer dar-se por via de outros um prestígio que pelas suas ideias não obtém.

O segundo, o da fraqueza de espírito. Como não tem forma pessoal de preencher o espaço, enche-nos de referências e citações. Aflito por estar presente invade-nos o espaço com restos de ideias alheias, de glórias de outrem.

É evidente que existe uma tipologia ainda vivaz de espécimes desta natureza.

O mais conhecido, que ainda permanece, é o citador e referenciador solene. Coloca a gravata sempre que diz a palavra “Platão”, precisa da maiúscula gráfica para esconder a minúscula intelectual. O “Ser” tem sempre maiúscula, não se vá pensar ser ele mais reduzido. O citador solene pode ter o mérito da memória, e quando o tem é realmente mérito. Mas não lhe serve para nada na vida. Rapidamente se percebe que tende a ser inútil e enfadante.

O segundo é igualmente clássico. O citador lúdico, que tende à paródia por vezes. Para ele, citar é uma forma de festa, referir, uma brincadeira. Pode suscitar a boa disposição, mas é na melhor das hipóteses uma boa sobremesa que se saboreia e se esquece. Na pior, apenas inconveniente.

Mas o terceiro tipo é o mais usual na nossa época e o mesmo conhecido: o citador angustiado. Oscila entre a solenidade e o jogralesco. Na forma pretende-se descontraído, mas no fundo quer ser levado a sério. Jogral na ideologia aliás mais que na aparência, vive na aflição de nada ter para dizer e nem sequer ter graça.

As suas técnicas são conhecidas. Para dar o ar jogralesco mistura Bach com uma cantadeira menor, Homero é citado ao lado de Hemingway se for o caso, ou então, se quiser forçar ainda mais a nota, cita a literatura light. Se usa a palavra “metafísica” exorciza-se falando de imediato em futebol.

Quer-se intelectual, mas conhecedor da vida. Como não reconhece a elevação (ela denunciá-lo-ia) baixa Aristóteles ao nível do tenista do dia. O seu registo poderia parecer o do mediano, mas em bom rigor é apenas o do difuso. Tudo do que se fala participa da mesma nuvem indefinida em que umas coisas sobem, outras descem, em que tudo se agita, mas nada tem o seu lugar. É um agitador de poeira.

Em si a idolatria do vital, da pujança física, da beleza visível fica-se pela palavra, porque geralmente não é bom exemplo de nenhuma dessas coisas. Esconde-se por isso. Passa a vida escondido como os pequenos mamíferos que ainda assistiram à vida dos dinossauros. E é apenas mais uma marca da imensa tristeza que o mundo pode conter.










Alexandre Brandão da Veiga

(mais)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

À volta de Herman Van Rompuy

É curiosa a reacção dos meios de comunicação social à escolha de Herman Van Rompuy para presidente do Conselho europeu.

Os comentadores passam o tempo a criticar a política espectáculo, a ausência de substância dos políticos, o excesso de marketing na política. Eis que lhes é dado de bandeja o oposto. E eis que se queixam da ausência das mesmas características.

Afinal vem ao de cima o que o comentador político e os meios de comunicação social precisam: de espectáculo. Apenas sabem apreciar a cena teatral, queixam-se da falta de texto, mas quando ele aparece afirmam que é maçudo, pouco atraente, cinzento. Especialistas de pirotecnia sem foguetes, não sabem apreciar política.

No que me respeita apenas me posso lembrar que Jean Monnet só foi conhecido a partir dos anos 80, quando foi cerca de 30 anos antes que fez o que de mais relevante tinha a fazer. Churchill era considerado um doido antes de ser primeiro-ministro. De Gaulle um arrogante. Joåo XIII um papa de transição, João Paulo II um exótico. Augusto um fedelho irrelevante.

Não, a imprensa queria uma estrela já conhecida, com currículo no estrelato. Mais uma sua característica sua que vem ao de cima: a imprensa é conservadora, prefere apostar em valores seguros, em bilheteira garantida. O senhor ainda não fez nada e já se lamenta ter o dever de ser um fracasso. O político tem de ser sexy. A cada um o seu gosto. A sensualidade é mais gozosa procurada alhures, parece-me.

As alternativas são mais apelativas, mas algo discutíveis. Mais visíveis e em grande medida apenas por serem menos substantivas. Blair o campeão do marketing, que descobriu que era possível conciliar economia de mercado com o socialismo, segundo dizem. Pena que tenha feito essa descoberta quase duzentos anos depois dos saint-simonistas, e mais de cem anos depois das sociais-democracias do Norte da Europa. Ideias velhas em roupagem sempre nova, a imprensa gosta disso.

E no entanto, quando começa um novo órgão, um novo posto, a tarefa de consolidação é a mais importante. E essa é feita discretamente. César foi imenso mas seria mais um episódio juntamente com Pompeu, Cipião ou Sylla. Foi preciso o trabalho (inicialmente) discreto de Augusto para que a ditadura se tornasse império. A ditadura são pessoas, o império uma instituição.

Ignoro o que sejam os resultados de Herman Van Rompuy. O futuro o dirá. Sei que o facto de ser um intelectual incomoda os senhores comentadores porque frequentemente não gostam de quem tem mais cultura que eles. Mas tenho mais confiança num discreto organizador e consolidador cujos resultados se verão em anos que em espectáculo de pirotecnia que deslumbra o transeunte e deixa no seu rasto apenas custos, um olhar cansado e um cheiro de pólvora queimada.


http://www.reuters.com/article/idUSLI45257420091119

(mais)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

II. Ignomínia no Séc. XX

Vejamos, mais uma vez.

O rescaldo da aventura colonial europeia, em que uns participaram mais que outros. Há sempre invejas. Os que ficaram para trás também queriam participar no jogo. Uma ideologia rica em antepassados em todos os casos. Não se diga que a aventura japonesa mergulha os seus fundamentos no xintoísmo, nas profundidades da cultura japonesa, e ficaria assim dourada. Os brasões do nazismo e do comunismo são muito semelhantes e muito superiores em vários aspectos. Platão, Nietzsche, Maquiavel, Thomas Morus, e tantos outros podem ser invocados com tanta ou tão pouca legitimidade para dar uma justificação ideológica a ambos. O que diferencia o comunismo e o nazismo vistos de perto é abissal, mas visto de uma terceira cultura, que neste aspecto terá mais razão se for minimamente lúcida, é muito pouco. Ambos participam de uma dimensão da civilização europeia que existe, é activa, intensa. Não é por acaso que o humanismo, nas suas múltiplas formas, atravessa a cultura europeia. O homem europeu não é mais cruel que outros. Mas preocupa-se mais com a sua crueldade e sabe que restringindo a sua energia cinética lhe aumenta a energia potencial. A Europa é perigosa, em suma. Exactamente porque manifesta de modo menos intenso a sua crueldade, se a compararmos com outras culturas com a mesma diferença de potencial interna. Mas não podemos esquecer outro elemento de ponderação, para além dos aspectos económicos e sociais que são sobejamente estudados. O espírito do tempo. Sem mais. Porquê numa mesma época um conjunto significativo de povos dão soluções semelhantes para os mesmos tipos de problemas? Porquê outras épocas houve de grande crise económica e política, com grande crueldade sem dúvida, mas sem este sistemático desprezo acrescido pela dignidade humana? Há tempestades que atravessam a História, quer se goste quer não. Não cabe aos historiadores dissecá-las até à exaustão, por que ultrapassariam assim os seus limites epistemológicos, o que só abona a favor da sua probidade. Sem dúvida. Mas o facto de não ser lícito a um historiador fazê-lo, por limitações de método, não impede dever ser o facto reconhecido, mesmo sem provas científicas, mesmo sem apoio epistemólgico consensual, por quem quiser manter a lucidez. As pessoas não têm de ser científicas. Sobretudo não têm de ser sempre científicas.

E a cegueira? Como explicar a cegueira? São exactamente os que defendem a igualdade das culturas, em nome de um princípio tão político e tão pouco científico como quem defende a sua desigualdade, os que recusam tudo o que ultrapasse a materialidade, certa racionalidade pré-formatada, misturando de forma arbitrária razão, matéria (e que matéria?, e que concepção de matéria?) e defesa de ideologias, que recusam ou recusaram ver o óbvio. Os que recusaram a religião insistentemente, veementemente, de modo suspeitamente repetido (e por vezes perdendo a razão que tinham ao fazê-lo desta forma) são os mesmos que caíram na mais fanática forma da religião, a da cegueira. Recusar, querer colocar no inferno de forma irrevogável, definitiva, eterna, certos sentimentos, certos impulsos, seja quais eles forem, leva a natureza, destino, ou o que o que quiser, a vingar-se. Cometeram os erros dos que criticaram, e de forma mais brutal, mais arbitrária, mais desesperada. Não houve Inquisição ou Calvino que chegasse aos calcanhares dos exércitos, forças especiais, ou polícias secretas (tão notórias) dos estados totalitários. A igreja católica teve ao menos a sensatez de manter o Index como uma figura aberta, expandindo-se, mas apesar de tudo com oscilações. Manteve sempre a pluralidade, por via das ordens religiosas, das diferenciações sociais, geográficas, sociais, da distinção entre clero regular e secular. O que a História do século XX demonstra é que não há vida religiosa mais mal vivida que a que recusa a religiosidade, que a odeia, que a pretende revogar definitivamente. A cegueira é cegueira perante o invisível. Em uma análise, trata-se de um caso de iconolatria. Pense-se no que se passa com a física, já nem falo da do século XX, mas ainda do século XIX. A teoria de Maxwell, o conceito de campo, pressupõe que a matéria é um conjunto de berlindes como a física popular dos países totalitários pretende defender? Não é o invisível, mesmo o imaterial, o relacional, constitutivo do universo, mesmo para quem recuse segundas instâncias de realidade, sejam abstractas, sejam incarnadas? Que diferença sente a vítima de um idólatra de uma pessoa viva por mais imperial que esta seja em relação a uma vítima de idólatras de pensadores mortos ou de teorias pretensamente vitalistas? Os contornos são diferentes, mas a abjecção moral é a mesma. Não se trata de condenar qualquer cultura. Trata-se de reconhecer que fazer recuar como justificação ao mais profundo de uma cultura (como se fez com o Japão) actos bárbaros é afirmar que a cultura é bárbara. Fazer justificar a crueldade com uma teoria humanista é condenar a teoria, ou a possibilidade de qualquer teoria dominar sem mostrar o seu lado negro, mas em todo o caso é sempre condenar a abjecção de quem o fez. E da sociedade que o permitiu. Talvez mesmo da cultura ou da teoria que o sustentou, ou pelo menos de aspectos da mesma.

Considerou-se como sinal de refinamento intelectual distinguir a beleza do soldado japonês que mata depois de recitar a sua poesiazinha. Mesmo alguém de bom senso e superior estilo como Yourcenar caiu nesse erro. Confundimos a perspectiva. Sob o ponto de vista científico, tenho todo o prazer em compreender a multiplicidade da alma humana, tal como se manifesta em cada cultura. Ajuda a compreender. Não é pecado querer compreender. Mas não considero que haja contradição em querer compreender os fungos e ter nojo do seu cheiro e repulsa pelas suas acções. Um médico analista não tem obrigatoriamente de amar as fezes ou sentir identificação com as mesmas ao ponto de as admirar. O exemplo não é gratuito. Os que à força de chamar a atenção para a necessidade de compreender outras culturas ou certos movimentos se esquecem de revelar a sua natureza repugnante fazem lembrar os médicos do século XVII que se especializavam em cheirar e mesmo a provar as fezes. Compreenderiam por isso alguma coisa da sua constituição? Não me parece. E, pior ainda: não lhes gabo o gosto.


Alexandre Brandão da Veiga

(mais)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

I. Ignomínia no Séc. XX

No século e não do século. Não se trata de liminarmente condenar o século XX. Teve muitos méritos. Sob o ponto de vista material, apesar das queixas, umas vezes justas, outras piegas, nunca tanta gente viveu tão bem. Sob o ponto de vista da maturação sentimental colectiva, nunca houve época com momentos de vivência colectiva mais humana, mais respeitadora da fragilidade alheia, mais repressiva da brutalidade. Nunca tanta gente poude passear na rua sabendo que o simples facto de ser pessoa, noutros casos, cidadão, lhe dava direitos, imunidades, protecção. Não vejo como condenar estes factos. Bem pelo contrário, são conquistas do século XX, colhendo a sua origem noutras épocas é certo (que imensa banalidade) mas representando-se na sua maior excelência no século XX.

Mas o século XX sofreu de doenças bem graves, duas das quais a cegueira voluntária e a brutalidade justificada teoricamente. Os intelectuais, e não os piores de entre eles, justificaram uma ou outra ou ambas das formas mais cruéis, mais indiferentes ao ser humano, ao auto-respeito mesmo, que alguma vez se viram na História. Hitler é um monstro sem paralelo, dizem. Mas o suave japonês que faz as suas poesias enquanto tortura um soldado inglês, ou que atira uma bomba ao enfermeiro australiano que o tenta socorrer, mais não é que a manifestação de uma cultura requintada, apenas com valores diferentes dos nossos. Como o marxismo é uma forma de humanismo, os crimes que o comunismo cometeu são apenas erros e não podem ser cotejados com os dos nazis.

Vejamos.

O soldado que está ser torturado, o pára-quedista inglês que de acordo com as leis internacionais deveria ser considerado prisioneiro de guerra e é qualificado pelo senhor imperador do Japão como criminoso de guerra. Daí que lhe arranquem os olhos, o torturem e acabem com a vida dele para terminar o prato com uma decapitação. Que diria o soldado inglês? Qualquer coisa como: “É sempre bom saber que não é um bárbaro qualquer que me está a fazer isto, mas uma cultura requintada”. Suponho que os seus sofrimentos deveriam ser reduzidos a muito pouca coisa por saber que participava de uma experiência cultural, que simultaneamente lhe alargava os horizontes e lhe diminuía a visão. Consolador. O soldado inglês perceberia finalmente que pertencia a uma cultura bárbara porque não conhecia o refinamento de tais receitas que, como é bem sabido, requerem uma imaginação imensa. Carece-se de uma boa dose de imaginação para saber como fazer sofrer um ser humano, de uma determinada dose de bagagem cultural, parece. Como se os olhos, as unhas, e outras partes do corpo humano não estivessem à vista de qualquer oligofrénico, e acções como pressionar, retirar, cortar, esmagar fossem o resultado de uma elaboração teórica superior.

O camponês ucraniano que morre à fome por força das frustrações de um poeta falhado chamado Estaline, rodeado de acólitos não menos medíocres, também se deveria sentir consolado por estar a participar de uma dieta que tem um fundamento teórico humanista. Ingrato seria se não percebesse a natureza metafísica e abissalmente diferente da sua fome em relação à dos campos de concentração nazis. Reconheçamos que o seu estômago não veria diferença nenhuma, mas todos nós sabemos como o estômago dos europeus é particularmente bárbaro e pouco disposto a reconhecer a grandeza das verdades escatológicas.

Que crime, que cegueira foi esta? Que cegueira é esta que se continua perpetuando assim de forma criminosa? Como podem as pessoas diferenciar o sofrimento de uns ou de outros? A resposta parece-me dever-se encontrar em vários factores. Por um lado, um pensamento profunda e insidiosamente racista que invadiu o Ocidente no século XX. Os crimes nazis são particularmente hediondos porque ocorrem na Europa. Se ocorressem fora desse continente já seriam tidos como naturais, como mera expressão de culturas diferentes (África) ou mesmo como sinal de requinte civilizacional (Ásia). Auto-flagelação. Mas também porque em última análise se consideram mais válidas as vidas de europeus que as dos outros povos. Que estranha mistura de auto-flagelação e de auto-exaltação. Por outro lado, há evidentemente poderes económicos interessados na feitura de filmes, livros, programas televisivos sobre uma matérias e menos sobre outras. Não se trata de uma teoria da conspiração, trata-se de uma defesa mais ou menos organizada de interesses próprios. Basta ver as poucas coisas que se fizeram sobre os ciganos, aristocratas, homossexuais e comunistas mortos pelo mesmo sistema. Em terceiro lugar, esquecemo-nos muitas vezes que há uma real comunhão de natureza (não de identidade sempre, mas sempre de comunhão) entre os fenómenos do nazismo, do comunismo e da expansão imperial japonesa.

(mais)