quarta-feira, 30 de abril de 2008

O 7º de Cavalaria

Reconheço uma inultrapassável lucidez a este post do Pedro Norton, cuja leitura recomendo. A lucidez é, aliás, uma virtude de todos os grandes pessimistas. O que resulta do desenho rigoroso que o texto traça é que o PSD é, neste momento, um "dead end".

E o Pedro justifica: as elites desertaram o que talvez queira dizer que não são elites e as soluções de liderança em confronto são passado sem futuro.

Que 7º de Cavalaria é que pode salvar estes republicanos da carga dos índios? Haverá em Portugal uma jovem brigada "neocon" capaz de injectar ideologia, inovação económica, ambição política e alguma elevação retórica ao partido exangue? E, já agora, uma invasão à Madeira para que a população receba em triunfo as tropas libertadoras?

Ou será que o PSD poderá propor soluções políticas inovadoras, da diminuição do peso do Estado a uma maior democraticidade, quando o seu melhor exemplo de sucesso é a longa e radiosa governação de Alberto João?

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Da notabilidade

Compreendo o ponto de vista do Pedro Norton, e algumas das críticas que faz, partilho também alguma ansiedade, mas divirjo na solução.
Penso que a solução dos "notáveis" começa a fazer cada vez menos sentido. As razões que aponto são de natureza essencialmente sociológica, ou melhor, económica. É natural por isso que vá aborrecer algumas pessoas que me possam ler.
Há trinta anos atrás, tínhamos políticos que faziam política com evidente brio. No que toca aos partidos de direita, mas também no partido socialista, temos de convir que muitos tinham considerável fortuna pessoal, obtida, por exemplo, através de rendimentos de capital ou rendas de prédios rústicos. Ou seja, tinham os meios financeiros para dispor do tempo como bem entendessem. A política era uma coisa de cavalheiros.
O cenário começou gradualmente a mudar e os rendimentos cada vez mais começaram a ser obtidos através do trabalho desenvolvido por cada um. Ou seja, o tempo disponível começou a ser canalizado para uma profissão. Como sabemos, foi neste contexto, que surgiram os políticos profissionais.
Temos assim: 1 - Os políticos profissionais;
2 - Aqueles que desenvolvendo certo tipo de profisssões - estou a lembrar-me sobretudo dos advogados e docentes - acumulam o exercício profissional com a actividade política;
3 - Os notáveis: são do melhor que Portugal tem: empresários, advogados, consultores, economistas. Ganham, no mínimo, 50.000 Euros/mês. Estou a ser módica para não espantar ninguém. Em regra, ganham muito mais. Significa que cada hora, cada minuto, do seu tempo é precioso.
Nenhum parece muito disposto a abdicar da sua posição para dedicar ao país. Digo, de forma visível, duradoura e responsável. E não nos podemos esquecer que quando o fazem, muitas vezes, não pensam noutra coisa que não seja, no próprio proveito: a influência, os negócios, a notoriedade. Nestes casos, nos dois pratos da balança estão sempre coisas com um peso muito diferente: de um lado, uma retribuição muito alta, do outro a visibilidade. Ficamos muitas vezes com a sensação de que nos estão fazer um frete...
O que quero dizer, é que são as elites, o país precisa deles, que façam bem o seu trabalho, e creio que é mesmo seu dever fortalecerem a sociedade civil. E que esta vigie a actuação do Estado, e que ajude a desenvolver o país.
Mas não podemos esperar que sejam eles a desempenhar os cargos políticos. E assim sendo não vejo que possamos continuar a esperar que desse nevoeiro saia algum D. Sebastião.
Fiquemos com os outros. Podem não ser tão brilhantes, nem tão ricos ou influentes, mas há qualidade ali, e ainda há gente que acredita e se esforça e trabalha.
Quanto às derrotas antecipadas, estou a lembrar-me de umas célebres, há mais de vinte anos, em que o derrotado antecipado obrigou o ganhador antecipado a segunda volta e o resto é história.
Temos um ano pela frente. E como diria um qualquer treinador de futebol, só faz falta quem está.

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Da Visão: Uma batalha sem futuro




As coisas não estão fáceis para os lados da Rua de São Caetano. Desde logo pelas razões óbvias: o PSD não resistiria a mais um delírio populista às mãos de Pedro Santana Lopes. Depois da sua aterradora passagem pelo governo e da experiência surreal que foi o Menezismo, o partido não aguenta mais uma aventura sem rumo, sem norte e sem senso que é tudo o que Santana tem para lhe oferecer. Não aguentaria o PSD e não aguentaria o país. Portugal precisa de uma alternativa credível, confiável, responsável e sobretudo ideológica, substantiva e com futuro no centro-direita do seu espectro político. Santana representa, já o provou vezes demais, o contrário de tudo isto. Adivinha-se a ambição, percebe-se o nervo, compreende-se a incontrolável vontade de ajustar contas com o passado, mas não se vislumbra qualquer projecto político e, desta feita, nem sequer os ingredientes mínimos para fazer face a um Sócrates que, é bom não esquecê-lo, fez de Santana Lopes o seu principal trunfo político nas últimas legislativas.
Mas Santana é um alvo fácil. E mais fácil ainda é criticá-lo fazendo por esquecer que o panorama não é muito mais entusiasmante do outro lado da barricada. E curiosamente é isso, mais do que qualquer outro factor, que preocupa no PSD. Não que Manuela Ferreira Leite não tenha quase tudo o que falta a Santana. Credibilidade, previsibilidade, respeitabilidade. Não que não represente uma pausa saudável no caminho de demência pelo qual o PSD enveredou. O pecado original da sua candidatura é de natureza bem diversa: Ferreira Leite representa, também ela, uma solução sem futuro. É simultaneamente a solução mais óbvia mas também a solução mais fácil. É uma solução federadora mas dificilmente será uma solução mobilizadora. É, inequivocamente, a solução de menor risco mas não aspira a ser mais do que uma solução de transição. Longe de ser uma solução que aponte ao futuro é uma solução que se limita a reparar os estragos do passado. Fadada para dirigir o partido, rumo a uma inevitável derrota em 2009, preparando caminho para uma batalha intestina que se limita a ficar adiada.
Porventura mais relevante, a opção por Ferreira Leite, por muito séria e estimável que seja (e é) a ex-Ministra das Finanças, é a vitória dos mesmos calculismos que abriram caminho ao consulado Santanista e, no Verão passado, à aventura Menezista. É a consequência da deserção das respeitáveis «elites» do PSD que, mais uma vez, se guardam à espera de melhores dias, deixando o partido à sua sorte e o país entregue aos cuidados do Eng.º Sócrates por mais quatro anos. Ora um partido cujas «elites» permanentemente se escondem em momentos de crise é um partido que não tem, nem merece, grande futuro. De Santana, pelo menos, ninguém dirá que lhe falta coragem.
Este é um claro sinal dos tempos. Na batalha pela liderança do principal partido da oposição vão enfrentar-se dois políticos que representam passados antagónicos mas nenhum futuro. É difícil que alguém se entusiasme nestas condições. Perde o PSD e perde o país.

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terça-feira, 29 de abril de 2008

A Liberdade está a passar por aqui

Fim de semana em Terras d'El Rey - Reguengos de Monsaraz - a convite do Presidente da Câmara Municipal, Victor Martelo, socialista no poder há mais de 30 anos.
No pretexto, a vontade expressa pelo autarca, laico e republicano, de juntar a sua terra às comemorações da Comissão D. Carlos - 1oo anos que, em 2008, tem um programa evocativo da vida e obra deste monarca quando passa um século sobre a sua morte.
Por iniciativa e empenho da Câmara, lá está agora, no pólo cultural de Reguengos, uma exposição sobre o Rei D. Carlos assinada por Rui Ramos, entre outros. E lá se realizou também um Concurso Hípico Internacional onde dezenas de cavaleiros disputaram a Taça D. Carlos e a Taça Duque de Bragança.
Um atrevimento.
O que diria Fernando Rosas de tamanha afronta à ética republicana? E o que faria Nuno Severiano Teixeira que, depois do mais breve esgar de contrariedade do Bloco de Esquerda no passado mês de Janeiro, decidiu desautorizar o Chefe de Estado Maior do Exército e o Comandante do Regimento de Lanceiros mandando retirar a guarda de honra há muito prevista para evocação sobre a morte de D. Carlos no Terreiro do Paço?
A todas a dúvidas o Senhor de Reguengos responde com naturalidade:
«Como poderia Reguengos de Monsaraz excluir-se deste programa?» Sabe do que fala.
Este Rei que chefiou o Estado português entre os 26 aos 44 anos, deixou uma obra notável no respeito pelo Regime Constitucional de alternância democrática; na actividade diplomática; no alargamento significativo das fronteiras da lusofonia; na gestão exemplar de uma imensa casa agrícola; nos estudos oceanográficos de que foi pioneiro em Portugal; na introdução e divulgação de desportos como o futebol e o ténis, para além da habilidade que demonstrava nas modalidades tradicionais de esgrima, tiro, vela, caça e equitação sendo considerado como um artista de primeira água entre os pintores do seu tempo.
Os manuais escolares - que precisaram de legitimar a República e os 66 anos de ditadura que se seguiram a 1910 - registam neste reinado o Ultimato inglês, o Regicício, as amantes e os adiantamentos à Corôa.
  1. A questão do Mapa Cor-de-rosa chegou à mesa do Rei dois meses depois de D. Carlos subir ao trono e teve como resposta uma uma acção diplomática assinalável durante os 18 anos seguintes que nos reabilitou a aliança inglesa, que seria vital contra os fortes interesses germânicos em África. Rui Ramos, autor da mais completa biografia de D. Carlos, considera que a questão do Ultimato já não tinha importância na opinião pública no dobrar do século XX. Do mesmo modo, as campanhas africanas durante este reinado contribuiram decisivamente para o alargamento substancial das fronteiras dos actuais países lusófonos.
  2. O Regicídio compromete quem o levou a cabo.
  3. As amantes do Rei são um assunto privado.
  4. E os adiantamentos à Corôa devem levar em consideração que cabia ao Rei, e não à Fazenda Pública como hoje, o sustento de todos as residências do Estado: Mafra, Vila, Pena, Belém, Ajuda, Necessidades etc.

Esta questão devolve-nos a Reguengos. D. Carlos herdou uma imensa Casa agrícola, na sua maioria hipotecada e abandonada,. Assumiu a sua gestão directa e, em poucos anos, rentabilizou as terras, retirando-lhes o estatuto de hipoteca; recuperou os montes; reabilitou os olivais e o montado de sobro conseguindo uma produção de azeite, vinho e cortiça ímpares; apurou gado e cavalos de raça. Numa palavra, constuiu um império agrícola com escala e controlo.

De tudo isto nos falou numa conferência João Ruas, do arquivo da Fundação da Casa de Bragança, quando a exposição itinerante sobre D. Carlos esteve em Évora. Estamos em Reguengos e agora também na Ovibeja. Para a semana, abre parte da exposição no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa, com um novo ciclo de conferências recomendável. Preparamos o Congresso Internacional dos Mares Lusófonos em Setembro e um grande colóquio na Católica. Estivémos no Open do Estoril na semana passada e em Maio apuramos os melhores trabalhos escolares sobre o Rei num concurso nacional com valências em ficção, jornalismo e artes plásticas. Haverá ainda regatas em Sines e no Algarve e estaremos na Golegã mostrando o que o Cavalo Lusitano deve a D. Carlos, entre múltiplas iniciativas.

«Só se ama o que se conhece». E vale a pena conhecer este Rei e o seu reinado.

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Este país não é para velhos (do Restelo)

Ontem não pude ver o telejornal mas vi algumas imagens que percebi serem do fim da apresentação da candidatura de Manuela Ferreira Leite e vi que ela teve o apoio de pessoas como Leonor Beleza, António Capucho e outro militante mais novo de quem gosto mas agora esqueci-me do nome. Isto vai endireitar finalmente o PSD, pelo menos por agora.

Não é preciso ser-se do PSD para se gostar deste novo alento. É que o país precisa também de boa oposição ao governo. E isso pode ainda ser mais necessário se o novo governo do PS não tiver maioria absoluta. Ou, caso o resultado seja outro, se o PSD for para o governo.

Há algo que ainda não está feito, todavia: a escolha de um bom assessor para os assuntos económicos, um bom ministro sem pasta das Finanças, por assim dizer. É que Manuela Ferreira Leite, apesar de economista, já mostrou não ter as melhores capacidades para ser ela a conduzir a politica económica (coisa que não deve envergonhar um líder partidário candidato a primeiro-ministro, diga-se), ao alinhar, por exemplo, com o “discurso da tanga” de Durão Barroso.

Como vêm aí grandes obras públicas (necessárias) e é preciso manter a sanidade financeira do Estado, é importante o eficaz o controlo destas matérias por parte da oposição e um nome com verdadeiros conhecimentos de como funciona a economia portuguesa e europeia faz falta. Muitas vezes confundem-se essas competências com a capacidade de gestão ou empresarial, ou com o facto de se possuir uma licenciatura em economia. Mas não são a mesma coisa. Quem possa ser esse nome, não faço ideia.

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segunda-feira, 28 de abril de 2008

O Assassino Desinteressado

A quem é que Tennessee Williams terá chamado uma “sweetly vicious old lady”? Talvez vos diga, talvez volte adiante a esta citação pérfida. Mas para começo de conversa, quero já confessar, sem precisar da mínima ameaça de tortura, alguma conspícua paixão pela infâmia.
Há um livro de patíbulos e piratas que a misericórdia divina cedo me colocou nas mãos e de que serei eterno e apoplético leitor. Escreveu-o, em estilo deliberadamente barroco, um escritor cego, de Buenos Aires.
Nesse livro, a que o autor chamou “História Universal da Infâmia”, o meu maior motivo de deleite é um pequeno conto de que é herói Billy the Kid, o assassino desinteressado. Um tiro feliz e cobarde catapultou-o para a fama. Disparou, coberto por uma barreira de homens temerosos, contra El Diego, um odioso mexicano que entrara no saloon gritando as boas noites a todos os gringos filhos de uma cadela que estavam a beber.
Billy morreu, pouco mais do que uma criança, aos vinte um anos, o exacto número de mortos que, “sem contar os mexicanos”, como escreveu Borges, devia à justiça dos homens. Liquidou-o, sem glória, nem ódio, o sheriff Pat Garrett, seu amigo.
Em Fort Summers, sentado e meio-escondido numa arcada obscura, Garrett disparou, antes de fazer qualquer pergunta, acertando-lhe em cheio na barriga. Ao fim de horas de agonia, Billy the Kid morreu. Em Fort Summers e arredores os precários habitantes exibiram-lhe com ferocidade o cadáver. E Borges com desditada ironia conclui: “Ao quarto dia enterraram-no com júbilo”.
Do que é que eu gosto – e gosto despudoradamente – nesta história? Do puro prazer narrativo com que Borges a trata e que é um convite para a lermos como se fossemos a velhinha docemente viciosa, que era o que Tennessee Williams chamava a Truman Capote.
Sem falsos moralismos, nem desculpas, quinze vezes levada ao cinema (mesmo agora, no “I’m Not There”, onde é uma das personae de Bob Dylan), a história de Billy the Kid converte o abominável em sublime. O que, se estivéssemos a ler as notícias do dia ou a consumir telejornais, nos pareceria apenas torpe e hediondo, ganha na literatura, nos filmes e nas canções, a grandeza piedosa e épica da lenda.
ps - Uma semaninha sabática (uma eternidade na blogosfera) já me pôs fora das novas leis do "Geração de 60" (um post à semana) e nem sequer comentei a entrada da Sofia Rocha (surpreenda-nos! provoque-nos!). Para me redimir recorri a crónica publicada de fresco aqui. Espero que a manobra de diversão seja aceite.

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Um rotundo não a mais e mais propaganda

Pelas mais variadas razões, tenho assistido a apresentações de iniciativas do Governo. Choca-me de sobremaneira o lado feérico e histriónico da logística da apresentação. Ainda hoje - desta vez só pelos microfones da rádio - senti a parafernália de "comunicação" para o anúncio da Nova Alcântara. Passar-se-á isto, desta maneira e com estes contornos, nas restantes democracias europeias? Para anunciar uma medida, um programa, um plano será necessária tal mobilização de meios humanos e financeiros? E os jornalistas continuam a acreditar e a dar crédito a tal cenografia? Um pouco mais de parcimónia, algum sentido da contenção de gastos e a probidade respeitadora dos sacrifícios dos portugueses não justificariam outra atitude do Executivo? E não mereceria outra censura? Haverá projectos com sentido e intrinsecamente bons; haverá outros simplesmente demagógicos. Com esta encenação, não há quem distinga o trigo do joio.
Não - um não rotundo - a tão perniciosa propaganda.

ps- só voltarei a 7 de Maio.

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Talvez isto ...

...interesse aqui. Trata-se de uma polémica sobre um assunto que ainda é tabu na nossa sociedade, a saber: poder dizer-se que a economia portuguesa cresceu antes do Twenty-five - e bem - sem se ser acusado de direitolas proto-salazarista. É uma polémica séria e não se deve esquecer que dos dois lados há sempre um pouco de razão (embora pense que do meu lado está um pouco mais). Em retrospectiva, começa aqui.

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domingo, 27 de abril de 2008

PSD: Um Marco António sem gelo, p. f.

Num filme discreto e tocante, "Fugitive Pieces" (2007, Jeremy Podeswa), um homem não consegue libertar-se dos fantasmas traumáticos da infância, até ao dia em que percebe que esses fantasmas não reclamam a sua presença. Pelo contrário: só querem ser deixados em paz. É também o dia em que percebe que não se deve tentar juntar as peças do puzzle - deve-se viver tranquilamente cada uma delas.
Há uma frase no epílogo do filme que, como um brinco de pérolas, se agarra com facilidade ao lóbulo da orelha, uma frase retirada - presume-se - do romance/floresta poética de Ann Michaels no qual a fita é inspirada: "O mistério da madeira não é ela arder, é ela flutuar". Desculpem: o que tem isto a ver com Marco António, aquele homem-Bê que parece um desenho rápido de um ilustrador dado a depressões?

Paul Valéry dizia que "a política baseia-se na indiferença da maioria dos interessados", e as sondagens, os estudos de opinião e as próprias eleições confirmam isso com a periodicidade alérgica das sinusites (o que não seria grave se não se tratasse de um pedaço importante do futuro de todos). Ora, quantos políticos - dos tiranetes de província aos meta-barões da grande cidade - já compreenderam o mistério da madeira?

Façam um breve exercício, e pensem nos políticos que vocês confiam acreditar real e desinteressadamente no serviço público, no bem comum, na construção social da comunidade que integra como os objectivo maiores de uma carreira.
Claro que essa crença não constitui, em si mesma, qualquer sinal de competência, muito menos de inspiração: um sociopata (e não é preciso ver muitos telejornais para chegar à conclusão que existem vários na política portuguesa) acredita firmemente na justeza das suas convicções.
Mas o ponto de degradação a que chegamos - não apenas na telenovela colombiana em que se transformou a luta pela liderança no PSD, mas também pelos aflitivos exercícios de autoridade do PS - coloca os problemas nesse plano: resta alguém na política que, pelo final do dia, quando se deita na cama e olha para as lâminas de luz a surgirem da rua, repousando no tecto antes de passarem para a casa seguinte, adormeça a transformar os sonhos de todos nos seus sonhos?

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Sofia Galvão na Antena 1 ou da denúncia dos tácitos compromissos

Acabei de ouvir a entrevista da Sofia na Antena 1 ao Pedro Rolo Duarte. Falar de Política a partir do chamado espaço público sem estar integrado na intriga dos partidos não é tarefa fácil a não ser que se faça com o sentido de responsabilidade de quem, não sendo deputado nem governante tem de pensar como se fosse, ou seja, não reduzir a sua intervenção a slogans irrealistas e de puro exibicionismo.

Talvez um dos pontos programático mais relevantes tenha sido o de desmistificar a ideia que se tem tornando corrente e limitadora de que os partidos do “centrão” se digladiam pela ocupação do espaço político do outro, esvaziando, assim, temporariamente (ainda que o desejem permanentemente), as oposições. A Sofia identificou o ponto da coincidência quando referiu que ambos identificam o problema e ambos dão as respectivas respostas de igual modo. Aqui está uma sugestão para a nova potencial liderança do PSD: sair do ciclo vicioso e construir um novo discurso de causas, necessidades e respostas para o futuro, que não vá só a reboque dos tempos, mas pretenda construir um novo tempo. Ou seja, alterar a dicotomia Estado Social e Desenvolvimento económico, social e político. O modelo social da chamada esquerda é, sobretudo, baseado no materialismo ideológico e, por isso, reduz-se à sociologia e à economia, apresentadas como ciências que esgotam a realidade da existência humana. Morto o indivíduo, emerge o ser social e genérico em nome do qual o igualitarismo socialista se deve bater. Ora, um novo discurso deve acima de tudo descolar-se desse condicionamento ideológico dentro do qual ninguém se entende nem tem argumentos para se diferenciar.

Num outro ponto, Sofia Galvão retomou a questão da liberdade de intervenção na vida política, reafirmando o franquear das portas pelas estruturas obedientes e seguidistas dos partidos políticos à sociedade civil. Está identificado este fechamento. Quem tem medo da democracia fecha-se numa imitação de democraticidade e limita a intervenção de quem não é seguidista, nem obediente, e pode por em causa os poderes instalados. É típico dos fracos. Mas, posto o problema e devidamente identificado, pergunta-se: como mudar este vício? A verdade é que na política que temos, líderes e prosélitos, ouvem da sociedade civil estas críticas mas não pensam em mudar nada na substância. Pensam, isso sim, em como esvaziar esta consciência através de propaganda política e recorrendo a chavões como o de que em democracia os partidos são estruturas abertas à participação de qualquer cidadão e que, por isso, ninguém tem a sua liberdade de intervenção cerceada. Não sei se esta não é uma das tragédias da política, ou seja, o facto de o poder deter uma operacionalidade sobre o real que lhe permite sempre manipulá-lo sem se beliscar. Há uma encenação constante pelos políticos que estão sempre suportados numa dialéctica mistificadora e, por isso, viciada, que lhes permite, estando no poder, gerir a sua própria perpetuação ou renovação. A partilha do poder é sempre entre os mesmos. E esse é, também, o seu tácito compromisso. Pelo menos, visto de fora.

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sábado, 26 de abril de 2008

A cultura da batata

Escreveram-me um comentário em que referiam as batatas, por referência ao 25 de Abril. Sem saberem, deram-me o mote para o presente.
Chamo-lhes histórias, porque sou eu a dar-lhes o tom, o contexto e o enquadramento. A mim contaram-me como factos. Ouvi-os de viva voz, pelos meus pais, avós, tios, primos e restantes parentes. Não os tenho por mentirosos e para além da sua boa-fé, de que não duvido, tive ocasião de ver fotos, a preto e branco, em que crianças, de olhos bem abertos, e pé descalço no chão, posavam para o fotógrafo que uma vez por ano visitava as aldeias. O que vou contar passou-se nas décadas de trinta até à década de sessenta do século xx. E passou-se em aldeias que distam de Lisboa 80 km. Nesse tempo, quem tinha o que comer, comia batatas. Só batatas. A minha avó, dizia que na sua casa de doze bocas, uma sardinha dava para seis. Comiam-se papas, feijão, couves. Havia batatas duas vezes por ano, e quando acabavam, a fome era geral. As galinhas matavam-se duas vezes por ano, por ocasião das festas religiosas. Em geral comia-se carne meia dúzia de vezes por ano. O resto, as galinhas, os ovos, vendia-se a quem os podia comprar. O pão era cozido uma vez por semana, e no final da mesma, já era duro e bolorento.
Lembro-me bem de ouvir contar que uma vez um rapaz, o António, que trabalhava no campo com o seu pai, num regime em que o trabalho era comprado ao dia, à "jorna" como se dizia, à hora do almoço contemplava a merenda com ar infeliz. Perante o ar infeliz do rapaz que contemplava a refeição, batatas, com um pouco de azeite, lhe dizia o pai: "- Mistura Tóino, mistura...".
Não sei porquê, mas nunca os ouvi a falar desses tempos gloriosos em tom saudoso.

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sexta-feira, 25 de abril de 2008

Sem comunicação e muito menos autorização

Agradeço ao Geração de 60, ter-me convidado para aqui escrever. Nuca fui autora de coisa alguma, apenas do meu trabalho. Apareci por aqui a comentar, e penso que estes amigos me quiseram dar uma lição, ai sim que já te apanhamos, agora vais ver como é!
Fica desde já prometido que se não estiver à altura, e aprendida a lição de humildade, retomo o lugar inicial.
Sobre a data solene de hoje, gostava de lembrar as conquistas para as mulheres com o 25 de Abril. As comunicações e autorizações do marido - para trabalhar, para viajar - tinham consagração legal, tornando-as pessoas sujeitas à vontade de outrem. Ao livre arbítrio de outro ser humano.
Não alinho em feminismos de pacotilha - oxalá a Inês Pedrosa não leia este blog - mas tenho de convir que foi preciso que muita gente de espírio livre, pensasse, trabalhasse, se incomodasse, e que pagasse o preço da afronta para que eu hoje possa escrever sem o comunicar, e muito menos, sem pedir autorização a alguém.

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Poder - a quanto obrigas?

Declaração de interesses: colaborei com Pedro Santana Lopes na CML e no Governo. Não sou do PSD.

Gostaria de ver na corrida Marcelo Rebelo de Sousa por estar convencida de que, cada vez que o professor tem responsabilidades, está à altura delas.

Aprecio o tom sem mácula política que Pedro Passos Coelho sugere. Mas gosto de fundamentar a esperança.

Vejo em Manuela Ferreira Leite uma oportunidade de discutir políticas com nível e de agregar pessoas parecidas. Temo a colagem com a imagem do Sócrates cobrador de impostos e o contraste desmerecedor com o Sócrates runner jovial.

Gosto de ver Alberto João Jardim mais envolvido na política nacional. A sua experiência e instinto são úteis. É pena que mantenha no Continente a exigência da ausência total de concorrência.

Pela estima que tenho a Santana Lopes, preferia não voltar a ouvir tão cedo os ataques de que vai ser alvo, nem sempre merecidamente. Mas o combate político não se compadece com juízos pessoais deste tipo. Desejo que seja melhor interpretado.

Das expectativas, passemos à realidade. A verdade está na síntese da Sofia: «A geopolítica intestina serve aritméticas de antecipação muito difícil».Tudo se decide por gente movida por rancores de bairro ou promessas de palanque no seu pequeno quarteirão. Os candidatos a líder ainda podem arranjar intérpretes e comerciantes para lidar com os câmbios de cada moeda. Mas ficam a dever a vitória a este anel de intermediários. A ele ficam vinculados e devedores.

Salvo se ganharem as eleições.

Ou, quero crer, salvo se o seu discurso interpelar directamente o eleitor laranja e não tanto os capatazes dos votos distribuídos por todo o País. Tenho essa esperança. Apenas porque não aceito que estejamos reféns dos merceeiros que fazem prevalecer os interesses às vontades; os postos, às ideias; os corredores, aos horizontes; os favores à melhor militância política.

Qual dos candidatos pode romper com esta lógica?

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E daqui a 34 anos?


Ao ouvir o discurso do Presidente da República, neste 25 de Abril de 2008, lembrei-me de um artigo que publiquei em tempos. E pareceu-me fazer sentido recuperá-lo para a blogosfera.

Escrevi então assim. Há exactamente quatro anos.


De há 30 anos, a minha geração lembra essa manhã sem escola, as telefonias ligadas pela casa e uma ansiedade imensa no ar. Todas as rotinas suspensas em nome de um sonho que foi ganhando verosimilhança.

Crianças, então, não podíamos percebê-lo, mas a diferença daquele dia marcaria a certeza da diferença das nossas vidas. Para nós, a liberdade, a democracia, o pluralismo político, os direitos fundamentais, o Estado de Direito seriam realidades tão naturais como a sucessão dos dias. Graças àqueles que, em 25 de Abril de 1974, militares e civis, largaram dos quartéis e encheram as ruas. Como também àqueles que, nos tempos excessivos que se seguiram, souberam defender o essencial, impedindo a subversão do percurso e garantindo a consolidação de uma nova ordem livre, democrática e plural.

Mas crescemos, como, depois de nós, cresceram outros. E, entretanto, nasceram ainda muitos e muitos mais. Portugal é, hoje, um país diferente, feito de gente diferente, num mundo diferente.

De há 30 anos, ficou o núcleo do nosso quadro colectivo de vida. Porém, mesmo aí, com evoluções profundíssimas – a maior parte das quais porventura inimaginável nesse Abril longínquo.

A revolução prometeu democratizar. E democratizou. Mas, 30 anos depois, o balanço inspira reservas. Formalmente, tudo está assegurado e tudo se cumpre na mais estrita regularidade. As instituições existem e funcionam. O povo, ciclicamente convidado ao voto, legitima o exercício do poder. Não obstante, é cada vez mais indisfarçável o abismo que aparta a sociedade civil do universo político. A afluência às urnas diminui ano após ano. O interesse pela actividade política decresce inexoravelmente. E, na normalidade do quotidiano, a participação cívica é inexpressiva. É o tempo da indiferença. O colectivo não convoca. Exacerba-se o hedonismo e, com ele, a relevância dos níveis de sucesso, de conforto e de evasão individuais. A cidadania – entendida como sindicância democrática do poder – converte-se, a esta luz, numa impossibilidade absoluta. Até porque, não se subestime o condicionamento, a matriz cultural é autoritária, centralizadora e anti-liberal.

A revolução prometeu, ainda, descolonizar. E descolonizou. Porém, num processo que não correu bem e que, a esta distância, é forçoso reconhecer que não obteve bons resultados. Em África, deixámos guerra, fome, desespero, corrupção. Em Timor, foi o que se viu. Como insuspeitamente disse António José Saraiva, uma autêntica ‘debandada de pé descalço’, com o que isso encerra de ausência de reflexão, de preparação, de programação. Também, e sobretudo, de responsabilidade. Sobre as cinzas das instituições coloniais, entregámos povos irmãos à sua sorte – sem assumir qualquer cuidado decorrente de quatro séculos de caminho partilhado. No fundo, deixámos uma herança de inviabilidade, que faz da endémica resistência dos novos países à modernização e ao progresso a expressão visível da nossa culpa histórica. Depois e desgraçadamente, não soubemos sequer densificar laços de cooperação privilegiada, capazes de ligar os povos e culturas de língua portuguesa a uma mesma comunidade de desenvolvimento.

Por fim, a revolução prometeu desenvolver. E desenvolveu. Mas fê-lo, sobretudo, a partir do final da década de 80, com o inestimável contributo europeu. Antes disso, o PREC, confiante na dimensão salvífica das reservas de Salazar, destruiu a economia e o sistema financeiro. Logo a seguir, vieram os tempos da bancarrota e do FMI. Mas, com os muitos milhões de Bruxelas e um novo quadro interno na banca e nas empresas, a evolução foi inevitável. Hoje, já nada permite reconhecer o país atávico, cinzento e provinciano do antigo regime. Como, aliás, já quase nada lembra o país militante, ingénuo e leviano dos primeiros verões de liberdade. Foram 30 anos de caminho, cumprido passo a passo, para o bem e para o mal. Porém, precisamente porque é tempo demais para não questionar o sentido das coisas, a grande questão da nossa actualidade colectiva é a própria orientação que levamos. Portugal parece ir vivendo à deriva, sem definir estratégias e sem eleger desígnios. O que é, afinal, intrinsecamente incompatível com uma ideia de futuro. Os países e os povos precisam de saber para onde vão e porquê. Ora, nós, como país e como povo, não prosseguimos nada e não apontamos para nada.

Portanto, a par das inalienáveis conquistas de Abril, consolidadas sobretudo no plano político-formal, é patente que, no plano da obra, sobra alguma insatisfação. E esta remete-nos para algo que veio a revelar-se marcante nestes nossos 30 anos de vida pública: a constância dos protagonismos.

Com efeito, ressalvando o caso de algumas mortes e de alguns (poucos) afastamentos naturais, a generalidade daqueles que a actualidade de há 30 anos assumiu como protagonistas, assim continuam reconhecidos pela actualidade de hoje. São tantos que seria ciclópico nomeá-los, mas é seguro que os documentários evocativos da data, a exibir durante estes dias, nos trarão o registo dos principais. Paralelamente, ao lado destes que perduram como baluartes do regime, os outros poucos que surgem de novo têm a particularidade de nada melhorarem face aos anteriores (significativamente, a maioria foi, afinal, formatada nas jotas dos anos setenta e oitenta). Ou seja, nos protagonismos não há substituição, mas acumulação. E não há refrescamento, mas clonagem.

Por via disto, a vida pública tem vindo a degradar-se. Os mais antigos, senadores que fazem da arena política e do espaço mediático o seu senado, perderam viço, acomodaram-se, ganharam tiques. Os mais recentes, salvo excepções honrosas e marginais, nunca impressionaram. Mas, uns e outros, encontram-se na defesa da intangibilidade do seu estatuto e, prevenindo, blindam os universos partidários às investidas de quaisquer eventuais aventureiros.

Ora, quando está em causa a definição do caminho, a qualificação dos protagonismos é a primeira das prioridades. Dela depende a motivação colectiva e a perspectiva de novos níveis de participação política – é preciso pensar o país, fazer disso agenda e convocar os portugueses para essa imensa discussão.

Para quem há 30 anos era criança, não há, hoje, hesitação possível: sem a inerente rematerialização dos grandes compromissos de Abril, o sistema estiolará. E, daqui a 30 anos, faltará a memória, o sonho e o projecto.

Post Scriptum, em 25 de Abril de 2008 - Nunca fui cavaquista, mas isso jamais me impediu de seguir com atenção e respeito a acção de Cavaco Silva (e, muito menos, de valorizar o inegável contributo que deu ao desenvolvimento de Portugal, nos seus mandatos de Primeiro-Ministro).

Há exactamente dois anos, fui sensível à importância do que disse e à agenda de solidariedade que então firmou.

Hoje, rendi-me à inteligência de um discurso que, subtil, nos confrontou – a todos – com uma interpelação violentíssima: foi para isto??? Fizemos o 25 de Abril para que, 34 anos depois, a população se demitisse e alheasse da política com esta expressão intolerável?? Foi esta a democracia que prometemos??? É esta a democracia que queremos??
Só mesmo Francisco Louçã para, do alto do seu fanatismo sectário e míope, dizer que, pela primeira vez, o conteúdo do discurso do PR no 25 de Abril não trouxe qualquer mensagem política (!!!) (SIC-Notícias, em directo dos Passos Perdidos, no final da cerimónia)…
Poderia ter havido mensagem mais política?! Mais directa ao âmago de todas as questões?? Da vida partidária à qualidade da governação ou à densidade da democracia?...
Até porque, na minha leitura, a inteligência deste discurso está também no seu enfoque. A juventude é aqui, no essencial, uma figura de estilo: uma metáfora, com alguns condimentos de hipérbole destinados a assegurar a ênfase retoricamente devida. No fundo, não é a juventude que está assim. É toda a população. A memória vivencial dos mais velhos não deve confundir-se com maior empenho, compromisso, interesse ou esperança. Infelizmente.

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5 Breves para uma Democracia Futura

Tratado de Lisboa: Imaginemos que a consulta aos portugueses resultava num não, mas uma maioria parlamentar impunha a ratificação por causa dos compromissos que tinha contraído com os parceiros europeus. Poderia ter-se dito que os portugueses estavam empenhados nessa ratificação e que se identificavam com esse projecto preparado em Bruxelas? Então, como se pode dizer, sem ter havido consulta, que os portugueses aderem a este tratado?

Democracia: A democracia é, por natureza um regime político em que os destinos dos povos são determinados pela decisão do próprio povo e em que cada um é chamado a actuar e pronunciar-se a partir dos seus interesses particulares e pela sua visão do interesse comum. Como podem os políticos em dias de discurso tomar as tribunas para falar em nome de um povo que não se pronuncia e que vive na dependência formal de governos e oposições que têm na sua máquina propagandística os slogans que fazem o povo ser aquilo que não é ou que não manifestou ser. Enquanto não se perceber que sem liberdade de expressão, sem liberdade económica e sem liberdade de ensino, as democracias são apenas ilusões que isolam a classe política numa torre de marfim inexoravelmente separada do povo e de todo o potencial que em liberdade o povo pudesse revelar não poderemos falar plenamente de democracia. O paternalismo que se critica nos regimes totalitários, isto é, a substituição da iniciativa dos cidadãos pelo autoritarismo do Estado omnisciente e omnipresente, é renovado nos regimes em que o Estado impõe modelos políticos, sociais e económicos que cataloga como entende dizendo que são a expressão da vontade popular mas que não são mais do que espartilhos para limitar e condicionar a liberdade de expressão, a liberdade de ensinar e a liberdade económica, ou seja, um renovado paternalismo. O paternalismo e o maternalismo do Estado Providência que há vários séculos sem interrupção menoriza em Portugal os portugueses aí continua sem esplendor nem futuro. Ninguém representa um povo se tem medo que ele revele aquilo que é.

Juventude: Acordou-se para o problema de os jovens não se interessarem pela política. Pode ser mau, mas também pode ser bom. Ás vezes é da desertificação que nascem novas motivações. A avaliar pelos jovens que se interessam pela política é preferível que não se interessem. A actual organização do Estado português baseado num poder autocrático dos partidos políticos só pode levar a que os jovens que se interessam pela política queiram ser intérpretes deste modelo esvaziado e viciado. Porém, para o bem e para o mal, o desinteresse dos jovens pela política há-de acabar por gerar uma renovação em que seja perceptível que o futuro dos povos será o que os cidadãos que não querem mandar uns nos outros fizerem dele.

Esperança: Ao contrário do que foi hoje dito no discurso do Senhor Presidente da República, Portugal não é um povo pessimista desde tempos imemoriais. Caracteriza-se o pensamento português por um optimismo que se opõe ao pessimismo norte-europeu. A resignação que há três séculos vem possuindo a alma portuguesa é precisamente a da condução contra-natura dos nossos destinos. Qualquer país ocupado por estrangeirados, ou por um pensamento filosófico que não nasce da sua visão, perde não só o ânimo como a capacidade de dialogar com as outras culturas. A abertura dos portugueses ao domínio de filosofias adversas à sua fisionomia não só nos tem aculturado como também nos tem tornados submissos, semeando o desejo de evasão e de integração no que não nos diz nada, como acontece aos convertidos em desespero de causa. São sempre mais papistas que o Papa. Só há um caminho: deixarem-nos ser como somos mesmo que corramos o risco de não sermos nada.

Liberdade: Ninguém quer viver num cárcere. Todos somos sensíveis e abertos à ideia de Liberdade. Mas não nos troquem os significados das palavras. Acreditem mesmo na liberdade! A liberdade é uma finalidade do pensamento. Se não tivermos a Liberdade como finalidade do pensamento talvez nem possamos chamar pensamento ao que pensamos. Ninguém tem a liberdade no bolso. Ninguém é o campeão da liberdade. Cada um encontrará uma liberdade possível no seu caminho e isso o fará caminhar. O pensamento não é colectivo. O pensamento é individual. A liberdade com que cada um puder pensar terá mais reflexo na liberdade dos povos que qualquer discurso de intenções. A liberdade não se reduz ao livre-arbítrio, posso fazer o que quero e não ser livre. A liberdade é o desprendimento que se encontra no fim de um caminho, é a libertação do que prende, do que nos escraviza, do que nos faz viver em contradição com a nossa natureza subtil. Ninguém dá, nem ninguém tira a liberdade a ninguém, como demonstram a vida dos santos e dos heróis. A liberdade dos povos está no projecto de maioridade a que cada cidadão está individualmente destinado para se realizar como ser humano e não na condescendência paternalista que concede licenças a troco de obediência e bons comportamentos.

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quarta-feira, 23 de abril de 2008

Cuidado com a tolerância...



Há pouco mais de 500 anos, no dia 19 de Abril de 1506, alguém afirmou ter visto o rosto de Cristo iluminado sobre um dos altares da igreja do Convento de São Domingos, em Lisboa (ao lado do actual Teatro D. Maria II), o que foi imediatamente interpretado como sendo um sinal da misericórdia divina anunciando aos crentes o fim de um longo período de pestes e de seca.
Ao seu lado, porém, alguém perguntou, prudente, ou incrédulo, se não poderia talvez tratar-se de um simples reflexo de sol... Mas logo se arrependeu de tal pergunta, pois que, rapidamente identificado como sendo um cristão-novo, foi imediatamente agredido pela multidão que, descontrolada, o espancou até à morte.
A inflamada promessa de 100 dias de indulgências a quem matasse os hereges, ali então feita por um padre dominicano, libertou irremediavelmente a fúria da multidão que, nos três dias que se seguiram, nessa triste semana santa, percorreu a cidade agredindo, roubando, violando e matando cerca de 3.000 presumíveis judeus (os quais, desde 1497, se vinham “convertendo” ao cristianismo).
Só o envio das tropas reais entretanto determinado por D. Manuel, que não se encontrava em Lisboa, conseguiu pôr cobro aos tumultos, tendo-se depois punido os responsáveis, confiscado os seus bens, condenado à morte o dito padre dominicano e encerrado o Convento durante alguns anos.
Foi por ocasião dos 500 anos deste terrível acontecimento que a Comunidade Israelita de Lisboa, em 2006, propôs à Cãmara Municipal a colocação, no mesmo largo de São Domingos, de um memorial evocativo da chamada “matança da Páscoa”. A Igreja católica imediatamente se associou a esta proposta, manifestando o desejo de juntar-lhe um outro memorial, nomeadamente do gesto de "purificação da memória" e de reconciliação naquele mesmo local deixado, no ano 2000, por D. José Policarpo.
Estando ambas as comunidades de acordo, foram entregues os respectivos projectos na Câmara Municipal de Lisboa, então presidida por Carmona Rodrigues, mas as propostas não tiveram qualquer seguimento (vá-se lá saber porquê...), até ao momento em que a actual presidência da Câmara, tendo tido conhecimento delas, unanimemente se associou à iniciativa, à qual quis juntar uma placa alusiva ao acontecimento e um mural que propõe Lisboa como cidade da tolerância.
Foi assim inaugurado, ontem, no largo de São Domingos, em Lisboa, o Memorial às Vítimas da Intolerância, evocativo do massacre judaico de 1506. A cerimónia foi presidida pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, e pelo Rabino da Comunidade Judaica de Lisboa, Eliezer Shai Di Martino, que podem ver-se na fotografia, acima, simbolicamente soltando algumas pombas da paz. A eles se juntaram representantes das diferentes comunidades religiosas e de imigrantes da cidade, como mais detalhadamente se poderá ver aqui, aqui e aqui.
A propósito desta “tolerância”, porém, de que Lisboa ali quer ser sinal, é bom notar que aquelas pombas da paz (aliás representadas no memorial católico por referência à arca de Noé, que tanto na tradição judaica, como na cristã, mostra toda a humanidade como sendo uma só família), surgem, hoje, em Lisboa, como verdadeiros cavalos de Troia.
De facto, desde a reconstrução de Lisboa iniciada pelo Marquês de Pombal, todos os sinais da vida religiosa têm vindo a ser sistematicamente afastados para as ruas secundárias e menos “iluminadas” da cidade. Aqueles memoriais, assim, são agora o único elemento religioso visível no eixo central que vai do Terreiro do Paço à Avenida da República. Essa é também a sua importância.
A lógica moderna, de facto, é a do totalitarismo do exterior sobre o interior, do objectivo sobre o subjectivo, do público sobre o privado. Sendo isto tantas vezes dito, porém, o facto é que eu nunca tinha dado conta desta inexistência de qualquer “publicidade” religiosa no centro da vida da cidade. A inexistência, na verdade, tem esse efeito – não se vê. E não se vendo é fácil fingir-se que se tolera. A verdade, porém, é outra: não se vê justamente porque não se tolera.
É por isso que este primeiro sinal de uma existência religiosa que a Igreja católica conseguiu firmar neste eixo público central da cidade de Lisboa (várias vezes tentado, sem êxito, ao longo dos últimos, pelo menos, cem anos), tem um duplo teor negativo, à maneira do cavalo de Troia: se ali entrou, em primeiro lugar, foi por ter sido proposto por uma comunidade religiosa que não a católica; se ali entrou, em segundo lugar, foi por lembrar actos de intolerância, os quais, de um modo geral, continuam a querer atribuir-se à existência religiosa – e sobretudo à católica – no espaço público.
O facto, porém, é que entrou, pela sábia mão de D. José Policarpo que, tal como Ulisses, soube imaginar outras formas para a resolução do conflito. E este, creio-o bem, é um verdadeiro sinal dos tempos. Nos próximos 200 anos, se não me engano, veremos as comunidades “locais” serem de novo impregnadas, no seu seio, por um espírito religioso com o qual terão de saber abertamente conviver. Para tal, no entanto, terá de ser vencida a intolerância que, em nome de um homem-deus, há muito que não permite que, em público, expressemos profundamente as nossas convições.

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Paisagens que contam histórias

Num comentário ao meu post sobre Dubrovnik o Manuel S: Fonseca reivindica para o cinema a capacidade de nos oferecer paisagens mais belas que a vida pode oferecer. Claro que eu, jurista que sou, já me tinha precavido limitando-me a dizer que se tratava de uma paisagem que o cinema não podia imitar (o que é diferente de superar…). No entanto, com o intuito claro que provocar o Manuel Fonseca a nos mostrar algumas dessas paisagens pensei em enviar uns exemplos de panorâmicas no cinema. Para mim o que diferencia a paisagem no cinema da paisagem "no buraco da muralha" é a associação narrativa. Eu Dubrovnik eu limitava-me a olhar. Estas paisagens que seguem contam-me uma história. No cinema a paisagem não é estética mas narrativa. Escolhi alguns dos meus openings shots panorâmicos favoritos que me vieram à cabeça, escolhidos pela capacidade que têm de nos oferecer toda a atmosfera do filme que se segue. Confesso que há dois (talvez os que mais gostaria de vos mostrar) que não consegui encontrar na net… A sequência inicial (penso que filmada em helicóptero) do Psycho (que nos transporta da cidade à intimidade) e um plano panorâmico em sentido contrário ao do olhar do Polanski (que, inconscientemente, nos coloca em tensão para o thriller que se segue). Mas os três exemplos que se seguem são bons se bem que, tenho a certeza, o Manuel é capaz de encontrar muitos e melhores exemplos (isto é um pedido!!).
Primeiro exemplo: Barry Lindon
O segundo exemplo é a panoramica sobre as ruas de Berlin num dos planos iniciais do filme de Wenders Os Anjos sobre Berlin.

O terceiro é Blade Runner:

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terça-feira, 22 de abril de 2008

Sobre o PSD, para memória futura (II)

Saúdo a candidatura de Manuela Ferreira Leite.

Em primeiro lugar, por assumir o sentido de urgência que marca o momento político.
Em segundo lugar, por ter a óbvia virtude de elevar o nível da discussão política e de devolver decência à actividade partidária o que, face ao deplorável estado das coisas, sempre seria a principal prioridade.
Bastam estas duas razões para ter a certeza do meu voto.

Mas, dito o essencial, a medida da minha satisfação fica em aberto. À espera. Da equipa. Das propostas. Do tom. E da atitude.

Manuela Ferreira Leite é, por formação e por índole, uma Economista. Como líder do PSD, deverá ser sobretudo Política. É esse o grande desafio que a história lhe faz.

Portugal tem, hoje, um problema de liberdade. Como tem um problema com a qualidade da sua democracia. São questões políticas. Matricialmente políticas.
Mais, Portugal tem um problema de governabilidade. Como tem na política a dificuldade maior da sua economia. De novo, questões políticas. Que requerem pensamento político. E, antes disso, visão política.

Vamos ver que perspectivas abrirá Manuela Ferreira Leite. Vamos ver se percebe a premência da abordagem.

Digo isto na iminência de uma campanha e pensando na campanha. Porque estou absolutamente ciente da importância das semanas de confronto que aí vêm.

A vitória está longe de ser evidente. O PSD é, hoje, um partido disfuncional, feito à medida de jogos de poder que estão no terreno, instalados, há demasiado tempo. A geopolítica intestina serve aritméticas de antecipação muito difícil. E pode haver surpresas do lado de uma candidatura que avance para defender o ‘status quo’.

Aliás, seja qual for o resultado final, algo parece certo: no PSD, nada voltará a ser o que foi. Se Manuela Ferreira Leite ganhar, a linha basista tenderá a radicalizar a derrota e a retirar consequências políticas do facto. Se, pelo contrário, a vitória premiar o caciquismo eleitoral urdido, secção a secção, pelo actual poder, é provável que os derrotados apelem ao lastro moral do PSD para aí fundarem o dia seguinte.

No fim, entre dois fogos cruzados, Pedro Passos Coelho sobreviverá. E terá crescido politicamente. Com a presente candidatura, teve a inteligência de garantir que também dele virá, inevitavelmente, um sinal dirigido ao futuro.

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Um buraco na muralha


Apenas um sinal (cold drinks) e um buraco na muralha. A selecção faz-se pela curiosidade: apenas aqueles que a tem e se deixam por ela guiar são premiados. Quem se atreve a entrar acede ao mais belo plano panorâmico que a vida pode oferecer e o cinema é incapaz de imitar. É o melhor local de Dubrovnik para ouvir e ver o mar podendo-se mesmo descer até ele como que deslizando na muralha de Dubrovnik. E, no entanto, tudo parece feito para nos fazer sentir como parte de um segredo que apenas a nós foi revelado. É assim há anos neste bar e é um pouco o espírito de Dubrovnik: mais preocupada em manter-se fiel aos que sempre a amaram do que em mudar para satisfazer os que agora a descobrem. Há anos que, por razões académicas, visito esta belíssima cidade do adriático e ela parece conseguir renovar-se sem perder a sua identidade. Não há novas construções: prefere-se restaurar o antigo. A comida é sempre a mesma: scampi buzzara, risotto negro, frito misto, presunto e queijos da dalmatia. E eu, que gosto tanto de criatividade e mudança, fico satisfeito em não ser surpreendido. Há cidades assim, que se querem paradas no tempo mesmo quando as sentimos invadidas pelo progresso. É que as vezes necessitamos de viajar para regressar ao que nos é familiar.

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Pre-emptive strike

Não sei se obedeço à consciência ou ao medo mas depois do post do Pedro Norton não me resta alternativa… Não tendo estado no jantar (sou o estrangeirado do blog) senti as orelhas à arderem. A verdade é que este fim de semana tive vontade e tempo para fazer um par de posts a partir de Dubrovnik onde me encontrava. Ao ler o Público no Hotel (o mundo moderno permite ter um jornal português do dia num hotel a milhares de quilómetros de Portugal) não resisti a comentar a entrevista do Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática. O problema foi que acabei por também resistir a aceder à Internet a 24 euros por dia… Suponho que foi uma questão de matemática… Seja como for ainda vou a tempo de elogiar a entrevista e de impedir a minha imediata (e justificada) expulsão. Como o Pedro terá apreciado no Benfica-Sporting a melhor defesa é mesmo o ataque (sorry aos Benfiquistas do blog mas a diversidade que pretendemos também é clubista).
O que me impressionou na entrevista do Professor Nuno Crato é a forma como ela contrasta com a abordagem dogmática dos problemas do ensino que tem dominado o nosso debate público. Quem a ler percebe facilmente como tão pouco científico tem sido esse debate. Desde logo, na forma como o nosso discurso sobre a educação tem sido facilmente contaminado por uma lógica de dogmatismo científico e/ou ideológico que é o contrário da própria ciência. Esta foi a primeira entrevista em que encontrei alguém que parece exercer um verdadeiro discurso reflexivo e crítico sobre a fins e os métodos de ensinar. Sem medo de reconhecer que também se enganou e com uma abordagem metodológica aberta e dominada pelo bom senso científico (o que também é diferente do mero bom senso!). Esta entrevista demonstra o poder de uma abordagem científica que não se deixa conquistar ou transformar numa ideologia. Um belo exemplo do poder da matemática. Não conheço o Professor Nuno Crato mas fiquei fan.
Já agora complementem a leitura da parte da entrevista relativa à avaliação dos Professores com a leitura do primeiro capítulo de Freakeconomics. Uma leitura que demonstrará bem como o debate português se faz, por vezes, ignorando as questões realmente relevantes….

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Sinais vitais

Hoje nos noticiários das 7h da manhã renasceu a esperança cívica e política. Obrigado, Manuela Ferreira Leite.

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Plenário do Geração de 60

O Geração de 60 reuniu ontem em plenário de trabalhadores, como é hábito, no pavilhão gimnodesportivo do Belcanto.

Foram aprovadas, por unanimidade, as seguintes resoluções:
1 - Saudar efusivamente o regresso do filho pródigo. Mais notícias sobre este tema num próximo post perto de si.
2 - Agradecer à Inês Dentinho a sua «firme resolução em escrever doravante o mínimo de um post por semana»
3 - Castigar, com requintes de malvadez, os ausentes do repasto de ontem. Por razões de decoro não será divulgada, para já, a lista de sanções aprovada que será comunicada individualmente. Mas o plenário quer sangue...
4 - Manter em vigor o clima de terror que, desde sempre, tem sido uma marca deste blog. A fasquia mínima é um post por semana. Não temos o cobrador do fraque mas temos a Sofia Galvão para zelar pelo cumprimento desta meta. Tenham medo, tenham muito medo.

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segunda-feira, 21 de abril de 2008

Os segredos de Polichinelo

Não conhecia tal criatura, mas uma vez ao ler um livro do Steiner vi referido um cavalheiro chamado Pierre Boutang e o seu livro “Ontologie du secret”. Quanto a Steiner e as limitações do seu discurso, imbuídas de um estetismo de que padece certa cultura europeia na matriz judaica deixarei para outras núpcias, até porque já tratei a questão alhures.

Mas Steiner, se lhe falta lucidez em alguns pontos, será tudo menos tonto e por isso suscitou-me a curiosidade para espreitar o bom do Boutang. Confesso que vi um livro com um instrumentário poderoso mas que me deixou insatisfeito, talvez por minha culpa. Se muitas vezes me sinto a passear em escombros, no caso vi-me rodeado de andaimes que não deixavam perceber o edifício. Talvez a conclusão final seja a de que a ontologia do segredo fica em segredo, salvo injustiça minha.

A verdade é que a o segredo não é questão irrelevante para o espaço público. Uma democracia supostamente resguarda certos tipos de segredos, os do célebre espaço privado, mas repele segredos que respeitem ao espaço público.

Versão simples, bem sei, mas que nos dá algumas pistas para perceber que o tema do segredo é essencial para qualquer regime político, nomeadamente o da democracia.

No caso que agora interessa, é preciso ver que lugar tem o segredo de Polichinelo no espaço público. Visto como inócuo, apenas risível, o simples facto de ser considerado inofensivo já diz algo sobre a saúde de um regime político.

A criatura que começou a carreira fazendo negócios escusos, o que vive de mera rede de relações, o que faz gestos com a mãos em fio de prumo lembrando sempre que é homem de elevados princípios e vive apenas de expedientes, a mulher de vão de escada que assume cargos de suposta importância e por falta de algo a dar apenas tem projectos de dominação pessoal sem verdadeira noção de serviço, todas estas situações podem ser e são segredos de Polichinelo. Apenas suscitam o riso, mas não expulsam os indesejados da vida pública. Mas também factos, as guerras que se fazem com motivos rotos, as esperanças de adesão europeia com motivos mal confessados, as declarações de amor a África mal esclarecidas.

O que caracteriza o segredo de Polichinelo? Três facetas. Só é segredo quando muito para as personagens no palco, é anunciado por uma personagem cómica, e dirigido a um público.

As personagens da comédia ignoram ou fazem-se ignorantes do segredo. Mesmo que o conheçam fazem como se ignorassem. O segredo não é eficaz junto dos actores. Apenas junto das personagens.

O anunciante do segredo é personagem cómica por si mesma, por não levar a sério o segredo que anuncia, mas é cómica antes do mais a situação paradoxal de oficialmente ser segredo e afinal ser pública a informação.

E é pública porque? Aqui entra o terceiro elemento desta farsa. É pública porque o segredo é anunciado ao público. Ora a plateia é exactamente quem não age, quem não pode influenciar o enredo.

Estes três elementos mostram até que ponto o segredo de Polichinelo pode ser multiplamente pernicioso.

Quem está a ser efectivamente gozada não é a personagem no palco, a que supostamente ignora o segredo. Mas a plateia. A essa Polichinelo apenas diz: não podes agir. Assiste ao absurdo, ri-te dele, mas não o podes alterar.

O segredo de Polichinelo vive da inacção e da impotência. Quem o conhece nada pode fazer contra ele. É apenas plateia ou personagem cómica. Numa democracia, a plateia é o povo, que é reunido apenas para rir do segredo, mas a quem é sempre lembrado que é apenas assistente passivo e não actor.

Finalmente o próprio facto de ser visto como inócuo, se tem um efeito pacificador na sociedade, tem-no ao preço de manter a trama incólume, por mais absurda que seja.

Um público escarnecido, impotente e ineficaz é o que se pretende com o segredo de Polichinelo. Numa democracia esse é sempre um dos primeiros passos para a destruição da sua vitalidade. Cria-se um mundo de ilusão em que se chama de participante o que mais não se admite ser que espectador. O que há de menos risível no segredo de Polichinelo é exactamente o facto de ser visto como risível. Não parecendo importante, tem aí a sua condição de sobrevivência. Incrusta-se no espaço público para de lá não sair facilmente. A sua perenidade é feita pelo riso. Corremos assim o risco de que tudo o que seja perene seja por ele infectado.






Alexandre Brandão da Veiga


http://cerclepierreboutang.wordpress.com/
http://www.abebooks.com/products/isbn/9782868395900/Assaf,+Antoine-Joseph/Hommage+a+Pierre+Boutang:+Metaphysicien+Du+Secret+Et+Poete+Du+Desir/
http://robertounicamp.blogspot.com/2008/02/visitando-um-passado-sem-retorno.html
http://books.google.pt/books?id=qstFP4ylK9kC&pg=PA59&lpg=PA59&dq=+%22pierre+boutang%22&source=web&ots=Y1orZZBbm6&sig=jDKDg-SXjnQh1Mp4UYWKT6YNrOM&hl=pt-PT


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domingo, 20 de abril de 2008

Sobre o PSD, para memória futura


Oxalá me engane, mas não tenho esperança. Nada de sério será possível. Nada de novo para além desta crise.

No início, cheguei a acreditar. A ano e meio de eleições, senti o ‘momentum’. E, ingénua, confiei na intuição desassombrada de alguém capaz de desafiar o destino. Setenta e duas horas depois, não tenho ilusões. O entusiasmo não passou de patetice minha. Candura tonta de quem se recusa a perceber o essencial.

A verdade é que os tempos não estão para grandes gestos ou para apelos de alma. Bem pelo contrário, os diversos movimentos são eminentemente lúdicos e assentam em cálculos minuciosos.

Nessa estrita lógica, tudo é politicamente vazio. Não está em causa o País ou, sequer, o partido. Nada de substantivo determina as contas feitas. Há um mero jogo de variáveis tácticas, dirigido à tomada do poder no tempo óptimo – isto é, sem custos pessoais, sem riscos, sem sobressaltos.

No fundo, a pretexto de uma pretensa racionalidade, faz-se análise em vez de política!

E, inevitavelmente, os portugueses percebem o óbvio. A ano e meio de eleições legislativas, o PSD considera a vitória impossível. Para os notáveis sociais-democratas, é absolutamente certo que o futuro líder será imolado num confronto antecipadamente perdido.

Por isso, aqueles poucos que poderiam protagonizar um projecto politicamente sério e promissor, capaz de mobilizar e de emular, preferem preservar-se para altura mais conveniente e segura. Aliás, acomodados como estão, é mesmo muito provável que só avancem quando três bruxos lhes asseverarem, a partir das estrelas, das folhas do chá e das cartas do ‘tarot’, que já não será necessário ganhar eleições por estar garantida a derrota do Partido Socialista.

Na base de tudo, estão umas continhas simples e bem feitas: em 2005, o PS teve 45,03% dos votos e conseguiu eleger 121 deputados, o PSD teve 28,77% dos votos, elegendo 75 deputados; de acordo com as mais recentes sondagens, a diferença entre os dois partidos mantém-se na ordem dos 13%. Pior, a esquerda (PCP e BE) sobe. E, por todas as razões, o CDS-PP não introduz qualquer argumento de facilidade nestas equações. A final, conclui-se friamente que, com pouca elasticidade para mais perdas à esquerda, a conquista do poder pressuporia o cenário improvável de o PS perder para o PSD ou, pelo menos, para a direita, mais de 25% do seu eleitorado de hoje... Ora, perante quadro tão negro, ninguém se atreve a enfrentar a máquina de propaganda do Governo e ninguém ousa acreditar na possibilidade da vitória.

As candidaturas de Pedro Passos Coelho, Mário Patinha Antão ou António Neto da Silva são penhor da referida abjuração. Como o seria, aliás, qualquer hipotética vaga de fundo em prol da direcção nacional demissionária. Ou mesmo a candidatura de nomes mais sonantes, mas com a mesma matricial implausibilidade eleitoral.
O pior é que tais aventuras não se esgotam na sua inconsequência prática. Pelo indigente espectáculo que prometem, poderão ser devastadoras para o futuro do PSD, da qualidade da democracia portuguesa e do nível a que se faz política em Portugal.

Mas, como dizia no início, oxalá me engane...

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CARAMEL — Nadine Labaki

Ás vezes vou cortar o cabelo e a barba, mas não tive ainda a doce experiência de o fazer no salão de beleza de Madame Layale, Madame Nisrine e Madame Rima. Ali a técnica para fazer desaparecer os afloramentos capilares é uma mistura de açúcar com água e limão em caramelo. Essa técnica é uma metáfora da vida vista sem desespero mas com intensidade, às vezes doce, ainda que com dor, e às vezes amarga ainda que sem fatalismo, tudo se dissolvendo na fluidez purificadora da água, da água que corre como um rio e é origem de novas vidas e de novos caminhos por entre estreitos e alargamentos.

Caramel é uma história de mulheres passada no Líbano onde se cruzam os dramas universais por que todos passamos frente ao destino e ao inexorável passar do tempo e das oportunidades de felicidade que agarramos ou deixamos fugir. Mas é também um encontro de tempos diferentes que persistem num mesmo espaço geográfico e em que a inteligência prática feminina sai da sua condição e limite social para uma condução da história a partir da história de cada personagem.

Relações impossíveis, e sem saída, vividas como actos sagrados nos momentos em que se conseguem subtrair à vida das normas e das responsabilidades, vidas que se realizam no enfeite de uma juventude perdida mas iludida pelo poder e convicção do disfarce, vidas em acordo com as regras mas que secretamente se violam e corrigem permanecendo publicamente virtuosas, vidas cruzadas pelo desejo e a angústia, sonhando mas desistindo por outro amor ou responsabilidade, relações surpreendentes mas latentes que se satisfazem num platonismo amoroso de reconhecimento mútuo mas contido nos limites do que é estritamente legal embora construído numa intimidade longe de outros olhares.

Tudo mulheres belas, tudo mulheres com uma autonomia que lhes permite conduzir os destinos próprios sem saírem da esfera que dominam como ninguém a da intimidade e do seu secretismo. Não há “telenovelismo” sentimentalista, nem capitais de queixa prontos para reivindicações. Há a sabedoria do feminino. A sua maior beleza, o seu maior encanto e o seu mais intrigante mistério.

Dizia-me há muitos anos um velho amigo, que se chegássemos a uma terra muito feia mas conhecêssemos uma mulher bela por quem nos apaixonássemos, essa terra passaria a ser a mais bela de todas as terras. Por isso, talvez, esmagado com a surpresa que foi este Caramel, terei ficado a pensar que aquele salão de beleza em Beirute era talvez um dos mais belos que alguma vez pude imaginar.

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sábado, 19 de abril de 2008

Pedro Bandeira Freire

Há dias, cansado de andar por cá desde 2 de Agosto de 1939, o Pedro Bandeira Freire foi-se embora. Saiu de campo como se fosse o John Wayne num filme de John Ford. Mão grande a acariciar o cotovelo, balançou um pouco o corpo robusto (“do melhor, fabricado antes da guerra”, dizia ele) e avançou pela branca e luminosa planície, deixando o palco ao segundo neto que terá nascido nos dias seguintes. Como num filme do Ford, no último segundo, na 25ª hora, o Pedro tinha que rimar com todas as partidas e chegadas das suas paixões, com a Vida e Morte que ele, dramaturgo de 12 peças e ½ (“mais 4 do que os filmes do Fellini”, não é, Pedro?), sabia serem o “stuff” de que são feitos os sonhos.
Amigos há 30 anos (“amizade à primeira vista”, disseste), fomos muito mais amigos nestes últimos anos, e nem sequer estou a falar do “Entrefitas e Entretelas” de que ele me deixou ser o editor, mas sim da confiança com que uniu, como se fossem dedos da mesma mão, pessoas como o Gutierres, o Escudeiro, o Dinis Machado, o Alface, o Navarro, o Mendes Lopes. Juntou-me também a mim, a título de dedo mindinho. Éramos, com a Antónia, a Manecas, a Dulce, o grupo de Tróia.
Se disserem que o Pedro atravessou a vida como um cavalo alazão, nervoso e sempre a galope, não direi que é mentira. O Pedro escreveu poesia, amou centenas de mulheres, escreveu teatro (com prémio em Chicago) e revista, bebeu milhares de garrafas, fez versos para canções, amou outra vez as mesmas e outras mulheres, fez rádio e televisão o que celebrou com mais garrafas, fossem de absinto, do seu whisky ou de nobre tinto, foi actor ou realizador e foi delicada e apaixonadamente amado pelas mulheres que amou e até pelas que não terá tido tempo para amar (saibam que ele era belo, sedutor e lírico, terrível injustiça para os amigos desengonçados que nós somos).
Mesmo os que não sabem nada disto, sabem de certeza que ele (iniciado nos mistérios do cinema no Colégio Militar) fundou as quatro salas do Quarteto. Pagava-se bilhete para entrar, mas era prazer garantido.
Ao que se sabe, acrescento apenas um ponto. Todos os excessos do Pedro – as festas, afogar-se em copos, a desordenada variedade das mulheres amadas – têm a mesma cor de fundo. O Pedro, e percebi-o cada vez mais neste últimos anos, tinha sede: uma sede de absoluto, sede de verdade, de certezas. E tinha fome: fome de beleza e fome de infinito. Sede e fome que lhe provocavam uma turbação igual ao rufar de mil tambores.
Devíamos ter jantado no sábado, tu, o Gutierres e eu. No Mandarim, o melhor chinês da Europa. E era a tua vez de pagar. Ficaste a dever-me, nas não te safas com essa facilidade
... da-se! E não penses que me pões a chorar, ou merdas dessas. Tens-me à perna. Vou à tua procura nem que seja à mais demente das noites. E apanho-te: talvez em hossanas a um dry martini, em Nova Iorque, no Sardi’s (donde te telefonei como pediste, da última vez que lá estive). Apanho-te, se for preciso, de smoking em Cannes, com neve até aos joelhos em Berlim, no escuso casino de San Sebastian, ou nessa Lisboa fellinina que só existe nos teus sonhos. Mas apanho-te. Agarro-te pelos colarinhos apesar de teres o dobro do meu tamanho, e hás-de pagar-me com juros até tropeçarmos nas curvas de Deus, nos repentinos ângulos da Felicidade que, nu ou vestido, sóbrio ou alucinado, tanto procuraste – e tantas vezes te fugiu – neste vale de risos e lágrimas.

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CŒURS — Alain Resnais

“O inferno somos nós”, diz Charlotte (Sabine Azémas) a Lionel (Pierre Arditi). Corações que ardem por entre a neve e o frio da cidade mas que se contêm no limite do pudor. Vacilam, vão arriscando sem passar a linha da sua própria vergonha. Da vergonha da solidão. Que nos quer dizer Alain Resnais em Cœurs?

Que as mulheres actuam premeditadamente? Que os homens estão sempre à espera do que o destino lhes trouxer? Que as expectativas que temos nos outros são criações nossas, tão frágeis que um acaso as pode fazer desmoronar-se? E o regresso à solidão faz da vida uma dolorosa e desencantada espera pela morte dissolvente? Que não podemos verdadeiramente conhecer os outros? Que os corações ardem, mas a vida está sempre a apagá-los? Que nos alimentamos do desespero? Que temos de aprender a amar a beleza da tragédia que é o abandono a que estamos destinados?

Retrato da modernidade? Da vida na cidade? Na cidade não há lugar para o amor? É essa a doença da cidade? É tudo isso, e podia não ser tudo isso. De Alain Resnais podemos sempre esperar um “Smoking” e um “No Smoking”.

Entretanto, deixa-nos suspenso de uma mestria em que restam já poucos autores. Cada personagem entra em cena com os ombros carregados de neve, da neve de um inverno cuja frieza contrasta com o inferno dos seus corações, das suas vidas condenadas ao pudor de uma solidão escondida. Um pudor que nasce de um mundo em que o amor já só pode ser secreto e muitas vezes solitário. Sem par. Um Resnais desencantado. Um maravilhoso desencanto, se visto na tela, como todas as tragédias.

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sexta-feira, 18 de abril de 2008

Ex pluribus quartum

Em resposta autónoma (que o Sporting também merece) ao excepcional post do Pedro Norton (o melão voador) e ao comentário aí deixado pelo Manel S. Fonseca, permito-me, também eu, este pequenino abuso.

É bem verdade, Ó Manel,
Que com taças a granel
O orçamento não estica.
No entanto, assumei de vez,
Depois deste cinco a três,
A desgraça do Benfica.

Pois se o Vale e Azevedo
Vos depauperou sem medo
Dos homens maus que há no Norte...
É o Filipe Vieira
Que a vós, sem eira nem beira,
Mantém em tão triste sorte.

Compra e vende jogadores,
De certo não os melhores,
Mas a vossa gente gosta!
E quando perde, lá vem,
Chamar de "filho da mãe"
O árbitro e o Pinto da Costa.

Ora, com tal presidente,
Espantada está toda a gente
Do futebol deste mundo,
Que tenhais ainda a lata
De querer lutar pela prata
Que corresponde ao segundo.

Ah! mas essa luz sem chama
Comandada p´lo Chalana
Não vai a lado nenhum...
Calai-vos, pois, que afinal
O cinco a três nem está mal:
Podia ser sete a um.

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quinta-feira, 17 de abril de 2008

Da Visão: Uma nomeação natural

Coelho na Mota Engil, Vara no BCP, Pina Moura na Media Capital, Ferreira do Amaral na Lusoponte, Dias Loureiro na Sociedade Lusa de Negócios, são apenas a ponta de um icebergue que, volta e meia, agita as águas insalubres da política portuguesa. Antes que a inevitável paz podre regresse, vale a pena dedicar ainda duas linhas ao tema. Até porque o verdadeiro problema é mais vasto, mais profundo e infinitamente mais perigoso. O icebergue tem nome. E o nome é o insuportável peso do Estado na economia.
Desenganem-se os mais ingénuos e poupem-se os frenéticos legisladores do costume. A coisa não vai lá com leis hipócritas sobre incompatibilidades. Nem sequer com a institucionalização dos lóbis. A menos que a ideia seja simplesmente a de acalmar a nossa consciência colectiva deixando o essencial do problema rigorosamente intocado, o remédio tem de ser outro. É que esta (só aparentemente) estranha atracção que muitas das nossas grandes empresas privadas cada vez mais revelam sentir por políticos sem experiência de gestão é o corolário lógico de um fenómeno que há muitos anos vem minando a nossa economia e, mais grave, desacreditando a nossa democracia. A perniciosa influência e a importância destes «novos gestores» são proporcionais ao peso que o Estado ocupa na economia. É porque o Estado chega, directa ou indirectamente, a todo o lado, da televisão às auto-estradas, da banca aos transportes, das comunicações ao jogo, que a posição destes senhores conta. É porque o Estado, ou melhor dizendo, é porque este bloco central de interesses nomeia gestores públicos e privados (vide o caso do BCP), porque legisla sobre tudo e mais alguma coisa, porque interfere em todas as grandes decisões económicas, porque tudo taxa, porque tudo e todos controla (por vezes com pidesco afinco como no caso das muitas ASAEs e ERCs que por aí pululam), que estes senhores ocupam os lugares que ocupam. É de resto este o mesmíssimo fenómeno que explica o cancro do financiamento partidário e, por via deste, boa parte da corrupção instalada.
Chamemos os bois pelos nomes. Os accionistas da Mota Engil, do BCP, da Media Capital ou da Lusoponte não decidiram juntar-se para filantropicamente montar uma espécie de «Casa do Artista» para políticos na reforma. Muito pelo contrário, continuam a tomar decisões com base em critérios de pura racionalidade económica. E se escolhem os gestores que escolhem é porque conhecem muito bem o poder que estes têm na economia e na sociedade portuguesas. Para mal dos nossos pecados, não é o poder dos mais competentes, dos mais visionários ou dos mais trabalhadores. É o poder das decisões de corredor, dos telemóveis dos governantes, dos favores prestados e por retribuir. Que é o poder que verdadeiramente interessa num país em que todos os caminhos vão dar ao Estado.
Bem vistas as coisas, a nomeação de Jorge Coelho é assombrosamente natural. Os accionistas da Mota Engil são competentes, racionais e inteligentes. E sabem ler muito bem os sinais do mercado. E o que o «mercado» paradoxalmente lhes diz é que precisam de um «especialista em Estado». Pois que não restem dúvidas: contrataram o melhor profissional que o «mercado» tem para lhes oferecer.

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Do socialismo de Sócrates

Em diálogo com os últimos “posts” do Pedro Lains e do Martim Avillez Figueiredo e a propósito das medidas legislativas do Partido Socialista português relativas à família, pretendo aqui dizer duas ou três coisas sobre o socialismo de José Sócrates.
Ora, como dizia o Pedro Lains há uns quantos posts atrás: “o marxismo ainda não morreu”. É bem verdade. Julgo, aliás, que se há coisa que faz falta ao nosso velho e cansado Ocidente é tomar consciência da óbvia e muito marcada presença do marxismo no seu seio, tanto naquilo que tem de bom quanto naquilo que tem de mau – sendo que tem muito de ambos.
Do meu ponto de vista, porém, o principal é isto: a “descoberta”, feita pelo materialismo dialéctico, de que os modos de produção são o motor da história, e a consequente afirmação marxista do primado do facto económico sobre o social, aliadas aos movimentos socialistas de transformação política global iniciados na segunda metade do séc. XIX, geraram uma indiferenciação prática entre a economia e a política que, permanecendo confusamente nos nossos dias, escapa (ainda que diferentemente nos regimes socialistas e nos liberais) ao controlo democrático (porquanto anterior à própria sociedade) e condiciona tendencialmente a totalidade das nossas vidas.
Para o que aqui me interessa, duas coisas devem notar-se: a primeira é que os “socialistas”, a partir das ideias de Marx, queriam verdadeiramente transformar o mundo (dividiram-se e subdividiram-se quanto ao modo e ao alcance dessa mudança, mas todos queriam mudar a realidade e mudá-la num mesmo sentido); a segunda é que o ataque que desferiram contra a “família burguesa” se compreende dentro dessas suas propostas de transformação económica e política do mundo.
Para os marxistas, de facto, é a partir da “produção da vida imediata” que ulteriormente se estabelecem as diversas “formas sociais”, processo cujo desenvolvimento histórico levou até à sociedade burguesa, com as suas noções próprias de “família”, de “propriedade privada” e de “Estado”. É no sentido da ultrapassagem do capitalismo, portanto, que se dá o seu violento ataque à família burguesa, nomeadamente aos seus pressupostos religiosos e à sua lógica do interesse capitalista.
Para os “marxistas”, portanto, a união burguesa entre marido e mulher, falsamente sancionada pela religião de Moisés e pelo direito burguês, foi progressivamente comprendida à maneira de uma luta de classes, na qual a mulher, reduzida ao papel de escrava e de prostituta, era agora chamada a colaborar com a revolução em curso, por meio da sua “incorporação no trabalho social produtivo”, pela qual se emancipava do trabalho doméstico que a tinha confinado a uma “existência meramente privada”. Afrontar a família burguesa, assim, era afrontar o próprio mundo capitalista burguês e, neste sentido, promover a sua transformação.
Vamos agora ao socialismo de Sócrates. Ora, a primeira coisa que temos que dizer é que Sócrates não quer transformar o mundo. Resignado ao “facto” de que, no essencial, tudo está previamente decidido pelo aperto de “mão invisível” entre os agentes da economia global e os da política mundial, Sócrates luta apenas para manter o poder. Nisto, aliás, como bem notou o Martim Avillez Figueiredo, esquerda e direita são hoje em dia muito iguais.
Não concordo, porém, como pretende nesse seu “post” – “Que bom ter esquerda e direita semelhantes” –, que isso seja bom. Porque se elas são iguais – ou melhor, indiferentes – é porque a crença em que tudo está previamente decidido prevalece sobre a crença no próprio homem e na sua capacidade para transformar o mundo.
Na verdade, a associação historicamente construída entre a economia de tipo liberal e a política de tipo marxista, reduzindo a democracia ao sancionamento das decisões económico-políticas posteriormente feito por um conjunto maioritário de consumidores e de espectadores, sendo ideologicamente inconfessável, obriga à difusão da tão apregoada tese do fim da história. A pretensa inexistência das ideologias, porém, com o seu contraponto da “crença” nas absolutas possibilidades da ciência e da técnica, implica a convicção de que nos é impossível transformar o nosso próprio mundo. É isso que significa esquerda e direita serem iguais – e isso não é bom.
Ora, Sócrates, portanto, não quer mudar. Luta apenas para, perante a inevitabilidade económica e política global, manter o poder. E é nesse sentido que se devem compreender as medidas legislativas do actual Partido Socialista, ainda quando se inscrevam num quadro propriamente marxista de ataque à “família burguesa”. Porque quando Sócrates permite que o PS legisle sobre a família não o faz por razões ideológicas, a não ser remotamente, como diziam os escolásticos: a causa próxima dessas acções legislativas, na verdade, é a manutenção do poder, nas próximas eleições ameaçada pelos partidos à esquerda do PS.
É esta cedência às questões ideológicas, porém, que caracteriza o socialismo de Sócrates. Mas entendamo-nos. O perigo das ideologias está no seu modo de relação com o poder, com o qual devem estar independentemente comprometidas, isto é, suficientemente afastadas para propor o que se deve fazer e suficientemente próximas para que isso seja realizável. Numa palavra, as ideologias têm de estar em relação com o poder. Ora, no caso do socialismo de Sócrates não estão, porquanto o governo legisla independentemente das ideologias e o PS legisla independentemente da realidade. Em ambos os casos, porém, temos a inexistência de uma relação entre o poder e a ideologia, cuja presença no PS, permitida e incentivada por José Sócrates, não tem pontos de contacto com a realidade ou com a acção governativa. Por outras palavras: a ideologia torna-se absoluta!
É isso que explica, aliás, como bem lembrou José Manuel Fernandes, no Público – “Divórcio: a lei deve sempre proteger os mais fracos” –, que a nossa lei obrigue agora uma rapariga com menos de 18 anos a pedir autorização aos pais para pôr um piercing em qualquer zona do corpo legalmente admitida para esse efeito, ao mesmo tempo que lhe permite abortar, se assim o quiser, por sua decisão exclusiva, a partir dos seus 16 anos. Na verdade, não choca à ideologia socialista que o Estado restrinja fortemente as liberdades dos indivíduos, tal como não lhe choca afrontar a “família burguesa”. Ninguém considerou, entretanto, a própria realidade, na qual as duas medidas obviamente se mostram conjuntamente desajustadas.
Concluindo, o socialismo de Sócrates anuncia um regresso ao absolutismo na política, o que, juntamente com as crises económicas que se avizinham, faz dele um homem perigoso. A história já o mostrou. É claro que este perigo nem é exclusivo do socialismo, nem, tampouco, de José Sócrates. Ao contrário, está em curso no nosso mundo e é urgente enfrentá-lo. Contrariamente ao que nos “dizem”, porém, não está tudo decidido e nós podemos transformar o mundo, intervindo moralmente na realidade – só estará tudo decidido, de facto, se nós decidirmos não transformar o mundo. Ora, para nós, a transformação do mundo começa aqui, com – e não necessariamente contra – José Sócrates.

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Melão voador

Escrevo do aeroporto em Bruxelas. E escrevo para quebrar uma regra. Mas o estoicismo tem limites. Ontem, a meio da viagem entre Lisboa e Bruxelas, um solícito comandante da TAP partilhou com os passageiros a felicidade imensa que lhe ia na alma: "O Sporting-Benfica está no intervalo e o Benfica ganha por 2-0". Palmas, suspiros de alívio, um "frémito divino" (para citar "le Fonseca").
Passei o resto da viagem a preparar a dúzia de sms que dispararia logo ä chegada. Benfiquismo primário "oblige". "Fica para a próxima"; "para o ano há mais" e outros mimos que nao ouso reproduzir.
O resto da história é facil de adivinhar. Vou processar a TAP.

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terça-feira, 15 de abril de 2008

A Fome, O Amor

O Pedro Lains escreveu este post louvável. A boa intenção é evidente e o que ele diz é de uma urgência indiscutível. Urgência que, chamo a atenção, existia já “quando eu era pequenino, acabado de nascer”. Gostaria de acreditar – e está na minha natureza optimista fazê-lo – na perspectiva progressiva que o Pedro nos anuncia: o mundo talvez esteja melhor (mais democracia, menos conflitos), pese embora o facto das bolsas de pobreza (vastíssimas bolsas) persistirem, tendendo a agravar-se.
Pensando bem (e se a ominosa desgraça dos famélicos da terra conta), talvez o mundo não esteja melhor, mesmo que a minha veia optimista insista em que não estará pior. É até provável que, por falta de bases para um sólido crescimento, nem sequer seja sustentável a prossecução do desenvolvimento económico que os índices agora nos anunciam.
Em última análise – era assim que se dizia nos comités m-l, mesmo na doce África da minha juventude – a única certeza que colhemos desta pescadinha de rabo na boca é que a pobreza se espalha, incontrolável, como tinta em folha de papel almaço – sejam o que forem os indicadores para determinar essa pobreza, questão que não é, parece-me, dispicienda.
“O que fazer?” como em tempos disse o notório russo. Sobretudo, o que se pode fazer num blogue para atacar essa pobreza que, obstinada, alastra?
Ora, se reconheço que, por diletantes que sejam, uma alinhavada prosa sobre um filme, uma nota mais confessional sobre um incidente pessoal, a sumptuária lista dos nossos gostos, são gestos conviviais que reforçam cumplicidades e nos ajudam a constituir uma comunidade (De gosto? De coração?), já me parece insuficiente a intervenção numa matéria em que está em causa o bem-estar de terceiros. Bem-estar é, aqui, um torpe eufemismo, por ser de dramática sobrevivência que estamos a falar. A gravidade do problema exige outro tipo de gesto.
Sou franco: não creio que, contra a pobreza, as boas intenções sirvam e que a chamada de atenção baste. E temo até que, em alguns casos, a gritaria vise menos a solução do drama do que o ajuste de contas com ideológicos moinhos de vento, venialidade de que o post do Pedro Lains está limpidamente isento, tão relevante é a informação que fornece.
Sobra, uma vez e sempre, a falta de soluções. Há os missionários, os médicos sem fronteiras, algumas ONGs. Podem ser paliativos, mas o seu voluntariado resolve (ou minora) problemas concretos de pessoas concretas. A grandeza apaixonada do gesto, a entrega dorida ao outro, são exemplares e são, o que conta muito, quantitativos.
E o resto que é quase tudo? A contradição entre os benefícios da globalização e a expansão da pobreza? Como e quem resolve este problema geo-estratégico?
A minha conclusão catastrófica é que a natureza política do problema torna risíveis, ilusórios ou quixotescos os discursos individuais, por magníficos que sejam. Ao contrário do amor, a fome não pode sublimar-se em criação estética.

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A Origem do Mundo

Publicado ontem aqui.

Pode haver uma, mesmo dez imagens em cada rua. Não importa! A nudez feminina sempre nos provocará o mesmo soluço comovido e encantado. Digo isto num dia em que os jornais de todo o mundo esconderam a sua óbvia solidão noticiando mulheres nuas, a começar na foto benigna de Carla Bruni vendida por 58 mil euros.

a benigna Carla Bruni

Em Serradilla del Arroyo, mais perto da fronteira portuguesa do que da cidade de Salamanca, os jornais espanhóis descobriram, nuas e arruinadas, as mães desse pueblo que decidiram fazer-se fotografar para um calendário em poses de ininterrupta carnalidade. Queriam, com as vendas, pagar um centro de lazer para os seus filhos. A infrene e filantrópica exposição do ventre materno teve um fim cruel. Devem agora 9 mil euros às tipografias. Acabaram mais despidas e mais pobres.

Em Nova Iorque, os jornais proclamam a venda de um secretíssimo filme de 15 minutos em que Marylin, vestida, brinda um parceiro cuja cara nunca se vê com o que era suposto ser um humilde fellatio e a que película confere cruel perenidade. O filme sofreu anos de conspícua análise do FBI, quando J. Edgar Hoover pretendia provar que o homem sem rosto era John F. Kennedy. Lembro-me, sempre me lembrarei, da fotografia de Marylin nua, a pele escandalosamente branca, contra um aveludado fundo vermelho.

tão nua como o mais terno amor
Era, nessa célebre imagem, “a” mulher nua, tão nua como o mais terno amor. Juro que não é por falso pudor, mas não quero ver o filme de sexo caseiro (o súbito e descalço sexo caseiro) que agora lhe atribuem. O comprador é dos meus e promete que o filme permanecerá privado, demonstrando que o quase milhão de euros que pagou por ele é o correlato objectivo do sua paixão pela beleza convulsiva da mulher frágil cuja campa, no cemitério de Westwood, nunca visitei.
Passo à primeira página do Financial Times. Em New York, New York, a nudez e o dinheiro voltam a entregar-se a lânguida confraternização. Refiro-me ao quadro de Lucien Freud, retratando a nudez primitiva e farta de Sue Tilley. "Big Sue" vai ser leiloado, prevendo-se que atinja o valor de 33 milhões de dólares, o que o converteria no quadro mais caro de um artista vivo. “Big Sue”, como os íntimos chamam a este quadro a que Lucien Freud, neto indesmentível do seu avô psicanalítico, deu o título de “Benefits Supervisor Sleeping”, parece-me uma versão carnavalesca da tremenda “Origem do Mundo” de Courbet.







Big Sue, Lucien Freud

A origem do mundo, Courbet

Mas nem a exuberância tumultuosa do corpo que repousa sobre o sofá, ameaçando-lhe o equilíbrio e a integridade, impede o estremecimento face a esta carne que, das camponesas de Serradilla del Arroyo à intimidade da primeira dama parisiense, da parodiável pin-up Big Sue à candura de Marylin, prepara o apetite de todas as coisas.

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