sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Vitorino Magalhães Godinho e a Europa

Acabei de ler a entrevista do professor Vitorino Magalhães Godinho no Jornal de Negócios Caderno Week End desta sexta feira. Realmente uma coisa é ser historiador, ter conhecimento, outra é ser comentador político de faits divers.

Posso não concordar com tudo o que ele diz (embora concorde com a substância). Mas é ao menos consolador ver alguém que sabe lidar com a massa histórica falar do que sabe e não do que ouviu dizer. E que fala de acordo com fundamentos e não de acordo com interesses.

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quinta-feira, 29 de novembro de 2007

II. Nostalgia. Tarkovski

O louco da aldeia. Obcecado por uma ideia. Atravessar uma piscina de água sulfurada com uma vela acesa. A forma de salvar o mundo. É francamente a personagem mais antipática. Tende a ser demasiado enfática para o meu gosto, tem demasiado a marca de Tonino Guerra. Nada tenho com a artificialidade da arte, mas uma arte que se apresenta como uma dialéctica em que a artificialidade se pretende natural a cada momento, telúrica, simplista, não me convence. Se serve para alguma coisa é apenas como anunciador. Já não é pouco. Com ele começa-se a perceber que o filme não passa por contar uma história, mas é a antes o retrato de um sentimento. A dor pela morte da Mãe. Perder a Mãe não é uma tragédia, é mais que isso. É uma dissolução. Se o poeta russo é essa dor, o louco da aldeia fala dessa dor.

Falando torna-se inútil. Ou pelo menos impertinente. O que fez não tem saída, e acaba morrendo num sacrifício inútil, pomposo, desproporcionado, mal gerido, assíncrono. Imolado pelo fogo em espectáculo quase cómico, sem solenidade, desafinado. Uma caricatura da imolação do Cordeiro. O louco da aldeia anuncia soluções, mas afinal é parte do problema, da imensa fragmentação em que cai uma certa cultura sempre que quer ser sincera.

O poeta russo é a mais verdadeira das personagens. Embora caia por vezes na presunção da ignorância afirmando desconhecer respostas, o que é sempre pretensioso quando se toma a iniciativa de começar o diálogo, não vale pelo que diz, mas pelo que faz.

Teoricamente estaria a fazer a biografia de um compositor russo do século XVIII, servo de um senhor italiano, que ama uma serva russa que deixou no seu país. Mais uma história de fidelidade, é certo. Mas também de fragmentação. Tudo o que é sério, em suma religioso, está condenado à fragmentação neste filme.

O poeta russo tem uma tarefa. Fazer o que o louco não conseguiu. Atravessar a piscina. Vai fazê-lo. Com a água já em baixo; no entanto, com grande dificuldade. A vela acesa não está garantida. Hesita e volta para trás. E quando consegue fazê-lo ganha a sua redenção. Onde? Numa igreja de que sobra apenas o esqueleto, sem tecto, sem vidros. Tem o mérito de ter feito ao menos alguma coisa, e de ter ido ao essencial, mesmo se o vê descarnado.

Nostalgia não é apenas de um ente querido, é de um centro de sentido numa Rússia que é oficialmente ainda ateia. É já bem sabido que Tarkovski é um realizador religioso. Como se pode ser de forma tão intensa num país em que a religião foi tão reprimida. De certa maneira menos que na Europa ocidental, porque a violência é menos eficaz que o riso e a menorização.

Filme religioso, retrato de um sentimento, enunciado de fragmentações. O que Tarkovski não percebeu na íntegra, é que a criação pessoal de rituais deixa de lado a experiência secular da humanidade. É dar a cada um o papel de criador do início da humanidade. Nulla salus sine ecclesia. É pois exigir que cada um reconstrua o templo em três dias, o que só em engenharia seria obra fácil. Nostalgia é antes do mais por isso o filme que mostra a necessidade do ritual instituído. Apenas as mulheres que veneram a Virgem no início estão presente plenamente em espaço cheio, por mais que isso choque a nossa sensibilidade dita moderna. Mas se choca isso apenas quer dizer que somos puritanos. Que a carnalidade nos assusta, salvo se empacotada em formato industrial. E que é esse puritanismo que nos fragmenta. Tolda-nos a vista, rebaixa-nos o espírito e por isso não nos faz carne.






http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/

http://www.acs.ucalgary.ca/~tstronds/nostalghia.com/
http://www.domizianagiordano.com/credits/bio.html

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A diabolização do outro

No artigo de ontem no Público, Rui Ramos explicava a diferença de protagonismo entre Chávez e Mugabe pela escolha dos alvos dos seus exorcismos. Chávez elegeu os Estados Unidos da América. Mugabe elegeu a Inglaterra.

Mugabe elegeu um inimigo directo que está consigo no mesmo terreno e que, não justificando nada, tem por base um conflito real e enraizado. Ou seja, se tem protagonismo, Mugabe tem-no porque atacou cidadãos ingleses. No caso de Chávez os Estados Unidos são um alvo distante, útil e com mais eco para se fazer a si mesmo ouvir e divulgar. Ou seja, engendrou um inimigo para propagandear o socialismo do século XXI e, em torno de si, com a bênção de Fidel Castro, assumir o protagonismo e empunhar a bandeira de uma luta internacional. Poderíamos dizer que há uma certa razão ou justificação interna de assim ser, para Mugabe, e que há uma ficção política construída com outros fins que não uma efectiva confrontação entre a Venezuela e os Estados Unidos para Chávez.
Este método de criar um adversário, compor-lhe a figura e retocá-lo, e depois apontar-lhe o dedo como sendo a origem exclusiva de todos os males que nos afectam e de todos os que não nos afectando podemos imaginar que nos afectem ou que virão a afectar, é um dos métodos há muito utilizados na política/propaganda, na política/televisão, na política/espectáculo: a diabolização do outro. Não que os monstros, muitas vezes, não sejam monstros. O que se procura nessa encenação, em rigor, não é denunciar o monstro, o que se pretende é esconder, disfarçar ou relativizar o monstro que se é ou que se defende. E, para criar um monstro onde ele exista ou onde ele não exista, nada melhor que ter um espelho que vá até ao fundo da própria alma.

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Cândida Vaginal

Ainda não tinha saído do duche há vinte minutos. Estava impecavelmente aperaltado, penteadinho e perfumado, pronto para enfrentar mais um dia de trabalho. Não deviam ser ainda oito da manhã e eu guardava ainda a memória do sabor de um croissant e de um saudável sumo de laranja que bebera antes de me lançar à estrada. Como todas as manhãs, liguei a TSF mal cheguei ao carro. Talvez porque fosse mais cedo do que o habitual, fui dispensado de «gramar» os insuportáveis «Sinais» do Fernando Alves. E foi portanto até com alguma curiosidade que recebi a notícia de que, naquela luminosa manhã de Novembro ,seria brindado com uma sugestiva rubrica com o título «Clínica Geral».
O tema do dia era a Candidíase. Cândida Vaginal para os mais intímos. Tinham passado, repito, escassos 20 minutos desde o «croissant» e o sumo de laranja. Tudo o que se possa dizer é pouco. Descrições gráficas sobre fluxos e refluxos, mucos e mucosas, babas, escorrimentos e outros temas tão fascinantes quanto apetitosos àquela hora da manhã. Profilaxias, conselhos muito práticos sobre toalhetes, higiene feminina e limpezas do ânus. Tudo comprimido entre o Jornal de Desporto e a cimeira de Annapolis (mais coisa menos coisa). Nos dias seguintes houve direito a frieiras, rosáceas, sangue nas fezes, incontinência urinária, comichão e mau hálito.
Percebem agora porque é que deixei de tomar o pequeno almoço?

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quarta-feira, 28 de novembro de 2007

I. Nostalgia. Tarkovski


Desde há muitos anos que me falavam de Tarkovski. Em modo laudatório. Mas o que os outros incensam sempre me pareceu um problema deles. Vi há muitos anos “A infância de Ivan”, achei-o uma obra-prima, mas ignorava que fosse de Tarkovski. Por isso o primeiro filme dele que vi, com pleno conhecimento de causa em relação a quem fosse o autor, foi “Andrei Rubliev”, não há tantos anos atrás quanto isso.

Não é grave. Tenho vindo a ver vários filmes dele e até agora nenhum deles me arrebatou tanta como “Rubliev”. O seu ambiente de Rússia eterna, muito ao jeito de Eisenstein, que Tarkovski parece não gostar de citar, no entanto, é o que mais me diz. Porque razão profunda, deixo para outras núpcias.

Confesso que duas leituras de Nostalgia me desagradam. Uma primeira e uma terceira. A primeira, por recusar espaço à narrativa. Espaço que em si não é essencial numa obra de arte, mas começa a enfadar quando se trata de ideologia. Na mesma esteira me agastam um pouco os diálogos de Tonino Guerra, em que problemas fundamentais são colocados, para ficarem sem resposta, em diálogos com linhas quebradas que por vezes pecam por uma ênfase desproporcionada e por isso algo pretensiosa. Numa terceira leitura, pela imensa tristeza de um mundo que se mostra incapaz de enunciar um discurso coerente sobre a grandeza, e em que a enunciação honesta se quer sempre fragmentada.

Tarkovski é russo. Gostava de o lembrar. Logo, europeu. Mas ainda tem de ser lembrado este facto. Hoje em dia em que o analfabeto afirma ser europeu o altaico é bom que nos lembremos de que a Rússia é um país europeu e não qualquer um. O maior de todos em extensão, população e uma das maiores culturas europeias.

É nessa segunda leitura que me fico. A da grandeza da Rússia enquanto imensa cultura europeia. Vejamos em quê.

Três personagens principais. Um poeta russo, uma guia italiana, um louco da aldeia.

A guia italiana para começar. Descrente, assistindo ao culto da Madonna com ar de aparente interesse turístico, mas colocando questões com ansiedade mal disfarçada pelo formulário modernista. Um culto de Nossa Senhora que parece quase pagão, de Ísis, em que o espaço para o carnal, o culto da Mãe quase nos repugnam de tão sensual que é. Ironia, paródia? De todo. O filme é dedicado à memória da mãe do realizador. É sério o que se diz. O que se mostra. Uma pintura da Madonna do Quatrocento é central do filme.

A guia italiana é tudo o contrário disto. Céptica, desesperada pela fidelidade do poeta russo em relação à mulher. Fidelidade. A mesma raiz de fé. Desespera-a que ele seja guiado por valores de absoluto, em suma que procure a lucidez.

Onde se refugia ela? Pretende acabar vivendo com um outro homem, que preenche os seus requisitos oficiais do que deve ser um homem adequado. Afinal o poeta russo é mal vestido, nada faz para ser sensual, para ser tentador. E ela sente-se profundamente tentada por ele. Paradoxo banal como mais não pode haver. Mais uma Salomé atrás de um João Baptista. Onde pretende ela acabar a sua história? Indo para a Índia com o seu novo homem, à procura de espiritualidades novas. Pretensão séria? Nem pensar. Porque ela acaba pronunciando a mais trivial das frases ao seu novo homem: diz que vai comprar tabaco. E este novo homem sabe que ela não volta. É o que valem as procuras de espiritualidades frescas, de uso fácil. Acaba-se saindo de cena sem nada produzir.

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terça-feira, 27 de novembro de 2007

O historiador e o jornalista

1. O recente arrufo entre Vasco Pulido Valente e Miguel Sousa Tavares é menos fútil do que parece à primeira vista – ou melhor, é menos fútil do que me pareceu à primeira vista. Isso porque, bem vistas as coisas, é uma discussão sobre qualidade. Quanto maior o poder, mediático, político ou económico, dos emissores de opiniões ou dos decisores, maiores devem ser as nossas exigências em matéria de qualidade. Para além disso, há neste duelo alguns aspectos de manifesto anti-Dantas ao contrário, o que quer que isso signifique, embora entre protagonistas da mesma geração, o que lhe dá outro interesse. Devo dizer que não li o livro do Miguel Sousa Tavares, aliás um dos meus colunistas preferidos, e que também o não vou ler, por não ser o meu género.

2. Não se pode zurzir, a torto e a direito, o ensino em Portugal, as escolas e os professores, sem retirar as devidas consequências. É que o mau ensino produz conhecimentos deficientes. Isso é menos importante para disciplinas como a Matemática onde quem sabe, sabe, quem não sabe, não sabe, ou as Ciências e mesmo o Português, mas é de uma importância extrema para a História. Por outras palavras, o mau sistema de ensino tem consequências directas naquilo que os “miúdos” aprendem sobre a História de Portugal (e da História da Europa, aprendem quase nada). Essas deficiências estendem-se à Universidade onde se contam pelos dedos os professores de História com ideias e interpretações sólidas.

3. Com tanta deficiência, é frequente encontrarem-se frases feitas em tudo o que é trabalho de alunos, manuais escolares, artigos de revistas especializadas. Do género: “Salazar vai construir [a preferência por este tempo de verbo é um fenómeno] a extensão do Museu Nacional de Arte Antiga num estilo arquitectónico tradicional e a pintura clássica vai passar a fazer parte da propaganda do regime”. Ou frases que nos dizem que "a República vai criar um sistema de protecção social que Salazar vai cortar para afirmar a mudança do regime na problemática das finanças públicas.” Estas frases são inventadas mas garanto-vos que podia trazer para aqui exemplos reais.

4. A História tem de deixar de ser tratada de forma amadora. E isso também num romance de grande divulgação (será novela? – nada sei de literatura). Ao ser muito lido, porventura graças a alguma qualidade que tenha em outros aspectos, o livro em causa alarga as audiências das frases feitas, o que traz dificuldades acrescidas ao esforço de alguns para dar um sentido mais interessante à História.

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Os números falam por si

«A Federação Portuguesa da Indústria da Construção e Obras Públicas (FEPICOP) anunciou (...) ter decidido abandonar a CIP depois de Francisco Van Zeller, ao comentar declarações do secretário de Estado das Finanças, Amaral Tomás, ter referido a construção civil como um dos sectores onde a fraude fiscal é praticada.» Poucos dias bastaram para que «Van Zeller (admitisse) que terá ido longe demais nas palavras que pronunciou e que determinaram a ruptura

Não sei se o Presidente da CIP se excedeu ou não nas afirmações que fez. Não sei avaliar a situação fiscal das empresas de construção civil. Mas suspeito que o sector dificilmente se pode queixar de não ter sido largamente beneficiado por políticas (ou ausência de políticas) fiscais, de ordenamento do território e de desenvolvimento económico absolutamente desastradas que transformaram Portugal numa selva de betão sem nexo aparente. Eis alguns dados (abusivamente recolhidos de um notável trabalho da investigadora Luísa Schmidt):

1 - A população pouco aumentou desde os anos 80; o nº de casas quase duplicou
2 - Existe em Portugal uma muito fraca aposta nas políticas de reabilitação urbana (40% dos edifícios habitacionais estão em mau estado (Lisboa e Porto – 65%)
3 - Temos o consumo de cimento per capita mais elevado da EU
4 - Existe, em Portugal, uma enorme dependência económica do sector da construção civil (25% do PIB e 12% de emprego)
5 - Existe, igualmente uma dependência das finanças locais face aos impostos do “betão” (desde a Lei das Finanças Locais de 1987) (ex: Loulé depende em 60%)
6 - Nos anos 90 disparam os novos alojamentos – mais de 900 mil fogos
7 - O consumo de cimento: cresceu mais de 80% desde 1986 (40% de obras públicas; 30% de habitação nova; 3% de reabilitação – 10 vezes menos que a EU).
8 - A média de ocupação por fogo tem vindo a diminuir
9 - Nos PDM’s aprovados (de 1ª geração): percentagem crescente de área urbanizável – prevista para 30 milhões de habitantes
10 - Existem muito mais casas do que famílias e um número crescente de fogos devolutos (2002 - 8,1% do PIB gasto em residências; 2% UE)
11 - Há cada vez mais “parques de estacionamento” de habitações vazias.
12 - Segundo a Agência Europeia do Ambiente, Portugal aumentou a taxa de urbanização em 50% nos últimos 15 anos – e é o país com maior percentagem de área construída na faixa litoral dos 0 – 1 km (EEA, 2006)

Os números falam por si.

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Arquitectura e Comunidade

Já aqui escrevi um post-tríptico sobre arquitectura e urbanismo, mas a solicitação do Pedro, merece este contributo. Não falarei sobre projectos em particular. Porque não é isso que está em causa.
O que importa salientar é isto, todas as obras estão sujeitas à divergência dos gostos, todos os arquitectos com licenciatura estão perante a lei nas mesmas condições, todos os promotores estão no seu direito de promover o que os planos permitirem, as câmaras (como o Estado) não tem nesta nossa democracia uma linha estética, o povo não tem voz senão em pachorrentos domingos de 4 em 4 anos.
Que fazer? Que fazer que possa defender o que o Pedro chamou a colectividade e que eu prefiro chamar comunidade?

A primeira dificuldade é essa mesmo: identificar uma comunidade. Da mesma forma que hoje, é difícil identificar um povo numa pátria. Precisaríamos de partilhar valores, palavras e imagens. E partilhar significa aqui comungar, ou seja, partilhar um alimento comum. Na história temos essa identidade sem que a criatividade fosse diminuída. Estamos mesmo em crer, que só há inovação onde o futuro não recusa ou anula o passado. Ou seja, sem continuidade não há novidade.
A segunda dificuldade, é a presunção do julgamento histórico. Sempre que uma obra trás um vento de ruptura com o conhecido, com o habitual, ou com o expectável, as reacções tendem a ser catastrofistas. Depois há um tempo de adaptação. Por fim, podemos estar na presença de um ícone. Mas este poder ser dá ao autor um estado de graça que perdura para além de si próprio e serve de exemplo para futuros arrojos. Convém, no entanto, discernir se um ícone tem realmente qualidade para além da conquista do estatuto de ícone pela sua bizarria. Convém, também, não ficar atado pela possibilidade de se estar a cometer um erro de avaliação. Os debates e a sua vivacidade terão uma outorga histórica que nunca poderemos determinar com certeza. A força do que se impõe será, sempre, um espelho do que somos e do que fomos. Poderemos, quanto muito não gostar do que vemos no outro lado do espelho.
O que em Portugal está estabelecido, é que um arquitecto tem liberdade de propor o que quiser desde que cumpra a legislação em vigor tanto para o exercício da sua profissão, como para intervir nos lugares para onde recebe um encargo. A questão do gosto não lhe é colocada. O gosto, que é sempre de algum modo um pacto com o meio em que nos movemos, é desenvolvido desde a formação até à prática, no ensino, no convívio, no intercâmbio, nas tendências, nos discursos do tempo. Cada um, com o seu passado, assume esses factores de forma diferente, adere ou recusa este ou aquele. Naturalmente, num tempo em que a comunidade e a sua identidade não existem, e todos os factores formativos (atrás referidos) são tão díspares e de tantas proveniências, o resultado é cada vez mais, sob o preconceito da modernidade e da incompreensão que a história há-de corrigir, estranho a todos. Mais do que estranho ele é bizarro. Mas não são bizarros a maior parte dos ícones da arquitectura contemporânea?
Esta dificuldade por que passamos, nós arquitectos, é comum a todos de alguma forma. Podemos alhear-nos das consequências mais profundas destas questões. O tempo tem uma força muito poderosa. Os clientes exigem ícones, o mercado só reconhece ícones, as câmaras municipais precisam de ícones, etc... Os arquitectos, como outros artistas, interpretam o seu tempo e não se pode pedir a todos que inventem o tempo futuro. Até porque o alvará (licenciatura) que lhes é exigido, não lhes exigiu para o obter que pensassem profundamente sobre isto.
As soluções para este problema passam por reconhecer que há o problema, o que não é seguro que se reconheça. Depois, podem ser preparadas nos anos de formação se as escolas e os ateliers fizerem prevalecer uma ética arquitectónica e urbanística a todas as formas acidentais de uma estética do instante. Finalmente, se toda a educação seja de arquitectos, ou não seja, preparar o homem para uma iniciação e compreensão dos valores poéticos. Actualmente, a ausência da necessidade de símbolos conduz à ausência de uma intenção poética. Fica o esqueleto da poética, ou seja, a estética. E tudo não passa de sensações sem futuro.
O que é patente e notório é que é na arquitectura (noutro post juntamos-lhe como gémeo o direito) que os povos, as comunidades ou as pátrias se espelham. E quando não gostam do que vêem não deviam pensar só nisso que vêem mas no que tornou isso possível.

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Idade de Homem

Eu andava com um pé nos 17 e outro nos 18 quando comprei, na livraria da ABC, na baixa de Luanda, a “Idade de Homem”, de Michel Leiris. Hoje, não há já ninguém que leia um livro destes. Eu li e as 222 páginas deixaram marcas. O livro de Leiris, poeta, surrealista, mas sobretudo etnólogo e amigo do Georges Bataille de “L’Erotisme”, era um livro de exposição pessoal. O autor oferecia de si mesmo um retrato implacável, arriscando por vezes uma auto-flagelação que ainda hoje me faz pensar se o verdadeiro rito de passagem para a viril idade não é uma lúcida capacidade de nos auto-examinarmos e, com calculada injustiça, desvalorizarmo-nos ao ponto de um certo escárnio.
É com esse exercício cruel que Leiris começa o livro, fazendo a sua descrição física: “...detesto ver-me de repente num espelho porque, não estando preparado para isso, acho-me sempre de uma fealdade humilhante”. Picasso, que era amigo dele, leu e disse-lhe com todas as letras: “Votre pire (ou meilleur) ennemi n’aurait pas fait mieux !” Outro pintor, outro amigo, Bacon confirmou-o com este retrato.
O propósito de Michel Leiris era o de mostrar como “a partir do caos miraculoso da infância se chega à ordem cruel da idade de homem”. Queria fazê-lo, afirmou, dizendo toda a verdade, nada mais do que a verdade. Para mim, foi essa a primeira vez que vi a literatura como uma forma de exposição pessoal e, mais do que isso, perigosa e de alto risco. Ou, como o autor explicava, era esta a única forma de introduzir numa obra literária um risco aproximado à ameaça do corno do touro que os homens de lantejoulas enfrentam na arena. Escreves, arriscas-te!
Esta visão “da literatura como uma forma de tauromaquia” fascinou-me sem remédio. Ou se escrevia para nos pormos em causa, correndo-se o risco do equilibrista no circo, ou não valia a pena, o que me liquidou qualquer veleidade lírica ou outros arroubos sinfónico-literários.
Mas será possível escrevermos e descrevermo-nos da forma desapiedada que Leiris propunha? Basta lê-lo para perceber que os segredos, os mitos (tão tocantes, o de Lucrécia, a mulher que se mata, e o de Judite, a mulher que mata), a encenação teatralizada são, mais do que os factos verdadeiros, a matéria da “Idade de Homem”. Neste livro catártico onde Leiris percorre família, mulheres, masturbação, sadismo, sagrado e suicídio, para mencionar apenas alguns dos temas da sua vida, acabamos por descobrir que, por mais verdade que queiramos pôr ao falar de nós, só conseguimos dizer-nos e contar-nos por símbolos, por mitos e por alegorias.
Para que conste, aqui fica a ficha do livro. “L’Age d’Homme” foi publicado em 1939, a pedido de Georges Bataille para uma colecção erótica. A edição portuguesa surgiu em 1971, na Editorial Estampa e a tradução (excelente prosa) é de Maria Helena e Manuel Gusmão.
Curiosidade final, Leiris, no livro que deu à mãe, assinou uma dedicatória reveladora: “À ma chère maman, qui lira dans ce livre des choses qui lui seront peut-être pénibles, mais qui comprendra - j’en suis sûr - qu’il ne s’agit là que d’injustices d’enfant, n’engageant pas la tendresse de l’âge adulte. Michel”

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segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A dimensão «colectiva» da arquitectura



Sigo o raciocino de João Pereira Coutinho, esta semana, no Expresso. Não estando acometido de uma súbita febre colectivizante (e sendo, enquanto liberal, um acérrimo defensor dos direitos de propriedade) não posso deixar de, também eu, considerar que a arquitectura é, por natureza, «inescapável» e tem uma dimensão «colectiva» que parece aconselhar a uma mais efectiva intervenção de todos os «stakeholders» nas decisões sobre as grandes obras públicas ou privadas (peço desculpa pelo jargão empresarial, mas não me ocorre expressão mais adequada). Reconheço que não é fácil conciliar estes dois direitos (o direito de propriedade e o direito dos cidadãos não serem agredidos, nas suas cidades, por intervenções de notório «mau gosto» ou com impactos visuais insuportáveis). Reconheço, por outro lado, que não é possível discutir o «bom» e o «mau gosto» a milhares de vozes sem correr o risco de projectar cidades insuportavelmente medianas e uniformes.

Reconheço, no fundo, que tenho mais dúvidas do que certezas nesta matéria. «Je dirai même plus»: (para citar Dupond, ou Dupount) só tenho mesmo uma certeza. A de que uma sociedade civil mais organizada e mais activa constituiria seguramente uma resposta muito mais eficaz às aberrações que nascem um pouco por todo o país, do que o deserto de cultura cívica que nos caracteriza. Mas como teoria, manifestamente, não basta. Talvez o João Luís tenha paciência de acrescentar alguma coisa a este debate...

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sábado, 24 de novembro de 2007

A doença, a cura

O Gonçalo Magalhães Colaço e eu mantivemos aqui, aqui e aqui um diálogo que, se da minha parte foi saltando ao pé coxinho do elegante para o diletante, da parte dele foi inteligente, convicto e sistémico.
Responder ponto por ponto ao rigor e à lógica do Gonçalo é uma tarefa que não está ao alcance do hedonismo de que cantos pouco gregorianos me fizeram iludido adepto (muita razão tinha ele quando duvidava do meu autoproclamado estoicismo).
O que nos separa não é pouco. É mesmo muito mais do que as nossas boas maneiras deixam supor. Por muito menos, e nenhuma das partes se livra do estigma, já se matou.
Separa-nos a fé. Que um tem e outro não. Separa-nos a forma como fundamos a moral com que encaramos o mundo (mesmo que fosse, e não é, a mesma). Separa-nos a razão pela qual proclamamos amar o próximo (e aqui recomendo-me um prudente silêncio wittgensteiniano). Separa-nos o discurso filosófico, o meu mais racionalista e de pendor não-metafísico, o dele cruzando, num amor sem barreiras, filosofia e teologia, certamente para escândalo (a mim que nada me escandaliza) de muitos modernos pensadores. Tenho um batalhão de razões e um armazém de livros prontos a partir em cruzada contra Gonçalo e contra a conspícua mancebia das duas disciplinas em que se alimenta. Melhor: tive. Mas desisto.
Há dias, um velho amigo meu, insinuou-me, com extrema e literária gentileza, ele que é de ciências e matemáticas (eu tudo confundo), que todas as teorias que sustentamos, filosóficas, religiosas, politicas, científicas, são ficções. Tão literárias, tão luminosamente cegas, como as ficções de Jorge Luis Borges.
Nas ficções, na literatura, é perigoso acreditar que se possui a Verdade. De vez em quando, e parafraseando com alguma liberdade um autor que há pouco publiquei, o Belo leva-nos pela cintura. A plenitude desse momento é o melhor que nos pode acontecer.
E foi esse pequeno momento, foi a beleza consoladora que por vezes (raras vezes hèlas!) perpassa pela religião, que me levou a evocar, nostálgico, a notícia da morte de Deus. No mundo contemporâneo, que por optimismo crónico não detesto, e embora sabendo que por mim ninguém se daria a semelhantes trabalhos, sinto que me montaram uma armadilha.
Por um lado, não consigo aceitar a rejeição primária e vulgar da religião, e não vejo que o alegre e secular extermínio da aspiração ao sublime que lhe está associado possa ser saudado como uma vitória do espírito; por outro lado, perturba-me que a maior parte da religiosa ressurreição chegue revestida de uma cosmética teológico-filosófica que temo ser o regresso a um modelo de pensamento moralista e sectário pronto a desaguar numa lógica de exclusão. E é neste estado de vexatio animae que me parece, mais vezes do que as vezes que surge bela e consoladora, que a religião não é a cura, mas a própria doença.
Tudo isto que acabo de dizer não é já ao Gonçalo que o digo, mas a mim mesmo, despojado de doutrina e da crença nela, seduzido apenas por uma filosofia que Wittgenstein definiu de forma lapidar neste aforismo: “As fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu mundo”.

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sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Freakonomics à portuguesa

Desta vez sou eu quem faz publicidade a um livro da produção do Manuel Fonseca. O autor é um economista com uma enorme capacidade de trabalho que tem a vantagem adicional de ser um historiador económico da globalização. Responde num tom provocador a perguntas como: Porque é que a Espanha é um papão? Porque é que devíamos estar gratos pela crise? Porque é que temos tantos doutores e engenheiros, mas a produtividade não cresce? Porque é que João Jardim é João Jardim? Um livro a não perder para quem quiser saber melhor o que andamos a fazer. Será lançado na próxima terça-feira.

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quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Rei Jesus

Para dizer o mínimo, “Rei Jesus”, da autoria de Robert Graves, é um romance controverso. Alguns, mais eufóricos, dirão que é dos mais controversos romances do século XX. Outros, mais exaltados, invocarão o direito (a obrigação até) de o considerar uma blasfémia. O Jesus de Graves é-nos apresentado como o herdeiro autêntico do reino de Israel, tanto pela lei hebraica, como pela lei de Israel. Jesus tinha, por nascimento, legitimidade para reclamar o trono. E era assim por que a natividade de Jesus, filho de Maria, nada tem a ver, no romance de Graves, com o mistério, com a versão mística, que a teologia católica consagrou. A tese da Virgem Mãe é liminarmente rejeitada por Graves que retrata Jesus como poeta, sage e um confessado inimigo das mulheres que acaba, por fim e por ironia, adoptado como herói delas.
Publicado em 1946, com incómodos vários (dizem que Churchill adorava o livro, mas teve publicamente de se reservar nos cumprimentos a Graves), nunca fora editado em Portugal. Agora, com tradução brilhante de Rui Santana Brito, vai ser colocado nas livrarias nos próximos dias pela – pois, é claro, estou a ser juiz em causa própria – “Guerra e Paz”.
Custou um dinheirão à editora (são 539 páginas aventurosas), o que é uma rematada loucura, quando toda a gente nos diz, e é mais do que sabido, não haver leitores para o maravilhoso destas “escavações bíblicas”. Tudo ponderado, não contem com ofertas do editor, e vamos lá às compras a ver se esgota. Desmintam, se faz favor, a pessimista vox populi.
ps - Acima, onde digo, "... pela lei hebraica, como pela lei de Israel", eu queria dizer "... pela lei hebraica, como pela lei de Roma". Fica feita a correcção.

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Quando o milagre é feito de abuso


A Provedoria de Justiça acaba de revelar o resultado de uma acção de inspecção a alguns serviços de finanças e o saldo é arrasador. Afinal, como já muitos sentiam na pele, o défice desceu à conta do abuso.
Citando o Público de hoje, já que não li ainda o relatório, “contas bancárias totalmente congeladas em resultado de penhoras fiscais independentemente do valor da dívida; penhoras de vencimentos e de ordenados que ultrapassam os limites estabelecidos na lei; liquidação de juros de mora, umas vezes por excesso outras por defeito; cativação de reembolsos de IRS sem que estejam esgotados os meios de defesa dos contribuintes; situações em que são os contribuintes a avisarem os serviços de finanças de que impugnaram as liquidações que lhes foram efectuadas; e penhoras efectuadas depois de ultrapassado o prazo de prescrição das eventuais dívidas fiscais”.
Num Estado de Direito, quando estão em causa os direitos e garantias mais essenciais, tudo isto é verdadeiramente trágico. Revela um autoritarismo arrogante e uma perigosa insensibilidade aos rudimentos mais elementares da legalidade democrática.
Mas acresce que, como bem sabe quem conhece a recente ferocidade da máquina fiscal – aquela em que radicam os tão elogiados sucessos da nossa política orçamental –, a prática das cobranças tem-se revelado tão voraz quanto cega. O que é, em si, também absolutamente dramático.
O facto é que vivemos num país cujo tecido económico tem fragilidades conhecidas e que, por isso, tem vivido com grandes dificuldades o processo de reestruturação a que se viu forçado pelas circunstâncias. Ora, neste contexto, o Fisco tem sangrado inúmeras empresas – pequenas e médias empresas, predominantemente –, impondo-lhes um regime que não deixa alternativa ao puro e simples encerramento. Ou seja, em nome do equilíbrio orçamental, o objectivo do resultado fiscal auto-justifica-se - e, de caminho, leva na enxurrada, inevitavelmente, toda a sorte de contribuintes. Aqueles a quem a nova economia sempre ditaria a morte, mas, também, e o problema é esse, aqueles a quem uma política correcta permitiria um horizonte de saneamento e regeneração.
Portanto, o ponto é jurídico, mas é igualmente económico. E, no fundo, é ainda financeiro – sendo como é patente que, nessa matéria, tudo se tem bastado com o milagre fiscal.
Pelas várias razões, saúdo a iniciativa do Provedor de Justiça. Fiscalizar é importante. E divulgar os resultados da fiscalização é sempre decisivo – pelo menos para quem, como eu, não desista do projecto de viver em liberdade, num Estado de Direito que se quis democrático.

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Thomas Gray. Edmund W. Grosse. University Press of the Pacific, 2003

A simpatia não é critério de verdade, mas pode sê-lo ao menos de interesse. O século XVIII inglês é-me bem mais simpático que o XIX. O século XIX, mal ou bem, ainda hoje constitui o paradigma sob o qual é julgada a Inglaterra, tanto pelos seus admiradores como os seus detractores.

A verdade é que o século XVIII inglês é-me mais misterioso que o XIX. Nunca o consegui perceber plenamente, e temo bem que isso se deva em parte à imensa riqueza de personalidades e experiências de vida. Assim como foi a Itália do Quattrocento ou a França de Luís XIV, a Inglaterra do século XVIII mostra novas vivências, novas experiências de estar vivo. Revolução agrária e mais tarde industrial, desenvolvimento de um império comercial e colonial, experiências científicas, grandes viagens, a expansão da viagem lúdica e pedagógica.

A criação do Grand Tour ia de par com grandes universidades que, mesmo nos seus momentos de maior decadência, deixavam dentro das duas portas as criaturas mais criativas. Swift, Johnson, Pope, Dryden são activos nesta época. A diversidade de pessoas e experiências de vida, mesmo políticas, de um sistema feudal que se se soube adaptar, um sistema que conciliou uma extrema violência (as histórias da marinha são disso exemplo) com uma clemência de costumes. Ou um sistema que transforma o extremo conservadorismo classicista em romantismo.

Foi essa a Inglaterra que gerou a admiração e o amor da Europa. Como de costume foi a França quem divulgou a Inglaterra, como veio a fazer mais tarde com a cultura alemã ou polaca ou russa. Uma Inglaterra profundamente amada pelos franceses e pelos continentais que seguiram a moda francesa.

Thomas Gray é mais um exemplo desta época. Com praticamente apenas duas poesias atingiu o estatuto de génio. Não lhe era exigido que fosse prolixo e muito menos que fosse profissional. Bastava ter mostrado que tinha sido capaz de escalar o cume uma vez que fosse, já não lhe era exigível que repetisse a proeza. De grande classicista que era, puro e exigente na sua expressão, ninguém estranhou que antecipasse o romantismo que o resto da Europa apenas iria saborear muito tempo depois.

Gray representa muito da Inglaterra que eu admiro. Uma Inglaterra diversa, que admira a grandeza, que aceita cada nova obra como uma dádiva e não como uma dívida, que deixa cada um seguir o seu caminho, sem tiranias, seja do mercado, seja de uma imagem pré-formatada do que deve ser o ser humano. Algo de nostálgico, estéril e neurótico, algo limitado por um puritanismo britânico e protestante de que teve consciência, é certo, era de seu direito ter uma vida incompleta, não exemplar. Não se esperava do homem que o fosse. Mas tudo se lhe perdoava desde que soubesse chegar aos cumes. Esse misto de generosidade e rigor mostra a grandeza de um povo. Um povo que em vez de se anunciar como Messias do mercado ou dos direitos humanos, como hoje infelizmente acontece, celebrava a capacidade do ser humano de ser algo mais que as suas deficiências. Por isso a Inglaterra souber ser grande e Gray é um dos exemplos de como ela o soube ser.

Alexandre Brandão da Veiga

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Esmeralda: nunca saberemos se o final será feliz


Não estou muito por dentro do caso Esmeralda mas o que tenho ouvido nos últimos dias recorda-me um filme que vi há poucas semanas nos EUA: Gone Baby Gone (o primeiro, e surpreendentemente bom, filme de Ben Affleck como realizador). A exibição do filme foi atrasada nos Estados Unidos devido a algumas coincidências com a história Maddeleine mas, na verdade, o dilema que o filme aborda (e que não vos conto) está bem mais próximo da história de Esmeralda. Não se trata de opor o Direito à Justiça. Talvez se trate antes, em parte, de opor o que é justo ao que é melhor para a criança e, noutra parte, da impossibilidade de sabermos o que é realmente melhor para a criança. A este respeito, e sem ter condições de me pronunciar sobre o caso Esmeralda, não posso deixar de questionar até que ponto a imprensa e a opinião pública não confundem o que é melhor para a criança com o seu juízo sobre com quem acham que a criança estaria melhor. Até que ponto os juízos públicos sobre esta questão não se arriscam a ser contaminados por preconceitos sociais? A melhor forma de testar isto é fazer o seguinte exercício: imaginemos que o denominado pai afectivo, que há anos tentava sem sucesso adoptar a menor e a escondia da justiça, era alguém de uma classe social baixa e pouco culto (como penso ser o caso do verdadeiro pai de Esmeralda); imaginemos, igualmente, que os pais verdadeiros que nunca tinham podido exercer o poder paternal eram um casal de classe média e alguma educação (como os candidatos a pais adoptivos de Esmeralda). Qual seria a posição da opinião pública no caso? E estariam a pensar no que é justo, no que seria melhor para a criança ou em quem acham que cuidaria melhor dela? A única coisa de que tenho a certeza nesta história é que, como o filme de Affleck, terminará sem sabermos se teve ou não um final feliz. Não porque o autor não nos dê um final claro mas sim porque nos sentimos incapazes de fazer um juízo sobre se é um final feliz ou não..

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quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Adivinha de salão 2


E desta vez qual é a expressão procurada?

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Back of the envelope

Coisas que li ontem e hoje no Público levam-me a algumas contas sobre o joelho no tema da escolha entre a Ota e Alcochete. Digamos que entre os dois locais haverá um excesso de 30 minutos de viajem em cada sentido, para quem viaje do ou para o Centro e o Norte do País, incluindo Lisboa e os viajantes do estrangeiro. Digamos que 75% dos passageiros estarão nessas condições. Digamos também que a viagem de 30 minutos a mais custará um excesso de 5 Euros, ou 10 Euros ida e volta. Um preço alto pois implica a passagem por uma ponte. Digamos ainda que usam o aeroporto 15 milhões de passageiros. Logo, 15 milhões de passageiros x 75% x 10 Euros = 112,5 milhões Euros no custo adicional dos bilhetes, em cada ano. Consideremos ainda que 15% das viagens são de negócios e que cada viajante ganha a módica quantia de 75 Euros à hora e que uma hora é o tempo que leva a fazer a ida e volta no percurso adicional. Assim, 15 milhões de passageiros x 15% x 75 Euros = 168, 75 milhões de Euros. A soma destes valores, isto é, cerca de 280 milhões de Euros por ano, corresponde a um imposto escondido da escolha de Alcochete. Simples, não é? E também muito dinheiro. Pode estar tudo errado, mas que existem custos deste tipo, disso ninguém pode ter dúvidas.

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Filosofia e Vontade

Não dispondo dos dotes literários do Manuel S. Lourenço ouso, todavia, elevar este comentário em resposta ao seu último «post» sobre o mesmo tema, a igual dignidade, dado o lapso de tempo e de outros «posts» entretanto passados, com a esperança de ser para o bem da Filosofia e a refutação da Vontade.


1- Vontade, Acção e Pensamento

A acção visa sempre a um fim, sendo esse mesmo fim a realização dos princípios, da Sabedoria (saber da verdade), Justiça e Liberdade. Composta de actos, é acção sempre ordenada pensamento, pensamento dos princípios, do logos, apresentando-se pelos conceitos, articulando-se nas ciências e afirmando-se nos actos como o que há de significativo na acção e a ordena.

A Vontade não entra aqui em parte nenhuma não faz falta alguma. Por isto mesmo, a dificuldade de entender o que o Manuel S. Lourenço quer dizer com «...tanto é «Vontade» ter fé como não ter». A fé não está dependente da vontade mas do pensamento. É o pensamento que conduz, necessariamente, à fé, não a vontade. Afirmação algo controvertida, mesmo na Hierarquia, mas nem por isso a reputamos menos certa.

Pode-se recusar o pensamento e, por consequência, a fé. Todavia, não se vislumbra porque afirma exigir esse passo «um estoicismo superior ao da adesão a qualquer protectora e consoladora eclésia».

Cremos, antes mais, encontrar-se o termo «estoicismo», por lapso, em lugar de heroicidade _ ou a frase não faria sentido. Mas ultrapassado esse pequeno percalço, não se compreende quanto justifica tal afirmação. Em primeiro lugar, porque a fé não implica, necessariamente, qualquer adesão a qualquer eclésia. Em segundo, porque, escrever «protectora e consoladora eclésia» é estar, logo à partida e sem prova, iludido por pressupostos sem garantia: protectora, tendencialmente o será, qualquer eclésia, num certo sentido; mas, consoladora, de per si, nunca necessariamente. Em terceiro, a recusa da fé não implica necessária queda numa inexorável e irremissível solidão (a menos, claro, quando se subentende encontrar-se dado como certo e garantido isso mesmo que, pela recusa da fé, concomitantemente se recusa). Em quarto, menos ainda se compreende essa inexorável queda na «irremediável solidão» causada pela recusa da fé quando essa mesma recusa não deixa de poder significar simples adesão aos doces braços de qualquer protectora e consoladora ninfa do Tejo, tão ou mais protectora e consoladora quanto qualquer eclésia. Por último, de algum modo, não é o homem, por natureza um ser solitário? Porquê essa súbita superlativa valorização da solidão?

2 – Do Apelo à Eternidade da Verdade, do Bem e do Belo.

As maiúsculas são, em convicta penitência se confessa, breve concessão aos nossos Germânicos amigos. Se alguma coisa há a conceder aos Imperadores da Europa, que seja isso e não mais do que isso.

Diria a filosofia analítica que a asserção é destituída de sentido? Embora nunca nos haja ocorrido preocupar-nos com o que a filosofia analítica entende seja do que for e esperança tendo de tal nunca vir a suceder, sem dificuldade admitimos ser a expressão destituída de sentido. Mas o que é a filosofia analítica, é filosofia, sequer? O que é a filosofia? O amor da sabedoria, como diz a própria expressão? E não é a sabedoria (não confundir com conhecimento) sempre sabedoria ou saber da verdade? Ora, não podendo a filosofia analítica aceitar a «verdade», por destituída de sentido também, poderá ainda considerar-se filosofia a filosofia analítica?

Claro, poder-se-á argumentar haver outras definições de «filosofia» de forma a devidamente encaixar a filosofia analítica. Como, por exemplo, seguindo Leibniz, a da indagação de porquê haver alguma coisa em vez de nada. Mas preocupará vez alguma à filosofia analítica o porquê de haver alguma coisa em vez de nada? Não é crível.

Tampouco aceitará a filosofia analítica que a intuição seja o análogo superior da sensação, como diria Aristóteles. Só aceita o sentido, quanto se sente ou passível é de aos sensos se referir e pelos sensos «provar». Em suma, só aceita o pensamento como adequação ao real, ou seja, que só é verdadeiro dizer isso que é quando isso que é, é e só pode ser isso que é (é verdadeiro dizer que uma árvore dá frutos quando essa mesma árvore dá frutos). Em termos aristotélicos, uma simples predicação acidental, o grau mais baixo e menos significativo (Segundos Analíticos) do juízo predicativo.

Como é evidente, depois de tudo isto, para além de não poder haver grande estima pela filosofia analítica, como o Iluminismo, o Positivismo, o Utilitarismo, o Pragmatismo, velho ou novo, Desconstrutivismo e tutti quanti, são de tão pouco serventia como, em essência, mais não representa e representam senão o repúdio e negação da própria filosofia. Ou seja, não vale mesmo a pena gastarmos mais cera com tão ruim defunto.

No que respeita à Academia, das duas uma, ou estamos a falar da verdadeira Academia, e tendo sido exactamente aí onde nasceu, não o apelo mas a Verdade, o Bem e o Belo como a mesma eternidade, e a afirmação não poderá estar correcta, ou estamos a falar disso que por aí anda usurpando tal designação, mais não sendo, no fundo, senão um completo vazio , e, nesse caso, a afirmação é irrelevante, ou melhor, é completamente irrelevante, diga essa suposta Academia o que disser. E quanto à ciência, nada aqui tendo a acrescentar ou a dizer, melhor será não a invocar e menos ainda convocá-la. Uma coisa é a Filosofia, outra, muito distinta, a Ciência (a moderna, evidentemente).

3 – Da Humanidade

Sorrio. Em primeiro lugar porque me faz lembrar o célebre dito de Joseph de Maistre: «A humanidade? Conheço russos, franceses, polacos ... mas a humanidade nunca tive o gosto de encontrar». Depois porque só ao reler citado suposto dilema, “o do vazio repugnar intrinsecamente à humanidade”, tive consciência dessa outra, bem mais comum e quotidiana acepção. De facto, mais por razões de facilidade, efeito e sugestão literária do que por rigor filosófico, ou fosse o que fosse, a palavra «humanidade» foi escrita na acepção de qualidade comum a todos os homens que faz com que os homens verdadeiramente homens sejam, ou seja, a capacidade de pensar, ou seja, o pensamento, ou seja, em mais simples, certa e rigorosa expressão, recompondo o original como deveria ter ficado desde início, leia-se, «o vazio repugna intrinsecamente ao pensamento». E repugna porque, se verdadeiramente fosse possível pensar o vazio, nesse mesmo momento, logo verdadeiramente o pensamento o pensasse, verdadeiramente o compreendesse, logo quedaria anulado. Simples impossibilidade lógica.

Enfim, desculpe-se e passe o lapso como inépcia de escrevinhador de segunda e critique-se, por favor, a partir de agora, no que houver e for criticável, com os devidos agradecimentos, a expressão reformulada não a original.


4 – Do Metrónomo de Königsberg

A afirmação segundo a qual “...onde se crê ter morrido Deus, morreu também o Homem, mais não restando senão a mais inclemente das barbáries”, não foi deduzida da afirmação de Dostoievsky segundo a qual “Se Deus não existe tudo é permitido”. Talvez o pudesse ter sido e seria até literariamente mais bonito e erudito. Mas não o foi. Foi apenas mera constatação de facto. Todavia, se a célebre frase de Dostoievsky, de algum modo o implica, sendo verdadeira, implica também, antes de mais e acima de tudo, como muito bem observou Camus, o absurdo, o mais completo e insustentável absurdo. E «nada valeria a pena», de facto.

Mas, claro, muito bem viu o e fez Manuel S. Lourenço, transferindo a questão para a Ética e a Moral. Respeitando a Ética ao indivíduo e a Moral (mores, costumes) a essa ficção, para usar a consagrada expressão de Pessoa, a que os modernos chamam abstrusamente «sociedade», fiquemo-nos pela primeira.

Infelizmente, de Kant a Comte, de Comte ao tão actual quanto hilariante Richard Dawkins, o tal do « The God Delusion», não fora cousa séria, as tentativas de constituição de uma Ética recusando em simultâneo qualquer transcendência, não só não redundaram no mais fundo fracasso como tiveram também, não poucas vezes, as mais trágicas consequências (não será também por isso que Heiddegger veio dizer, no crepúsculo dos seus dias, que «só um deus nos pode agora salvar?).

Limpar o pó ao Kant não parece justificar o esforço e a maçada. Melhor deixar ficar o Metrónomo de Königsber posto em sua paz e sossego. A limpar o pó, limpe-se a Platão, a Aristóteles, a Sto Agostinho, a Sto Anselmo, a S. Tomaz e, evidentemente, aos nossos, àqueles portugueses tão miserável e propositadamente esquecidos, repudiados e ignorados pela dita cultura nacional que tem tão pouco de uma como de outra, afinal, também a tal supracitada e usurpadora Academia.

Quanto ao mais, do «Imperativo» tratou já devidamente o Hegel e a Liberdade sem transcendência dá no que deu, ou seja, nas famigeradas marxistas «liberdades» de triste memória, entre outras

5 – «O homem só»

Escreve Manuel S. Lorenço, a finalizar o seu «post», querer fazer a devida vénia ao «homem só» que, sem outra esperança a de não ser o consolo da felicidade que decorre de olhar (e actuar) para todos os homens como seus iguais à luz da lei moral, ama «...o seu semelhante no que ele tem de único, / de insólito, de livre, de diferente...», citando Jorge de Sena.

Se bem interpretamos, o ponto decisivo, aqui, é o «sem outra esperança».

Podemos compreender intelectualmente uma afirmação como a citada mas, verdadeiramente, sem adesão de alma, se assim se pode dizer. Como deverá ter ficado já explícito, é difícil, senão impossível, conceber uma existência sem esperança alguma. Ou melhor, talvez possível seja concebê-lo, mas nunca como uma existência «feliz», na acepção afirmada. Aceitar-se-á como belo tropo literário mas pouco mais.

Ao contrário do aparente e mais comum entendimento, esperança não significa, não é sinónimo, de qualquer repouso no «consolo» de ter encontrado ou certeza de vir a encontrar. Esperança é tão só, se licita é tal expressão, saber sempre, a cada momento, em cada instante, haver sempre «mais mundos», «mundos» a pensar e, sem esperança, sem esperança alguma, mais não seria possível senão uma «estóica» e pura ataraxia, uma completa ausência de desejo e emoção, uma passividade absoluta, até perante a morte. O que significa também, de algum modo, indiferença absoluta perante a vida.

Não sei se essa ataraxia poderá ser entendida como heróica mas, seja como for, não se vê, assim, como Estóico, quem escreve como o Manuel S. Lourenço escreve e o que escreve. Na verdade, afigura-se estar muito mais próxima dos Hedonistas, eventualmente em posição gémea de um tão moderno como actual Michel Onfray, para quem a filosofia deve estar ao serviço de:«une bonne vie, une existence meilleure, un art du bonheur».

Nada de extraordinário. Um modo de ser, um modo de estar, como hoje se dirá, como outro qualquer, sem dramas nem patéticas falsas tragédias. Contudo, creio, importa saber onde estamos ou, como diriam os antigos, importa «conhecermo-nos a nós próprios», até para conhecermos as nossas diferenças. Só isso. Mas ainda assim, para isso, claro, importa a Filosofia, não a vontade. E sempre muito bem precavidos contra os prestígios da razão moderna.

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Deus

Se há assunto que exige elevação e solenidade é a Ideia de Deus. Não adianta perder tempo exibindo paradoxos que verdadeiramente não se entendem, nem desenvolvendo teorias por interpostas pessoas. Nada se ganha em profundidade diminuindo a questão em conversas pseudo-eruditas ou, simplesmente, atrevidas.

Presume-se, erradamente, que por ter havido muita literatura de ideias, muita arte, muita religião e muito contraditório, a questão esteja resolvida ou, por outro lado, seja irresolúvel e, por isso, se ponha a jeito como assunto para alienados ou como repasto para brincalhões.
Sem querer entrar na discussão da morte de Deus queria apenas deixar dois contributos.
O primeiro é: Deus, ou a Ideia de Deus, é um campo filosoficamente aberto não há demonstração da sua existência mas à garantia de que tudo o que a ele se reduzir (redução num sentido de sistematização) é a própria garantia da Liberdade.
O segundo é: por mais voltas que se dêem, Deus que é uma realidade transcendente à condição dos homens, mas a todos comum, só pode ser verdadeiramente compreendido na mais extrema experiência de humildade e despojamento interiores.
Não se espere, pois, que a razão o venha mostrar; nem se espere, também, que sem a razão alguém o possa ver.

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terça-feira, 20 de novembro de 2007

Comentário em forma de post à questão escolar

Este post começou por ser uma comentário ao post anterior do Manel e à resposta do Pedro, só que tornou-se tão longo que tive de fazer o upgrade. Acho que ambos têm razão (não é uma forma de tentar precaver-me contra críticas vossas ao que vou dizer...) quanto à importância da democratização do ensino e todas as estatísticas parecem comprovar isso. O Pedro suscita, no entanto, o problema da desadequação entre o que se ensina e aprende e o que o mercado necessita e relaciona isto com a dicotomia ensino público versus ensino privado. Em parte isto é verdade (embora o ensino não deva ser apenas função das necessidades do mercado, quer porque devemos ensinar mais do que as meras competências necessárias ao mercado, quer porque as necessidades do mercado são sempre conjunturais e necessitamos de pessoas que se adaptem e mudem com elas). Na medida em que é verdade não penso, no entanto, que a resposta esteja apenas no ensino privado. O importante é co-responsabilizar escolas, alunos e financiadores pelos resultados obtidos no mercado com base na formação obtida (fazendo com que todos paguem o ensino e ganhem ou percam com o sucesso ou insucesso do mesmo). É verdade que a lógica do ensino privado leva a que este proceda mais facilmente a essa co-responsabilização mas não seria impossível obter isso no sistema público (por exemplo: um sistema de empréstimos em que as próprias universidades fossem em parte credores e cujo o pagamento dependesse, em parte, igualmente, do sucesso dos seus licenciados).
Por outro lado, em defesa do ensino público é importante lembrar que este tem uma importante função comunitária de inclusividade e de promoção de um espaço público. Confesso que não me sinto muito confortável perante a ideia de um mundo com apenas escolas privadas em que corremos o risco de criar comunidades segredadas que reproduzem sempre os mesmos valores e grupos sociais. Eu já escrevi uma vez sobre isto e chamei-lhes os mundos perfeitos: em que as pessoas vivem de acordo com os seus valores e apenas ouvem o que querem. Só que a ausência de comunicação entre estes mundos pode levar, a prazo, à destruição das condições necessárias à existência de um espaço público e à construção de uma verdadeira autonomia crítica individual (que só se consegue, verdadeiramente, em discussão/relação com a diferença; em intersubjectividade para utilizar uma expressão mais filosófica). Do meu ponto de vista é a este respeito que faz sentido discutir a relação entre ensino público e privado e não em termos de democratização e acesso ao ensino (estes objectivos podem perfeitamente ser prosseguidos através de um modelo assente no ensino privado).

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Flexigurança

Às vezes um pequeno texto de opinião vale mesmo mil palavras. É o que se passa com o texto assinado por Miguel Gouveia, da Faculdade de Economia da Universidade Católica, publicado este Sábado no suplemento de Economia do Expresso.

Diz ele que o aumento da eficiência da máquina fiscal está a reduzir a importância dos mercados paralelos, o que tem implicações no nível de flexibilidade da economia. Actualmente, para o bem e para o mal, muita da necessária flexibilidade da economia portuguesa vem do facto de nem sempre a lei se cumprir. Isso acontece, por exemplo, com os segmentos do mercado do trabalho que não usam contratos ou usam contratos pouco vigiados. E também com a fuga a alguns impostos.

Com o Estado fiscal mais eficaz, que todos queremos, tais fontes de flexibilidade desaparecerão. Torna-se por isso urgente introduzir fontes alternativas de flexibilidade. Espera-se que o Governo gaste alguns dos fundos que tem arrecadado para financiar um sistema de flexigurança. Se não o fizer, mais vale deixar que se fuja ao fisco.

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Adivinha quem vem jantar



Também há vantagens na insignificância. Uma delas é que ninguém me convidou para o «tête à tête» entre o nosso primeiro e o Sr. Chávez. A desfeita não me impede de deixar duas singelas reflexões sobre o tema:

1 - O principal argumento invocado para «legitimar» o repasto é da ordem da «realpolitik»: a Venezuela é um grande produtor de petróleo e tem uma das maiores comunidades portuguesas no estrangeiro. Já o disse aqui mas repito: as «power politics» são um privilégio dos grandes e dos poderosos (como de resto o nome indica). Uma das poucas armas eficazes dos estados pequenos (sem dinheiro, sem exércitos, sem recursos naturais) é, num Mundo globalizado e altamente mediatizado, a opinião pública mundial. Portugal percebeu bem isso quando teve entre mãos o dossier Timor. Contra todas as expectativas, contra os interesses de uma potência regional rica em recursos naturais e em meios militares, Portugal fez dos princípios a sua única arma, «jogou» na mobilização da opinião pública, «utilizou» os media, e o resto da história é conhecida.

Infelizmente a coisa não fez escola. Sócrates tem esquecido a lição e gosta de brincar aos «Kissingers dos pequenitos». Recusou-se a receber o Dalai Lama mas lança-se com toda a naturalidade nos braços de Hugo Chávez, prestando-se a ser o instrumento de uma chantagem inconsequente que o Presidente venezuelano ensaia com o governo espanhol. A seu tempo perceberá a cruel transitoriedade da coisa. E que a subserviência dificilmente gera respeito.

2 - Outro dos argumentos para sustentar a pertinência do encontro é a legitimidade democrática de Hugo Chávez. Ora um mínimo de cultura política teria permitido perceber que nem só da regra democrática vivem os nossos regimes. De facto, quando falamos em «legitimidade democrática» estamos, na maior parte dos casos, a invocar uma dupla legitimidade: a democrática e a liberal. Pela simples razão de que as democracias a que fazemos normalmente referência são, de facto, democracias liberais (por oposição, por exemplo às democracias populares).

Ora, se é certo que o regime bolivariano de Chávez passa o teste da regra democrática (no sentido estrito), ninguém no seu pleno juízo defenderá que ele se submete às regras de uma democracia liberal (separação de poderes, «checks and balances», primado da Lei, liberdade de expressão, etc.). Razões bastantes para que não se pretenda emprestar-lhe uma aura de respeitabilidade que só por má fé ou ignorância se pode querer invocar.

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A Velha Questão Escolar

Deixando-me embalar pelo enlevo do que Platão chamava a doxa (essa lamentável opinião baseada nos sentidos), tenho tendência a alinhar pelos que sustentam que estamos numa época de decadência do sistema escolar. Sobre isso mesmo algumas vezes se tem escrito na Geração de 60, com destaque para alguns posts francos e directos do Pedro Norton.
Esta nota do Miguel, chamando a atenção para um tratamento estatístico do ratio entre e investimentos e resultados escolares em Portugal, coincidiu com uma “leitura oblíqua” de que, para já e até melhor digestão, não sou mais do que mensageiro. Peço, por isso, alguma contemporização no fuzilamento sumário a que, e já perceberão do que falo, elitistas e mathusianos me destinem.
Um estudioso francês, Éric Maurin, que leva alguns anos a escrever sobre a matéria, acaba de publicar o livro “Nouvelle Question Scolaire. Les Bénéfices de la Democratisation”. Tese central: a democratização da escola, baseada no princípio de uma escola comum para os estudantes até aos 16 anos, constituiu o cerne do desenvolvimento das políticas escolares escandinavas, anglo-saxónicas, chilenas, australianas e francesas, para, digo eu, utilizar os exemplos que vale a pena.
Segundo Maurin, os estudantes que passaram por esta experiência tiveram destinos sociais muito mais positivos do que teriam se essas políticas não tivessem sido adoptadas. Et pour cause as sociedades que primeiro democratizaram o seu ensino são aquelas onde os salários das classes médias mais progrediram.
Maurin afirma que este “modelo democrático” tem os seus detractores. Há, para começar, uma crítica elitista. Os tópicos centrais do ataque elitista, em primeiro lugar, consideram utópico dar a todos o mesmo tipo de educação e, em segundo lugar, deduzem que a uniformidade proposta pela “democratização” tem como consequência necessária e universal a baixa generalizada de exigência.
A segunda e mais consistente linha de contestação do modelo democrático é a da crítica malthusiana. Segundo eles, a multiplicação dos diplomas gerado pela democratização não é em geral acompanhada pelas necessidades da economia, o que gera desemprego e desilusão nos jovens diplomados, assunto para que, de resto, a Imprensa portuguesa tem chamado a atenção na última semana face ao aumento do desemprego em Portugal entre os nossos licenciados de fresco. (Sou sensível ao argumento e reconheço que há aqui muitas razões para nos fazer, a nós e a Maurin, pensar).
Em suma, elitistas e malthusianos chumbam categoricamente o processo de democratização que guia a politica de educaçao da maior parte do Ocidente há cerca de meio século.

O resiliente Maurin prova, com dados estatísticos, os méritos do sistema em vigor:

1. As gerações que beneficiaram da politica de democratização inseriram-se melhor na sociedade, têm melhores carreiras, melhores empregos e melhores salários do que as gerações anteriores.

2. Experimentemos o exemplo da Suécia (reconheço que já em Luanda, nos anos 60, sonhava com, chamemos-lhe assim, o exemplo sueco). Antes dos anos 50 a Suécia tinha um sistema escolar elitista. Só uma minoria fazia o secundário – em escolas de elite, bem entendido – após selecção com base nas notas da primária. A partir dos anos 50, institui-se a escola única obrigatória para todos. Resultado estatístico: houve uma redução das desigualdades entre crianças e aumentou o nível médio da classificação escolar dos alunos.

3. Sigamos para Inglaterra. A adopção da escola única teve lugar em 1960. Mas a sua adopção não foi universal. Foi adoptada progressivamente, de região em região.. Nas regiões que primeiro adoptaram o modelo, melhoraram, por esta estrita ordem, o nível dos alunos, a facilidade de entrada no mercado e os salários que vieram auferir

4. O contra-exemplo alemão. Na Alemanha, os estudantes vão, em função das aptidões reveladas na avaliação, para a Hauptschule ou para a Realschule. Dito de outro modo: há uma orientação dos que têm resultado mais fracos para escolas profissionalizantes. Submetidos os estudantes germânicos, nos últimos anos, ao teste de PISA (avaliação comparada, cuja principal finalidade é produzir indicadores sobre a eficácia dos sistemas educacionais de diferentes países, avaliando o desempenho de alunos na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o fim da escolaridade obrigatória nesses países), a Alemanha, e presumo que algum ministro da admirável senhora Merkel (não é piada, é mesmo admirável), entrou em estado de choque: a Alemanha está atrás de todos os países europeus acima referidos e, quel horreur, sistematicamente atrás dos franceses.

Deixo a quem sabe e a quem pratica o trabalho de humilhar o optimismo de Maurin.

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segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Os dinheiros da educação

O artigo do André Freire no Público de hoje (infelizmente só acessível para assinantes) dá-nos a conhecer algumas estatísticas importantes sobre o investimento na educação em Portugal. A sua tese é de que os factos não comprovam as palavras e a educação não tem sido uma verdadeira prioridade em Portugal. Partindo desta constatação, o André Freire desvaloriza a questão do modelo organizacional: o problema do nosso sistema educacional seria sobretudo uma questão de dinheiro. Sem colocar em causa que é também uma questão de dinheiro, acho importante juntar às estatísticas do André outras estatísticas que indiciam tratar-se também de uma questão de modelo. De que outra forma se pode explicar, por exemplo, que tenhamos a taxa mais elevada de abandono escolar e a mais baixa formação de toda a União Europeia (incluindo os novos Estados Membros) mesmo estando à frente de vários destes Estados em termos de despesa na educação? E como se explicam, igualmente, as nossas elevadas taxas de insucesso escolar, tendo nós uma das melhores ratios de professor por número de alunos (sendo que, por exemplo, o Reino Unido tem o número mais elevado de alunos por professor e muito melhores taxas de sucesso escolar). E já que o André Freire compara os níveis de despesa na educação era importante que comparasse, igualmente, a despesa pública e privada na educação. Se bem que a nossa despesa pública na educação não seja das mais elevados ainda assim ela está acima da média da União Europeia. Já a despesa privada é a mais baixa da União Europeia. Visto desta forma, podíamos dizer que a educação é, em qualquer caso, mais prioridade para o Estado do que é para os portugueses… Isto introduz, igualmente, a questão da co-responsabilização no investimento na educação e a sua relação com o modelo de financiamento. Uma coisa é clara, nem sempre os meios mais óbvios atingem os fins proclamados. Um último exemplo: Na União Europeia, o acesso ao ensino superior continua a ser, em larga medida, gratuito, ao contrário do modelo americano (onde as propinas são muito elevadas e suportadas através de empréstimos). O argumento mais comum a favor do modelo europeu é que ele permitiria um acesso mais democrático e universal ao ensino superior. Só que, na verdade, a percentagem de americanos a frequentarem o ensino superior é bastante mais elevada que a Europeia…
Alguém quer explicar estes paradoxos?.

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Deus Ainda Mexe

Agradeço ao Gonçalo o comentário e a simpática avaliação do que escrevi aqui. Escrevi-o com mais seriedade do que a ligeireza da prosa possa fazer supor, mas sem a pretensão de tocar o diáfano manto de uma Verdade que o meu Relativismo não me autoriza. Autorize-me o Gonçalo estas notas tentativas, que eu, por se tratar como diz de “grandes questões”, promovo a post para animar a “Geração de 60”, remetendo leitores curiosos para o comentário do Gonçalo Magalhães Collaço (leitura obrigatória) que o justifica:


1. Santo Agostinho que me perdoe mas entre Pensamento e Acção, tanto é “Vontade” ter fé como não a ter. Diria mesmo que, quando se tem consciência do passo que se está a dar, a irremediável solidão para que nos remete a “Vontade” de não ter Fé, exige um estoicismo superior ao da adesão a qualquer protectora e consoladora eclésia.
2. Gonçalo lança-nos um desafio: “A Verdade, o Bem, o Belo não apelam sempre à eternidade?” Se forem a filosofia e as ciências no seu actual estádio a responder, temo que a resposta seja negativa. Por exemplo, pelo paradigma da filosofia analítica a asserção do Gonçalo é destítuida de sentido. E não vejo que, para a ciência, conceitos maiúsculos como os que enuncia tenham assento na Academia.
3. O Gonçalo confronta-nos também com outro suposto dilema, “o do vazio repugnar intrinsecamente à humanidade”. A frase, e o Gonçalo sabe-o, não tem valor filosófico ou científico. A humanidade é uma generalização e o advérbio de modo implica uma necessidade que não é (não foi até hoje) verificável.
4. Há uma frase do Gonçalo que, até pela sua ressonância “diluviana”, me tocou: “...onde se crê ter morrido Deus, morreu também o Homem, mais não restando senão a mais inclemente das barbáries”. Discordo. Não creio existir qualquer lógica de necessidade e universalidade no famoso dito de Dostoievsky segundo o qual “Se Deus não existe tudo é permitido”. Desde Kant que a constituição de uma ética dispensa a transcendência (mas não a ideia transcendental de liberdade). A morte de Deus, se é que esse meu Velho e ardiloso amigo se finou, não desobriga o homem do imperativo da razão. Há longos anos divorciado do contacto com a filosofia, estou ainda assim convencido de que, neste passo, o imperativo categórico kantiano nos evita essa queda no abismo que o Gonçalo considera inapelável e irreversível. Sabe que mais Gonçalo, vou sacudir o pó a uns livritos esquecidos com os áridos títulos de “Crítica da Razão Prática” e “Fundamentos Metafísicos da Moral”. Palpita-me que me ajudarão a concluir que não é a ordem divina que nos obriga à moralidade, mas é a moralidade que nos indica a possibilidade de uma “vontade sagrada”.

A finalizar: se no meu “post” original louvei os que, através da fè em Deus, da beleza e da consolação da transcendência, superam a prosaica e putativa baixeza da condição humana, quero agora fazer a dévida vénia ao “homem só” que, sem outra esperança a de não ser o consolo da felicidade que decorre de olhar (e actuar) para todos os homens como seus iguais à luz da lei moral, ama “... o seu semelhante no que ele tem de único, / de insólito, de livre, de diferente...” (Jorge de Sena, “Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya”).

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domingo, 18 de novembro de 2007

Da Memória e da inépcia

Há dias, Miguel Sousa Tavares escreveu no Expresso sobre acidentes de viação. E, certeiro, lembrou a mais esquecida das causas (aliás, na sua opinião, também a mais determinante): a inépcia dos automobilistas. A pura e simples inépcia.
Li-o com a satisfação de quem ouve gritar que o rei vai nu!...
Mas, hoje, neste sempre tristíssimo Dia da Memória, silêncio absoluto. Nem uma palavra sobre tal tópico. Ou seja, para o poder político, a sempre propalada prioridade da segurança rodoviária pressupõe, sem novidade, uma realidade de condutores incumpridores, abusadores, descuidados, mas sem mácula em matéria de perícia. O discurso vai, pois, no sentido de incutir responsabilidade e disciplina aos 'aceleras', mas sem que passe pela cabeça iluminada de qualquer ministro a prévia necessidade de ensinar grande parte deles a conduzir.
Ora, a simples observação ensina que, nesse particular, tudo ou quase tudo deveria ser reequacionado. A emissão das licenças de condução e o ensino que a antecede. As regras sancionatórias e a sua aplicação, apostadas em cadastrar infracções sem consequências em vez de privilegiar a ponderação dos danos causados. Depois, e não menos, a prática da renovação das ditas licenças de condução.
Neste Dia da Memória, deixo o meu contributo para uma discussão que temo não ocorra nunca. Mas deixo-o, apesar disso.
No universo de condutores ineptos, alguns são mais obviamente ineptos do que outros. Ou, indo ao ponto, alguns são até mais previsivelmente ineptos do que outros. Penso nos automobilistas mais velhos, a quem, pela própria natureza das coisas, vão falhando, a visão, a audição, os reflexos, a rapidez de reacção, a acuidade física. Quem os defende? E quem nos defende deles?
Pela primeira vez na história, temos um problema de segurança pública relacionado com a condução dos mais velhos. Hoje, neste início de século, homens e mulheres nascidos na década de 1920 vão dobrando os 80 anos. Os nascidos em 1930 vão caminhando pelos seus 70 anos... Ou seja, começamos a ter, na estrada, inúmeros automobilistas com mais de 65 anos - gente que atingiu a vida adulta num tempo em que a condução se massificava e que, hoje, felizmente, graças à evolução das condições sociais, se mantém bem e activa até tarde.
Aliás, a questão relevante é, precisamente, esta - porque estão bem e activos, julgam que podem fazer a vida que faziam aos 40 ou aos 50... Nomeadamente, guiar para aqui e para acolá.
Para tanto, contam com a mais absoluta complacência da Administração Pública e, claro está, dos médicos. Uma consulta sumária - quando existe, porque há casos em que, por mais uma dúzia de euros, as agências de documentação asseguram também isso - é o que basta: vê bem, não vê?, ouve bem, não ouve?, sente-se bem, não sente?, não tem queixas, pois não? E lá sai o atestado, que é título idóneo e suficiente para a desejada renovação da licença de condução. Simples, não é? Mas, além de simples, é também, e sobretudo, perigosíssimo!
Por mim, deixo a minha proposta. Radical, mas muito pensada. A saber:
1. A partir dos 60 anos
a) regra geral, renovação da licença de condução, de 5 em 5 anos, mediante atestado médico suportado em exames clínicos documentados, incluindo uma apreciação sobre a condição física geral do/a condutor(a) e, em especial, a confirmação da adequação dos níveis de visão, audição e acuidade às necessidades da condução.
b) excepcionalmente, por força de razões médicas ou da existência de um cadastro de acidentes e/ou de infracções graves, renovação da licença de condução, de 5 em 5 anos, mediante novo exame de condução.
2. A partir dos 70 anos
a) regra geral, renovação da licença de condução, de 2 em 2 anos, com efeitos circunscritos a um raio de 30 Km a partir da residência do/a condutor(a), mediante atestado médico suportado em exames clínicos documentados, incluindo uma apreciação sobre a sua condição física geral e, em especial, a confirmação da adequação dos níveis de visão, audição e acuidade às necessidades da condução.
b) excepcionalmente, por força de razões médicas ou da existência de um cadastro de acidentes e/ou de infracções graves, renovação da licença de condução, de 2 em 2 anos, com efeitos circunscritos a um raio de 30 Km a partir da residência do/a condutor(a), mediante novo exame de condução.
3. A partir dos 75 anos
a) regra geral, renovação anual da licença de condução, com efeitos circunscritos a um raio de 10 Km a partir da residência do/a condutor(a), mediante atestado médico suportado em exames clínicos documentados, incluindo uma apreciação sobre a sua condição física geral e, em especial, a confirmação da adequação dos níveis de visão, audição e acuidade às necessidades da condução.
b) excepcionalmente, por força de razões médicas ou da existência de um cadastro de acidentes e/ou de infracções graves, renovação anual da licença de condução, com efeitos circunscritos a um raio de 10 Km a partir da residência do/a condutor(a), mediante novo exame de condução.
4. A partir dos 80 anos, proibição absoluta da condução, caducando a respectiva licença 'ipso facto'.

Quem considerar tal regime violento, pense na alternativa. Pense no que se pretende proteger, pense naqueles que importa defender... Pense nos seus Pais. Ou, se for outra a idade, nos seus Avós... Pense na leviandade com que, hoje, são entregues aos caprichos do destino. Na ligeireza com que se lhes oferece a felicidade de mais umas voltinhas ao volante... Pense, em consciência, e responda então. Mas só então.
No Dia da Memória, vale a pena convocar a discussão. A pretexto da inépcia... Ou, por que não, a pretexto do novo diploma anunciado pelo Governo - aquele que pretende mudar a face da realidade por antecipar a data da primeira renovação para os 50 anos, dispensando-se de reformar os modelos, de questionar as práticas e de relançar a ambição.

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sábado, 17 de novembro de 2007

Portugal, o Presidente da República e o Mar


Dizia Roger Vadim, se a memória não nos atraiçoa: «Os homens têm futuro, as mulheres passado. É natural as passado casarem-se com homens com futuro». Portugal tem futuro _ pelo menos nós acreditamos que assim seja. Os nossos políticos, infelizmente, porém, não têm apenas passado, têm demasiado passado, e o actual enlace não augura nada de bom.

Hiroshi Sugimoto - 1994

O actual Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva de sua graça, entre Ministro das Finanças e Primeiro Ministro, participou e governou os destinos de Portugal por cerca de dez anos. Não se lhe conhece, durante esse período, particular preocupação, enquanto governante, da importância do Mar para Portugal. Entretanto, porém, os assuntos do Mar têm vindo a assumir crescente importância política, tanto em termos internacionais como, muito em particular, no âmbito da União Europeia, e eis o Senhor Presidente da República a convocar uma Jornadas dedicadas às Ciências e Tecnologias do Mar, aproveitando a oportunidade para, segundo os relatos da imprensa, «passar um raspanete ao Governo», como se diz na gíria, por não «ter passado ainda à acção» como, no seu entender, deveria.

Evidentemente, antes de prosseguirmos, necessário é aqui fazermos uma pequena ressalva, não tendo tido nós a possibilidade de acompanharmos, in loco, a par e passo, as ditas Jornadas e sabendo como, habitual e frequentemente, as notícias relatadas desfiguram quase por completo quanto realmente se passou, o risco de estarmos a ser injustos, adoptando como fiéis esses mesmos relatos, é elevado. Todavia, compreendendo também como o relatado se enquadra, de facto, num todo, num certo padrão e atitude desde sempre seguidos pelo actual Presidente da República, cremos muito não desvirtuarem, de facto, na sua mais essência, quanto verdadeiramente proferido terá sido. Ressalva feita, prossiga-se.

De per si, louvável iniciativa poder-se-ão considerar as sobreditas Jornadas _ afinal, sempre terão servido, entre outros aspectos, para o excelente trabalho realizado por várias instituições nacionais em várias áreas relacionadas com o Mar, desde o IPIMAR, passando pelo Porto de Sines, até aos Instituto Hidrográfico da Marinha, para dar apenas três singelos exemplos. Mas tudo o mais é melancolicamente triste, vazio, puramente retórico _ naquela pejorativa acepção que o Presidente da República, por desconhecimento atribui a toda a retórica e que afirma tanto aborrecer-lhe.

Em primeiro lugar, não cumpre ao Presidente da República, no Ordenamento Jurídico português, supervisionar os actos do governo mas à Assembleia da República. Logo depois, haverá a atender que, em termos de Defesa Nacional _ e as questões relacionadas com o Mar podendo e devem considerar-se como questões de Defesa Nacional, não sendo por acaso, com certeza, encontrarem-se sobre tutela do Ministério da Defesa _, cumpre ao Presidente da República «o dever de aconselhar, em privado, o Governo acerca da condução da política de Defesa Nacional». Em privado, sublinhe-se, não em público.

Ao Presidente da República cumpre, com certeza, de algum modo orientar os destinos da Nação mas, se formos ao «site» da Presidência da República na Internet e procurarmos o alto pensamento do Senhor presidente da República sobre as questões do Mar e indagarmos das razões que o terão conduzidos a promover as sobreditas Jornadas, com facilidade descobrimos também o quão pouco aí encontramos para além de uns decalques do Livro Verde da União Europeia para Uma Futura Política marítima Europeia, e algumas outras generalidades. De pensamento estratégico, de verdadeiro pensamento estratégico, nem uma linha. E, todavia, não deixaria de ser interessante saber o que verdadeiramente pensa o Senhor Presidente da República sobre os assuntos do Mar, admitindo que verdadeiramente pense sobre os assuntos do Mar, como admitimos que pense.

Interessante seria, afigura-se-nos, sabermos o que pensa o actual Presidente da República Portuguesa sobre o projectado Tratado Reformador e do famigerado Artigo I-13º-d que, se bem entendemos das muitas emendas realizadas em Lisboa, ainda se mantém como exarado no famigerado Tratado de Constituição Europeia.

Como igualmente interessante seria conhecermos a alta reflexão do Senhor Presidente da República Portuguesa sobre a projectada Guarda Costeira Europeia, não obstante, como é evidente, tender a começar apenas de forma mitigada e, neste momento, ser posição oficial de Portugal, afirmada em conjunto com Espanha e França (cousa curiosa, de muito espantar e digna de se ver), a de a tal considerar prematuro e inoportuno «face à existência de obstáculos de natureza jurídica no plano do Direito Internacional Marítimo». Mas não são esses constrangimentos ultrapassáveis? Sobretudo quando o nosso Direito mais e mais se subordina ao Direito Europeu? E não será de relembrar aqui o paralelismo com a velha discussão do Mare Clausum e Mare Liberum, Mar sempre Livre para quem tiver capacidade de o fazer seu?

E já agora, enquanto Comandante Supremo das Forças Armadas, com particulares atribuições no âmbito da Defesa Nacional, onde se inclui a «independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa, não menos interessante se afigura ainda ter notícia do que eventualmente pensar possa o também designado Chefe do Estado, o Senhor Presidente da República Portuguesa, Aníbal Cavaco Silva de sua graça, sobre as três interrogações que aqui exaradas deixámos já, «postes» atrás:

-Está Portugal disposto a verdadeiramente defender os seus direitos sobre o Mar que é seu?

- Está Portugal disposto a verdadeiramente afrontar, se necessário, a União Europeia nesse particular para defender os direitos que são seus?

- Tem Portugal uma verdadeira estratégia e consequente acção que justifique essa defesa?

Hiroshi Sugimoto - 1990

Louváveis, as Jornadas, já o dissemos. Mas mais louvável ainda seria o Senhor Presidente da República contribuir, de facto e verdadeiramente, para a afirmação de um verdadeiro pensamento estratégico de Portugal para o Mar. E, infelizmente, embora admitimos que por deficiente informação, facto é que, até agora, tal não vimos suceder.

A sempre a mesma melancólica situação triste de sempre: muita parra e pouca uva.

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A Notícia da Morte de Deus

A notícia da morte de Deus era, convenhamos, francamente exagerada. Hoje, a cada minuto, em cada esquina, ou Ele irrompe ou O reclamam. Provavelmente menos sexy do que o “Deus é Amor” dos anos 60, o facto é que não só Deus não morreu como Ele se multiplica em aparições, umas discreta mas socialmente solidárias, outras mais explosivamente fundamentalistas, outras ainda espiritualmente descalças e carmelitas.
Certo também é que os médicos marxistas, freudianos e afins que lhe decretaram o óbito foram objecto de processo disciplinar e expulsão da Ordem, para não falar de Nietzsche que se viu despromovido a maqueiro.
Não sei se Deus, nos anos 70, entrou em clandestinidade, nem sei se nos anos 80 requisitou licença sem vencimento. Sei que hoje a Sua actividade é transbordante. Como são ínvios e misteriosos os Seus caminhos, não é certo que sempre que reclamam a Sua presença ou levantem como estandarte a Sua intervenção, Deus (passe embora a idiossincrática ubiquidade) esteja efectivamente presente.
Mas para nós que O recusámos e recusamos, para nós que nos regulamos pela escassa razão e por um prosaico empirismo, para nós que renunciámos à eternidade pelo secular spleen do presente, essa deveria ser, a meu ver, a questão menor.
A questão maior é que, mesmo que Ele esteja de facto morto (e é até bem possível que nunca tenha nascido), Deus é o único toque de transcendência que acaricia a mente, o corpo e a delicada pele de alguns mil milhões de seres humanos.
Por favor, não invoquem a literatura, a música, ou outras sete ou oito artes, a filosofia ou a pobre sociologia. Deus é, em certas noites de festa, a única jóia que brilha no bico do desejado decote. Jóia roubada, como na letra de Carlos T que Rui Veloso canta, mas a única que retira a amada de um quotidiano alienado (ó palavra esquecida e enterrada), a única pérola que inspira o sonho para o qual nós, laicos e iluministas, não conseguimos, por mais utopias que tenhamos já ensaiado, encontrar substituto que se Lhe aproxime em transcendência e em elegância.
Ao lado do esplendor de Deus, as nossas científicas utopias geram um imaginário que, comparativamente com o apelo transcendente que dEle emana, estão como o prêt à porter para a haute couture.

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sexta-feira, 16 de novembro de 2007

O mar à deriva

Se há uma área em que se produziu, em Portugal, pensamento estratégico com qualidade e em quantidade, ela é a Politica dos Oceanos. Mas se há uma área, crucial para o futuro do país, em que tardamos a passar «das musas ao teatro» ela é também a Política dos Oceanos. Muito se produziu em termos teóricos. Quase nada se fez em termos práticos. Há toneladas de relatórios e de recomendações concretas afogadas nas profundezas dos gabinetes ministeriais. No horizonte não se vislumbram sinais da chegada do muito propalado «cluster» do mar.

São portanto bem vindos os avisos à navegação que Cavaco deixou ao Governo no início do roteiro para as ciências do mar que hoje inaugura. Se para mais não servirem, servem para que se perceba que é em Belém que mora a capacidade de pensar o país em termos estratégicos que desertou de S. Bento.

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quinta-feira, 15 de novembro de 2007

As estatísticas do horror

Se subitamente, com o whisky do desespero numa mão e um desencantado impulso no peito, dissermos aos nossos amigos, no meio duma conversa lá para o fim da noite, que o mundo está cada vez mais perigoso, ninguém em seu perfeito juízo nos desmentirá.
E, no entanto, talvez não seja verdade. Ou essa não é, pelo menos, toda a verdade das estatísticas. Num relatório do Human Security Centre (British Columbia University, Vancouver, Canada), analisando os conflitos armados no planeta em que vivemos, os números oferecem-nos alguma surpresa e pequenos sinais de esperança.
O tipo de números que vi no relatório, passe embora ser sempre horrível e deprimente, revela uma significativa quebra nos conflitos, nas mortes e na solução para as guerras. A não ser quando se indicam outras datas, os números que se seguem comparam a situação que, em cada um dos items analisados se vivia em 2002 e, depois, em 2005.


1. Os conflitos armados reduziram 15%, de 66 para 56, tendo a redução da violência na África sub-Sahariana contribuído substancialmente para essa melhoria.
2. O número de mortes em combate baixou 40%, de 22.736 para 14.085.
3. Golpes militares: Em 1963 houve 25, 10 em 2004, 3 em 2005
4. O número de refugiados, de 2003 para 2005, baixou de 34,2 para 32,1 milhões de seres humanos, o que significa uma redução de 6%.
5. Enquanto em 1989 o mundo assistia culpado a 10 genocídios, em 2005 estava em curso um único, o pavoroso genocídio no Darfur.
6. Há mais guerras a chegar ao fim por acordo negociado e não pela vitória no campo de batalha. A tendência começou em 1990 (42 conflitos terminaram por negociação; 23 por solução bélica). Entre 2000 e 2005, 17 conflitos acabaram por acordo, e só 4 por vitória militar no terreno. Único contra: os conflitos que acabaram por renegociação têm mais tendência para se reacender do que os resolvidos militarmente.
7. Diminuiu o número de conflitos intra-estatais, entre milícias, senhores da guerra ou grupos de guerrilha rivais. Sublinhe-se, ainda assim, que os factores estruturais que podem potenciar o risco desses conflitos armados (pobreza, baixo desenvolvimento, choques económicos e falta de capacidade e autoridade do estado), mantêm-se integralmente.


Mas nem todas as notícias vêm mitigar o horror das guerras com o seu cortejo variado de violência. Aumentou o terrorismo. Aumentaram as acções organizadas contra populações civis. As campanhas unilaterais de violência contra civis cresceram 55%, de 89 para 2005. Única nota paliativa: o número de vítimas que essas acções provocaram são menores, embora a incerteza que decorre da dificuldade na contagem de baixas deva ser sempre um factor a ter em conta.
Recomendo a leitura do relatório, aqui, no site do Human Security Centre que foi fundado pelos governos do Canada, Noruega, Suécia, Suíça e Reino Unido.
Estamos, certamente longe do mundo de “calma, beleza e volúpia” que o poeta Baudelaire cantava. Mas a simples possibilidade de podermos pensar (e até dizer) que talvez o mundo que estamos a criar (que a sociedade global que desenvolvemos) está menos perigoso e é mesmo menos perigoso do que o Mundo da Guerra Fria, congela por um segundo essa visão do caos que é tão fácil e popular passar em colunas de opinião de imbatível pessimismo.

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