sexta-feira, 27 de novembro de 2009

II. Zio Petros e la congettura di Goldbach, Apostolos Doxiadis, Bompiani, 2001

Uma história não contada directamente pelo livro é o pano de fundo cultural. A teoria dos números que impera no seu tempo é de matriz francesa (os Hadamard e quejandos) que por sua vez vem de origem alemã. A França de entre guerras, mais que qualquer outra, conhecia e era tocada pela cultura alemã. Na matemática, na física (a relatividade, a física quântica), na filosofia (Husserl e Heidegger, o neokantismo), na literatura (Thomas Mann, o expressionismo), no cinema... Em quase todos os campos a admiração francesa, e sobretudo o conhecimento francês em relação à cultura alemã, poucas vezes foram tão intensos. E no entanto, entraram em guerra. Por isso o adágio “é o desconhecimento que provoca o medo e as guerras” mostra-se mais uma vez francamente ingénuo. Por vezes é por conhecermos o vizinho que o odiamos. Por vezes apesar da admiração que lhe temos a repulsa fala mais forte. Talvez a guerra não tenha antídoto porque provavelmente não é um veneno.

Petros Papachristos é um dos muitos exemplos de homens de inteligência superior que não tiveram a bênção de rasgar um horizonte relevante, estando perto dele. Para cada Josué há frequentemente vários Moisés.

Significativo também por outra via: a do impacto do teorema de Gödel no modo de produção da matemática. A forma como encara a possível veracidade deste teorema mostra como a certeza da matemática era ainda um fetiche para a sua geração. De tal forma que um teorema que demonstrasse limites da razão poderia ser destruidor, quando em boa verdade é terapêutico. Mas afinal Gödel acreditava em fantasmas e talvez nos tivesse habituado a viver com eles como uma segunda natureza. O desespero de Papachristos mostra como se pode praticar com maestria uma ciência sem ter grande conhecimento dos seus pressupostos. Muitos cientistas criaram obra relevante, mesmo estando assentes em mitos científicos. Boa parte da química e da História, ou mesmo a biologia, foram criados por pessoas que padeciam de um cientismo ingénuo, o que não lhes retirou mérito à obra.

Que haja proposições indecidíveis (relativamente a um sistema lógico, a indecidibilidade é sempre relativa), convenhamos, apenas mostra que temos de começar por algum lado, que se chega a um ponto em que a premissa por definição é infundamentada. Que o sistema lógico em relação ao qual as premissas são indecidíveis é fruto de uma tradição, sem dúvida rica no seu conteúdo, mas uma tradição, é coisa que também Papachristos não percebeu. Que a formação da objectividade não seja mérito puro de cada indivíduo, mas de interacções individuais e de uma tradição (em parte Popper percebeu-o, mas não deu toda a devida ênfase à importância que a tradição tem para a matemática, como para qualquer cultura) só mostra que Papachristos vivia os fundamentos da matemática como um fetiche.

Poucas vezes vejo contar a história de um matemático como um drama pessoal. Matemáticos com vida trágica (se infeliz é outra história), Galois dá bom exemplo disso. Muitos outros têm vida opaca e esses são uma grande parte. Os matemáticos não têm tendência confessional, salvo quando são grandes também noutras áreas (como Leibniz, esse grande injustiçado que espera ainda quem lhe faça a biografia, e Pascal). Se quisermos saber algo mais de Gauss ou Hilbert ficam-nos algumas anedotas, mas pouco que nos releve o seu percurso vital.

Petros Papachristos dá-nos o exemplo contrário, talvez por nos ter ficado não o teorema, mas o testemunho. A tendência cristalizadora da formulação matemática obnubila a tragédia pessoal, o suor e o esforço. É essa em parte a dádiva que recebemos da matemática. A polidez de quem nos dá o presente sem nos remeter para o preço ou a dificuldade de o obter. Mas alguns conseguem ver no diamante a tragédia das árvores pressionadas até ao insuportável apenas para reluzirem sob outra forma.


http://www.ibs.it/code/9788845248610/doxiadis-apostolos/zio-petros-congettura.html
http://www.anobii.com/books/01fa8e43872491aeb4/
http://www.math.it/libri/ziopetros.htm










Alexandre Brandão da Veiga

(mais)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

I. Zio Petros e la congettura di Goldbach, Apostolos Doxiadis , Bompiani, 2001




O lugar comum diz que a História é contada pelos vencedores e sobre os vencedores. Observação a ser tomada com cuidado. A ser verdade isso, os romanos e os gregos foram vencedores com o cristianismo, porque os ditos bárbaros que dominaram a Europa cuidaram mais da sua memória que da memória barbara. A ser verdade, o povo judeu é povo de vencedores, porque a sua História foi preservada.

Na ânsia de aproveitamento que existe na nossa época, a frase pode ser invertida apenas para ser verdadeira. Sobra História? Logo fala de vencedores, ou pelo menos é feita por vencedores. Mas se assim for, o lugar comum não explica nada, apenas carece de explicação.

A verdade é que é bem mais comum falar de sucesso que de fracassos, pelo menos na História da cultura. O filósofo que não acabou o seu livro, o escritor que o deixou a meio, é menos comum que sejam lembrados. Nem sempre é assim, mas geralmente é assim.

A história do tio Petros Papachristos é particularmente entusiasmante por causa disso. Para os anais oficiais é lembrança de um falhado, de alguém que não fez História, nem em nota de pé de página. O sobrinho que conta a história sabe bem fazê-lo com um belo sentido da narrativa. Nem matemático, embora com formação matemática, nem escritor, porque de formação gestor, consegue trazer-nos à vista um tio dele com uma vida particularmente curiosa.

Segunda lição que retenho. A tendência é a de se achar que as ciências estão cada vez mais técnicas, os métodos de demonstração cada vez mais complexos. Na teoria dos números os alemães, e depois os franceses, estabeleceram padrões de demonstração analítica extremamente complexos, profundos, e ricos de consequências. Mas sempre houve quem não desesperasse e procurasse métodos de demonstração elementares. Muitos dos teoremas mais profundos são de demonstração simples, alias com muitas demonstrações simples (basta pensar no teorema fundamental da trigonometria). E não deixam de ser profundos por esse facto.

Sempre me pareceram demagógicos um discurso e o seu contrário. Uns dizem que as coisas profundas são sempre simples, outros dizem que são sempre difíceis. Nenhum tem razão. É natural que uma mesma verdade tenha diversos caminhos, cada um com o seu sentido. E que diversas verdades de igual importância tenham caminhos fáceis umas, muito árduos outras.

(mais)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

No Gesù

Não tenho por hábito descrever episódios da minha vida pessoal. Não por a achar desinteressante mas suspeito que não o será para mim tanto quanto o poderá ser para os outros. Mas de vez em quando podemos abrir excepções, porque em boa verdade não é de nós que falamos.

Gosto particularmente de Roma. Por mais razões que as que podem ser vertidas num texto curto. É das raras cidades onde se pode ir pobre e rico, só e acompanhado, habituada que está eremitas e imperadores. As cidades burguesas têm os seus fascínios, mas apenas se fruem plenamente quando se tem dinheiro e se vai em boa companhia. Roma é ao mesmo tempo popular e aristocrática.

O turista comum encontra em Roma locais extraordinários. Mas tive a sorte de conhecer alguns locais que não estão ao acesso do turista comum e apenas me posso sentir grato por isso. Um deles foi o Gesù.

Centro histórico dos jesuítas, mas isso qualquer turista sabe. Coisa diferente é conhecer o ambiente que nele se vive. E muitos são os aspectos que impressionam de forma permanente quem teve o privilégio (a palavra não é forte) de o visitar.

Em primeiro lugar tem um sabor particular encontramo-nos a falar em sala cujas paredes têm frescos de Andrea del Pozzo ou retratos de Matteo Ricci. Ou ver o quarto de Santo Inácio de Loyola que é mantido com uma intimidade reverenciosa, sem idolatria. Mistura de riqueza e austeridade a que os jesuítas nos habituaram.

A biblioteca é evidentemente impressionante em muitos aspectos. Pela primeira vez encontrei a Patrologia Latina e a Grega do Migne em edição completa. Mas também o raro Tixeront, que poucos coleccionadores se podem orgulhar de ter.

Quando entrei na biblioteca a primeira coisa que me mostraram foi um corão na língua original aberto. Estava a ser estudado por um dos alunos.

Quem me acompanhava disse: como vês aqui estuda-se o corão.

Eu apenas respondi: que surpresa, eu sei que foram os jesuítas quem abriu a cultura europeia ao mundo.

Em boa verdade fui injusto, porque tendo sido a Europa a fazê-lo seria mais correcto dizer que foram os jesuítas que abriram a cultura do mundo ao mundo. Não seria de surpreender ver jesuítas a estudar o corão, os Vedas ou obras pali do budismo antigo. Como pessoas efectivamente cultas, os jesuítas não são multiculturais. Têm uma só cultura e não várias, porque vasta e profunda. Numa época em que impera a fraude intelectual é consolador ver gente que estuda com seriedade antes de opinar.

Mas de todos os episódios que se passaram no Gesù um impressionou-me mais que todos. Um amigo meu estava lá hospedado e por isso eu combinava encontrar-me com ele à porta do Gesù. Ele várias vezes tinha dito que eu batesse à porta mas sempre preferi não o fazer. É casa de estudo e de oração e por isso sempre preferi não os incomodar.

Uma das vezes que estava à espera à porta, um conjunto de cinco alunos do Gesù entrou. Não me conheciam de parte nenhuma. Presumiram que eu estaria à espera de alguém que lá vivesse e nem me perguntaram se eu esperava alguém do Gesù. Convidaram-me imediatamente para entrar com um sorriso nos lábios. E insistiram. Eu agradeci e disse que esperava lá fora.

O episódio é curto e parece ser pouco significativo. Mas foi das experiências mais acolhedoras que tive de Roma. Um estranho que nunca se viu, presume-se que é benevolente. Convida-se para nossa casa sem perguntar quem é e ao que vem. Não só na nossa casa, mas numa casa conhecida pela sua discreção e recolhimento. E recebido com um sorriso.

Quando vejo os bem pensantes falar de abertura ao mundo, aos outros (essa entidade impessoal) e a outras culturas, lembro-me com frequência desse episódio no Gesû. Do privilégio de ter entrado e do privilégio de, mesmo estando à porta, ser bem recebido.



Alexandre Brandão da Veiga

(mais)

domingo, 15 de novembro de 2009

Erm, alguém pensou no acrónimo?

A imprensa de hoje traz notícias sobre um movimento de apoio a Gonçalo Amaral, com a sua primeira iniciativa a ser uma petição em defesa da liberdade de expressão do ex-inspector do caso Maddie. É bom ver actividade cívica, mas só uma pequena dúvida: os organizadores do movimento "Cidadãos Apoiam Gonçalo Amaral" não pensaram muito no nome (e acrónimo resultante), certo?

(mais)