terça-feira, 31 de julho de 2007

Pensar a ideologia do fazer

Os posts recentes do Alexandre (sobre Sarkozy, que tem defendido uma espécie de primado da acção) e do Nuno Lobo Antunes (sobre ensinar e a relação entre pensar e fazer) levam-me a esta reflexão sobre a crescente oposição entre pensar e fazer. Há hoje na Europa uma crescente ideologia do fazer. Em grande medida é uma reacção a uma percepção generalizada de que pensamos demais e agimos pouco. Que somos uma sociedade paralisada. Que o que é necessário é uma cultura da acção e um conhecimento assente no fazer.

Acontece que agir sem pensar é impensável ou nunca deu bons resultados (como lembrou Alan Filkenkraut uma das mentes mais livres e notáveis do actual espaço público francês). É verdade que França e Portugal partilham uma certa cultura da inércia (não é por acaso que em Portugal frequentemente se associa a inércia com a prudência e a acção com a inconsciência…). No entanto, a instauração de um eventual primado da acção é um absurdo gerador de equívocos. Um bom exemplo dos inúmeros equívocos que podem resultar de uma filosofia deste tipo é a crescente importância que se atribui à ciência aplicada por comparação com a ciência pura (e algumas ciências sociais). A "tese" é que a ciência aplicada é "produtiva": traduz-se em resultados concretos, produz riqueza, dá sentido à investigação e permite relacioná-la com o mundo real (em particular, com o mundo empresarial). Ao contrário a ciência pura (e frequentemente, grande parte das ciências sociais) produziriam um conhecimento abstracto, se não mesmo esotérico, e desprovido de um verdadeiro valor acrescentado para a comunidade. No entanto, sem Newton não teriam havido várias das invenções que hoje utilizamos… As ciência puras são as infra-estruturas do conhecimento: são elas que fornecem as estradas e os mapas para a ciência aplicada chegar a algum lado. Mas, acima de tudo, com as ciências sociais, produzem a massa crítica de base e formam recursos humanos. Neste sentido, e ao contrário do que por vezes se advoga, é bem provável que faça mais sentido que o Estado financie sobretudo investigação pura ou na área das ciências sociais. Na verdade, o mais natural é que a investigação aplicada, com uma hipotética tradução imediata em produtos de mercado, esteja sujeita ao juízo desse mesmo mercado e consiga o seu financiamento no mundo empresarial (o Estado poderia, quando muito, ajudar ao contacto entre estes dois mundos). Ao contrário, a investigação em ciências puras e nalgumas áreas das ciências sociais, pode ser vista como um bem público: de que todos beneficiam mas de "acesso livre" sem que possa, por essa razão, ter um valor de mercado e financiar-se neste. O financiamento pelo Estado deste tipo de ciência corresponderia assim ao financiamento de infra-estruturas públicas. Na verdade, e talvez paradoxalmente, essa devia ser a prioridade da política científica do Estado. A outra investigação deveria assentar no mercado.
É por isso que, se bem que concordando com grande parte do post anterior do Nuno Lobo Antunes, não posso, ao contrário dele, partilhar do aforismo de Bernard Shaw de que "quem sabe faz, quem não sabe ensina". Pelo contrário, a incapacidade de reflexão crítica e autónoma que o Nuno bem nota é sobretudo consequência de não se saber pensar nem ensinar a pensar. Neste sentido é, igualmente, importante não esgotar o pensamento em metafísica… (o nosso problema talvez seja sobretudo esse: a ausência de uma cultura analítica que promova um espírito mais crítico e autónomo). Há certas formas de pensamento que limitam o pensamento futuro.
A exaltação de uma ideologia do fazer contraposta à ideia de pensar apenas agravará a paralisia da nossa sociedade. A inércia portuguesa, se bem que suportada na cobardia decorrente do medo de errar, é consequência, em primeiro lugar, de não se pensar ou se pensar mal. É que a única forma de agir sem pensar é repetir…
Disclosure: este bloguista é, tradicionalmente, um homem das ciências sociais (temporariamente emprestado ao mundo "prático").

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III. É Sarkozy populista?

Porque é então chamado de populista, se tem uma ideologia bem forte e marcada? Por chamar de canalha a quem queima uma deficiente num autocarro, não por ser jovem, pobre, magrebino, mas não achando que este facto o desculpa da sordidez da sua natureza pessoal?

Populista se desagrada aos meios de comunicação social, aos jornalistas, a muitos intelectuais bem pensantes e corre o risco de desagradar ao próprio povo sem medo de excomunhão pelos intelectuais?

Vejamos então quem o chama de populista em geral. Por um lado, pessoas arrastadas pelo que se diz na comunicação social e em alguns meios intelectuais. Mas sobretudo os meios de comunicação social... e os populistas. Porquê? Porque não admitem que alguém seja de direita e tenha ideologia forte. O bem pensante apenas aceita a vitória eleitoral da direita desde que se mantenha o reino ideológico da dita esquerda. A esquerda resigna-se à perda o imperium, não à perda do sacerdotium.

Ora é por ser precisamente ideológico que Sarkozy assustou o aparelho ideológico dominante. Obriga a partilhar o sacerdotium. Daí que, como velha nobreza acossada por invasores, a velha guarda ideológica faça tudo para ao desacreditar. Nem grosseiro nem irrealista, não vejo que Sarkozy possa ser apodado de populista. O apodo vem de quem tem medo de ser destronado, não de círculo mais elevado. Uma autarca comunista francamente lúcida, lembrou que esta não era apenas uma derrota eleitoral da esquerda, mas sobretudo uma derrota ideológica. A ninguém passaria pela cabeça tal comentário quando da vitória de Chirac, que não é no entanto, um extremo esquerdista.

Saliento que usei aqui por comodidade os conceitos de esquerda e direita. Saliento igualmente que não me pronuncio se apoiaria ou não Sarkozy. É problema meu. Nem posso adivinhar se a obra será grande. Mas o que se pode afiançar é que não começa com a desculpa e a pequenez que se esperaria de um político recente. Tem a marca da grandeza, vejamos se a obra lhe faz jus. Mas já ter a marca é uma variante num grande país europeu, tendo em conta a História recente. Desde Heath, Brandt, Kohl, Schmidt entre poucos outros que não via um político de um grande país que traga tal marca de grandeza. Merkel é mais discreta, definir-se-á mais pelas obras. Seja como for é uma imensa variante em relação ao enfado a que temos sido votados nos últimos tempos. O futuro o dirá.



http://www.ezineblog.org/?p=46



Alexandre Brandão da Veiga

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segunda-feira, 30 de julho de 2007

Epretexto

A criação de um centro de resolução de litígios pelo Estado português foi louvada por uns e ridicularizada por outros. Ambos podem ter razão… mas é importante não esquecer que o virtual é hoje o principal instrumento de mudança do real.

Não me estou a referir a como os conflitos no mundo virtual podem ser sentidos como reais e necessitar de ser resolvidos como tal (aconselho a leitura de The Code and other Laws of Cyberspace de Lawrence Lessig para alguns exemplos). Estou a referir-me, neste caso, a algo diferente: a como a digitalização da nossa administração pública (incluindo a nossa administração da justiça) pode consistir no maior instrumento de reforma dessa mesma administração. Todos têm consciência de que a digitalização e desmaterialização da nossa administração pública simplifica procedimentos e facilita-nos o acesso à mesma. Mas poucos têm prestado atenção a como essa desmaterialização obriga os funcionários a adquirir novos conhecimentos e a adoptar outras práticas e competências constituindo, na prática, o instrumento mais poderoso de mudança da cultura da nossa administração. A principal vantagem dos juízes, como hoje descobrimos nos jornais, já só poderem consultar o Diário da República electronicamente não consiste na poupança dos custos da publicação em papel. O mais importante de uma medida deste tipo pode ser induzir todos os juízes a trabalhar electronicamente (usar bases de dados, escrever em computador etc.). Da mesma forma, uma das principais vantagens dos programas que permitem aos cidadãos uma relação de one-stop shop (como o empresa na hora) na relação com a administração via Internet é obrigar os diferentes serviços da administração a "integrarem-se" e comunicar entre si. Tudo isto mais do que facilitar o acesso dos cidadãos à nossa administração impõe uma mudança de cultura administrativa. O virtual pode ser um fantástico pretexto para mudar o real. A minha esperança na reforma da nossa administração é assim sobretudo uma esperança virtual!.

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II. É Sarkozy populista?

Vi muitas pessoas afirmarem que o seu discurso de vitória tinha sido um discurso que retoma os tópicos gaullistas. Não me parece. O seu discurso, muito estruturado e fortemente ideológico, faz uma síntese de reflexões que desde há décadas, mas sobretudo na última década tem vindo a ser feito quanto à legitimidade sacerdotal de um certo discurso de esquerda. Se virmos no longo prazo desde a segunda guerra mundial a esquerda governou pouco tempo, mas liderou o discurso quase sempre.
Desde o fim dos anos 70 que a tendência se tem vindo a inverter. Aqueles a quem chamam de Novos Reaccionários (personagens de esquerda entenda-se, mas que criticam as teorias libertárias de certa esquerda) começaram a dar golpadas fortes nesta primazia sacerdotal (Fienkelkraut, Bruckner, Glucksman entre outros).

O pensamento e o estudo têm vindo igualmente a antecipar a crítica à prevalência sacerdotal libertária. Antoine Compagnon, Paul Bénichou , Sirinelli , Fumaroli , Jacques Heers , Bernard Sergent , Rémi Brague , e noutro registo Jean Sévillia , muitos outros intelectuais e jornalistas têm vindo a destruir aos poucos e poucos, seja os fundamentos, seja a estrutura da prevalência sacerdotal da esquerda, do modernismo, da invenção e reinvenção permanente do passado.

O discurso de Sarkozy não foi um retorno ao Gaullismo embora tenha contacto com ele. É antes uma síntese de quem não se deixa impressionar pela religião da culpa da Europa, da primazia nobilitante e exclusiva da vítima, do multiculturalismo. A ordem França, Europa, Estados Unidos, Mediterrâneo não surge por acaso, e cada um delas tem um significado próprio que não interessa analisar aqui.

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Ainda o populismo


O populismo - que, com vantagem, deveria levar o nome de demagogia - é ainda uma forma de aristocracia ou, mais precisamente, de oligarquia.
Na verdade, ele não é mais do que uma política ou um discurso que, criando a aparência de uma preocupação com o povo, visa apenas a satisfação do interesse pessoal dos seus autores. Julgo, por isso, que a qualificação da crítica ao populismo como "aristocrática" ou "snob" ou "mesquinha" corre o risco de lançar a confusão.
A democracia - não a demagogia - não vive da mistura de elementos aristocráticos. Vive, isso sim, do princípio da representação e do étimo do mérito.
Outra conversa é a de saber se a os representantes não formaram entretanto uma classe, portadora de interesses próprios, conflituantes com o bem comum e asfixiantes do mérito.
Na denúncia do populismo, só antevejo um perigo: é de ser, ela própria, uma forma sofisticada de populismo. O socratismo é, no fundo, isso: um populismo de retórica anti-populista.

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sábado, 28 de julho de 2007

IDEIAS SIMPLES

Excelente a entrevista de de Sérgio Rodrigues a Mariano Gago. É tão difícil fazer os portugueses compreender ideias simples sobre educação.
A minha vida universitária foi muito rica de contactos e experiências, mas o que dela resta são apenas ideias simples. A primeira é de que a educação se baseia em três pilares: 1) Na existência de "role-models" que sirvam de émulo e estímulo 2) Que o mérito seja recompensado 3) Que a incúria, o desleixo e a incompetência sejam punidos na mesma medida em que o mérito é recompensado. Parágrafo ùnico destas regras:a) Que os cargos vitalícios sejam excepcionais, (curiosa a expressão portuguesa de "ocupar um lugar"...). b) Que haja direito a uma segunda oportunidade para quem falha.
Isto quanto à Educação. Quanto ao Ensino, partilho o aforismo de Bernard Shaw: "Quem sabe faz, quem não sabe ensina". Ninguém aprende a conduzir sentado ao lado do condutor, ninguém aprende a andar de bicicleta lendo o manual de instruções. Para se aprender é necessário reflectir sobre os problemas e encontrar sózinho uma solução ou caminho, e dar os trambolhões necessários, ainda que o instrutor ampare a queda e se assegure que terceiros não irão ser afectados. Compete ao professor mostrar alternativas, com a humildade do reitor de Harvard, que dizia na alocução de final do ano:"metade do que vos ensinámos é falso, só não sei qual é essa metade". No fundo, ideias simples.

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O lugar da democracia (2)

O que caracteriza algumas estruturas democráticas na Europa, apesar da permanência dos partidos ou da classe política no aparelho do Estado e nas grandes empresas do Estado, é uma grande circulação de políticos por cargos nos sucessivos Governos, na Assembleia da República, na Presidência da República, nas Autarquias ou nas Empresas Públicas. Ainda que se diga que o Estado paga mal, há muitas formas de receber indirectamente depois de exercer os tais cargos mal remunerados.

A percepção de que há um tempo limitado de passagem pelo poder leva a tentar resolver a vida, sobretudo, por quem não tem um destino pessoal, nem um caminho próprio; leva a que seja inevitável aproveitar a oportunidade que não se repetirá. Muitos advogados, engenheiros e médicos beneficiaram com a promoção que a visibilidade política confere. Mas continuaram, muitos deles a sua vida de engenheiros, advogados e médicos. A boleia foi útil mas, em muitos casos, não veio alterar as vidas que se tinham desenhado. Actualmente, tem-se a sensação que é uma tábua de salvação. Esta situação leva a que o lugar da democracia fique ainda mais ocupado, diria, mais fortificado. A ideia de causa pública é subvertida pela necessidade da causa própria.

O arrastar resignado destas constatações leva a que tudo se torne natural e, pasme-se, compreensível. O povo não se indigna. Ninguém se importa. E porquê? Primeiro, porque pensa que em situação equivalente faria o mesmo, depois, porque há um clima de anestesia geral em que as pessoas já nem percebem quanto a sua resignação lhes custa, por exemplo, os impostos, que entre os directos e os indirectos priva cada um de mais de 60% do seu salário. Não percebem que financiam o Estado perdendo capacidade individual de investir ou de poupar. E, se alguém lhes disser, encolhem os ombros porque pensam que é preciso, que é assim. Talvez, também, para além do estado de anestesia geral, haja outras razões. Uma delas é a falta de consciência de que um povo tem uma existência colectiva com afinidades comuns dirigidas ao interesse de todos. A melhor organização dessa existência colectiva é a que der melhores frutos a cada um. O que temos a sensação de ver na política é também o que temos a sensação de ver noutros ambientes. Os exemplos que vêm de cima arrastam e muita gente demite-se da sua iniciativa e da condução do seu destino a troco de comodidades: estratégias de sobrevivência. Mas o país perde com isso.

Ignora-se hoje em dia que há nos povos um universo de identidade sem o qual o indivíduo se perde irremediavelmente e com ele toda uma concepção do mundo que o faz ser indivíduo de algum todo. Perdida a noção de todo perde-se a noção de indivíduo. Esse universo, chamemos-lhe Pátria, é o limite que garante a comunhão entre os homens e a livre expressão da sua individualidade. Vive da comunhão de interesses mas também de afinidades e de relações de confiança que partem de uma mesma mundividência: uma cultura, uma moral, um direito, uma memória comum, uma identidade própria em que cada um se espelha a partir das suas diferenças. Contemporaneamente, perdeu-se esse universo, perdeu-se esse céu, o qual foi substituído por uma miragem que já se chamou internacionalismo e hoje se chama globalização. O que se perdeu foi a dimensão relacional dos homens. Agora nada os liga senão os interesses e o seu egoísmo.

É esta nova realidade que torna as pessoas indiferentes, é esta nova realidade que promove organizações de solidariedade para tudo e mais alguma coisa na tentativa de impor um discurso que obrigue os homens a um mínimo olhar para os outros. Nada imana da comunidade, tudo é imposição. E é perante esta indiferença geral que qualquer luta política é hoje em dia vista com desconfiança e facilmente anulada. No internacionalismo apátrida não há lugar para heróis. São até suspeitos.

A perda de poder por parte dos indivíduos numa democracia é uma subversão da própria democracia. A perda de capacidade económica é a perda da capacidade de investir, conduz à demissão e à passividade. Passivos, os indivíduos são joguetes de quem detém o poder. Cabe, pois, a quem disso tiver consciência, lutar contra a anestesia geral, contra a morte do indivíduo que é a morte da liberdade, contra o pensamento único que conveniências cómodas estimulam para gerar o condicionamento mental. É uma luta para dar lugar à democracia.

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sexta-feira, 27 de julho de 2007

O lugar da democracia (1)

A vida política portuguesa parece viver num impasse depressivo. Os partidos parecem esgotados. A maior parte da nova geração de políticos, até aos 55 anos, que singraram no pós 25 de Abril, são figuras públicas geradas apenas pela sua actividade partidária. Não se lhes conhece obra própria, um destino individual e, por isso, a sua disponibilidade para a política não tem o mérito de uma dedicação a uma causa com prejuízo de carreiras pessoais porque traduz apenas o seu apego àquilo de que dependem para sobreviver e para terem o reconhecimento dos outros.

Os espaços vazios são ocupados, quem deles se apropria fortifica-os e, assim, impede a sua apropriação por outros. Na política portuguesa, os partidos ocuparam o lugar da democracia e são a democracia. A democracia que temos. E a democracia que temos não se regenera se permanecer uma terra ocupada, em que ninguém, fora dos partidos políticos, nela possa entrar e nela possa participar. A dificuldade é da entrada nesse lugar ocupado.

A regeneração tem dois caminhos: regenerar os partidos ou formar novos partidos que se proponham participar na vida da democracia. O primeiro cheira a subversão e o segundo a revolução. O primeiro cheira a subversão porque supõe que quem entra nos partidos está a reconhecê-los como inevitáveis e vai utilizá-los para os fazer perdurar no regime de ocupação que eles defendem. O segundo, cheira a revolução porque supõe uma nova realidade no sistema de representação democrático libertando o espaço ocupado e reorganizando-o.

Os antídotos para qualquer um dos caminhos está implicitamente prescrito. Os partidos são estruturas hierarquicamente dirigidas onde a evolução de um novo político é acompanhada a par e passo e envolvida com compromissos e comprometimentos com a hierarquia tornando difícil alguém chegar ao topo com suficiente liberdade e independência para mudar tudo, ou simplesmente, alguma coisa. Esse elemento terá de passar um crivo dentro do partido e, depois, o crivo dos media com quem os partidos estão tacitamente sintonizados. Fora dos partidos e tirando iniciativas para-partidárias de grupos de cidadãos para causas muito específicas ou em condições muito específicas onde até agora só dissidentes partidários de vulto conseguiram afirmar-se, fora dos partidos, dizia, toda e qualquer afirmação de um grupo alternativo tem de enfrentar uma classe política que detém todos os poderes do Estado e que tem influência nos media e nos tribunais, e tem de enfrentar os media e o desfile de fazedores de opinião que existem para dizer tudo e o seu contrário com especialistas na sugestão, na deturpação, no gozo e na calúnia.

A saturação e a necessidade de mudança é resignadamente prorrogada pela sensação de que a democracia é o que estamos vivendo e a democracia não pode ser posta em causa, leia-se: os partidos. Vemos até, com espanto, colunistas sugerir que o povo não vota porque é mal agradecido e talvez devesse ser obrigado a votar para sustentar ou plebiscitar o regime da democracia que temos, a dos partidos representativos. Faz lembrar a história do sargento que trouxe um conjunto de voluntários para uma determinada acção e o general, olhando para eles, disse ao sargento: Obrigado, agora desate-os. Induz-se a ideia de que vivemos no regime final, perfeito e a nossa obrigação é sermos felizes e se possível desatados.

Mas não é. E não se percebe como poderá ser. Talvez não seja para ser, pelo menos segundo os paradigmas contemporâneos da pós-história. Já ouvi na televisão um ministro dizer, a propósito duma luta de gangs numa discoteca, que em democracia isso não deveria ter lugar. A democracia, o tal estado paradisíaco e feliz não pode, não deve, coexistir com disputas nem com confrontos violentos porque sendo um estado de perfeição não há razão nenhuma para haver mal e o mal é o mal que os homens fazem uns aos outros. Ridícula presunção. O estado perene em que, então, vivemos e a que chegámos, é garantido pelos guardiões da democracia: os partidos políticos que existem. E, dentro dos partidos políticos que existem, pelos políticos no activo que ocupam os lugares das estruturas do Estado, alternadamente, em alianças, parcerias ou coligações, com trocas e compensações, favores e reconhecimentos. Poderemos esperar outra geração de políticos? Como poderão conquistar esse espaço ocupado?

De insucesso em insucesso, espera-se agora alguma coisa dos empresários. Como se a causa pública fosse uma simples translação da causa empresarial e governar empresas fosse o mesmo que governar povos. Depois de militares e de profissionais liberais, depois de políticos amadores tornados profissionais pelas juventudes partidárias germinados em anos de militâncias nos partidos, depois de políticos voluntaristas self-made, tem-se nos empresários a oportunidade que se segue e que antecederá a profissionalização universitária do político. A profissionalização do político será o assalto final na ocupação da democracia por uma classe legitimada pelo curso superior e o doutoramento em político. A população aplaudirá, resignada. Ou anestesiada. O triangulo universidade, classe política e comunicação social é um triunvirato inexpugnável.

E, então, o que será feito da política, antiga arte de governar os povos e antiga via de procura da liberdade, da justiça e da verdade no destino dos povos?

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I. É Sarkozy populista?

Depois da desoladora mediocridade da maioria dos políticos da década 1995-2005 surgem algumas surpresas. Algumas delas bem discretas, vêm dos países do Centro e Leste europeus. Por vezes de pequenos países ocidentais. Em movimentos cuja importância ideológica se menospreza, mas que estão destronar o enfadonho, rotineiro e pouco imaginativo império bem pensante, bem como o reforço mais ou menos visível de extremos, não ideológicos, mas estratégicos (pessoas que votam nos extremos, mas igualmente em partidos moderados consoante os momentos).

Em França os dois fenómenos mais curiosos são Bayrou e Sarkozy. Na Alemanha há outro fenómeno, Merkel, que mereceria bem mais atenção. Mas fiquemos pela França.

Bayrou e Sarkozy partilham aspectos em comum. Afastados ambos da “langue de bois”, do tecnocratês, do politicamente correcto, ambos se expressam com opiniões fortes, próximas dos problemas como são sentidos pelo comum dos cidadãos. Ambos têm convicções fortes, um talvez mais cristão (Bayrou), outro mais pagão (Sarkozy), na sua visão do mundo, mas ambos fortemente europeus nas suas convicções.

Mas tendo ganho Sarkozy as eleições, fiquemo-nos por Sarkozy. Este tem sido atacado de populismo. Talvez mais ainda porque corria o risco de ganhar as eleições e mais tarde as ter ganho.

Ora já vimos que o populismo se caracteriza pela grosseria e pelo irrealismo das soluções. Mais importante que saber se ele é efectivamente populista há que ver em primeiro lugar porque é acusado de tal.

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quinta-feira, 26 de julho de 2007

O populismo contra-ataca

A análise do Alexandre é certeira. Mas acho que falta abordar uma dimensão do fenómeno populista: populista é também aquele que constantemente curto-circuita os mecanismos tradicionais de representação defendendo (explicita ou implicitamente) uma forma de governo que, desprezando a deliberação ponderada e a construção paciente de consensos próprias das democracias representativas, faz a apologia do «directismo» e da ditadura irreflectida da opinião . Nesta acepção não me parece existir, por parte de quem ataca o populismo, qualquer preconceito aristocrático nem pretensão de superioridade. O que está em causa é um sistema, não são nem os seus protagonistas concretos nem os destinatários das suas mensagens. Em rigor, qualquer um, sofisticado ou vulgar, requintado ou grosseiro, pode ser acusado de populismo.

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quarta-feira, 25 de julho de 2007

O que é o populismo?

É muito comum vermos acusar um político de populismo. Mas poucas pessoas reflectem seriamente sobre o que significa esta acusação. Porque de acusação, e mesmo de insulto, se trata.

Populismo não existe quando se pretende agradar aos povos. Toda a política seria, pelo menos numa democracia, manchada desta qualificação. Não há populismo em acréscimo quando se agrada aos povos. Todos os partidos maioritários seriam assim os mais populistas.

Vejamos um pouco mais fundo. Qual a estrutura do populismo?

Se bem virmos caracteriza-se por um modo e um objecto.

O modo é aristocrático. O que acusa de populismo despreza. Sente-se na posição de detentor do sacerdotium e do imperium, ou pelo menos anuncia que lhes está próximo. Quem acusa de populismo considera que não o tem, e em cúmulo considera que lhe é superior. Socialmente o populista é o vulgar.

Mas não se trata de um estatuto aristocrático qualquer. O anti-populista legitima-se pela via espiritual. Com efeito, caracteriza o populista por ser simplista demais. Não é apenas grosseiro ou com tendência para isso. É intranscendente. Simplifica a realidade, dá-lhe soluções simples demais.

Mas o populista é igualmente caracterizado pelo objecto. O populista quer o impossível. “Soyons réalistes, exigeons l’impossible” dizia o moto do Maio de 68. Porque não foi isto considerado populista? Porque o simples facto de exigir o impossível não é condenado, ao contrário do que parece. Quando está dotado de legitimidade aristocrática passa a assumir a forma do idealismo.

O populista, tal como é descrito, tem duas personagens paralelas, que correm sempre o risco de resvalar no populismo. E uma oposta. As paralelas são o grosseiro (realista) e o idealista (aristocrático). A oposta é o homem sério. Os grosseiros são considerados desagradáveis mas úteis. Os idealistas são considerados inócuos, mas nobres. O homem sério tem as mais múltiplas vertentes, mas é o único que tem direito de cidade na política.

O problema é que a realidade não é assim tão simples. Cada um tende a ambicionar um estatuto mais aristocrático do que lhe cabe. E o que seja impossível torna-se afinal visionário muitas vezes. Quem acusa de populismo pode afinal ser apenas o snob ou um mesquinho. Ou não.

O populismo é o grande risco da democracia e não é por acaso que são os regimes democráticos que mais acusam de populismo. Os outros regimes acusam de sedição, motim, rebelião. Não é por acaso. É que o populismo é o lado negro, a caricatura da democracia. É a sua tentação e o filho de uma mesma semente. Por isso apenas são sólidas as democracias que têm uma forte componente aristocrática e realista. São os seus dois travões contra a grosseria e o aventura imponderada baseada na sondagem.

Por isso temos de ter sempre algum cuidado quando acusamos um político de populista. Podemos não estar a dizer nada de acertado sobre ele. Mas estamos de certeza a dizer algo sobre o que pensamos de nós. Que detemos a legitimidade aristocrática e que somos realistas. Umas vezes certeira análise. Mas, quando não o é, quer isso apenas dizer que temos mais pretensões do que merecemos e confundimos a nossa pequenez com o realismo.



Alexandre Brandão da Veiga

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terça-feira, 24 de julho de 2007

II. Karl Ferdinand Werner, Nascita della nobiltà. Lo sviluppo delle élite politiche in Europa, Torino, Einaudi 2000

Nenhum historiador sério põe em causa a importância da nobreza na formação da Europa. Nenhum põe em causa que esta era a classe dominante pelo menos até ao século XVIII. Ou seja, toda a preparação que leva a que a Europa seja o continente dominante no mundo a uma distância imensa em relação a todas as outras culturas ocorre sob dominação nobiliárquica.

O que se discute está alhures. Até que época vai a influência da nobreza? Estende-se até ao século XIX, até à nossa época e de que forma? Qual o efectivo contributo desta classe para a expansão europeia? Qual a continuidade familiar desta classe? Qual a continuidade institucional desta classe? Qual a origem desta classe?

O livro em causa trata apenas dos dois últimos problemas. E já não é pequena tarefa. E trata-a magistralmente, independentemente de se concordar com ele ou não. As teses vulgarmente ouvidas são muitas nas suas variantes, mas resumem-se em poucos grandes grupos. É instituição germânica, vem do fundo comum indo-europeu, tem origem romana ou é instituição absolutamente original vinda da Idade Média. A verdade estará não no meio, mas no contributo de cada uma destas teses.

A melhor analogia nesta matéria é de natureza biológica. Um osso fracturado e que foi mais tarde enxertado com tecido vindo de alhures e que cresce com a vida apenas se pode dizer que perdeu a sua identidade na medida em que cada um de nós pode dizer que é uma pessoa diversa da que era aos 5 anos. O que é verdade em certo sentido, mas é uma infinita mentira noutro. O velho tema grego da mudança abre-se aqui a todos os paradoxos, o que é sério, mas não é grave, e a todos os sofismas, o que não é sério, mas é grave.

Com um fervor quase monacal o autor vai analisando as origens da nobreza europeia para concluir pela sua continuidade institucional. E encontra a origem da nobreza sobretudo no Baixo-Império Romano. O que bem vistas as coisas é um contributo essencial para o quadro que antes desenhámos.

O essencial aqui é reconhecer que a História pode dar saltos, mas não opera cortes. Não se reinstaura o tempo. É fácil acusar alguém de substancialismo por oposição a uma visão mais funcionalista das coisas. O problema é que as visões funcionalistas padecem de vários vícios. São eficazes no curto prazo, mas funcionam em circuito fechado no longo prazo. Os funcionalismos são uma forma de puritanismo, geralmente em pena de novo-rico da ciência em cuidados pela sua legitimação epistemológica, e acabam por ser instrumento de servidão. É que só conheço liberdade real que tenha em conta a realidade. Só assentando na realidade se pode ser livre. Os grandes libertadores religiosos dão-nos sinal disso, e Cristo em primeiro lugar.

Não é por reconhecer (e todo o trabalho sério leva a este reconhecimento) que existem continuidades na Europa, e também esta de uma classe que durante mais de catorze séculos a dominou inequivocamente, que isso nos impede de ter liberdade de escolha para o futuro. A liberdade de escolha apenas é impedida por quem quer partir de ficções.
Alexandre Brandão da Veiga


http://www.comune.bologna.it/iperbole/assminsto/Sche_2000werner.htm
http://fr.wikipedia.org/wiki/Karl_Ferdinand_Werner
http://www.actufiches.ch/content.php?name=Werner&vorname=Karl+Ferdinand
http://www.aibl.fr/fr/membres/assoces/werner.html

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A fusão PSD / CDS

A ideia de fundir o PSD com o CDS/PP é uma enormidade no plano ideológico e um verdadeiro «tiro no pé» no plano táctico. Dispenso-me de comentar a questão ideológica. Não é preciso ter-se grande cultura política para se perceber que, no plano dos princípios, existe um abismo entre um partido de pendor reformista que se reclama herdeiro da social-democracia e um partido democrata-cristão e profundamente conservador como é o CDS. Arrisco-me a dizer que, nesse mesmo plano dos princípios, mais sentido faria fundir o PSD com um PS rendido à «terceira via», como é hoje indubitavelmente o PS de Sócrates.
No plano táctico a fusão seria absolutamente suicidária. Desde logo porque um PSD com vocação de poder só tem a ganhar com um posicionamento «ao centro» que só pode ser-lhe garantido pela existência de um projecto político à sua direita. Depois porque, não tenhamos medo das palavras, o CDS representa muito daquilo que a direita portuguesa tem de pior: um conservadorismo a roçar o reaccionário, um populismo «virtuoso» absolutamente exaltado e uma indisfarçável falta de apego pelos valores liberais.
Bem vistas as coisas a fusão só pode ter um beneficiário: um Paulo Portas cuja ambição é obviamente incompatível com a dimensão do táxi que dirige. Porquê alimentar esta quimera?

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segunda-feira, 23 de julho de 2007

I. Karl Ferdinand Werner, Nascita della nobiltà. Lo sviluppo delle élite politiche in Europa, Torino, Einaudi 2000

Tenho aqui de confessar a minha profunda admiração pela cultura britânica. O problema é que nem tudo é bom nos países e, em muitos, quando algo é mau, é realmente muito mau. Reparei noutro dia num artigo de uma eminente revista económica .[i] Cada frase mostra um novo sofisma, uma nova ignorância e uma nova má vontade.

Peguemos num exemplo. Não existe cultura comum europeia, porque os movimentos comuns são apenas produto da sua época. Renascença? Nada tem de comum à Europa. Bem pensado. O problema é que no século XVI não houve Renascença na Turquia, nem na Mongólia. Mas havia na Europa, e chegou até à Rússia.

Confesso que apenas me posso vergar de admiração pela Grã-bretanha que produziu Hamilton e Maxwell e Newton, Donne, Pope e Shakespeare, bem como Dickens. A que produziu Russell, Whitehead, Dawson, Toynbee, Barraclough, Cornford. A que produziu uma das obras de arte do mundo, fruto da confluência do cortesão italiano e francês com o solo britânico, o gentleman.

A Inglaterra trauliteira, quezilenta, mesquinha, de low middle class, da moradia geminada que esconde a frustração e a claustrofobia resultante de uma mau clima, de uma culinária que não se apresenta em sociedade, bairrista, parola, essa não me provoca senão fastio, condescendência e desprezo.

O problema é quando essa Inglaterra tem direito de publicação, sobretudo num jornal que sob o ponto de vista económico mostra a sua competência. Quem estica demasiado a perna raras vezes faz esparregata. Em geral dá apenas em luxação. Não deixa de ser curioso que seja este jornal que queira a Turquia na União Europeia. Desprezando a Europa, quer a Turquia por desprezo. Entusiastas do nada querem a comunhão com o nada para confirmar a sua biografia.

Mas deixemos agora o mercado do peixe, afastemos com a mão o cheiro a guelra e esqueçamos por um bocado o avental cheio de escamas. Entremos num outro mundo, em que a História é tratada por quem a sabe, quem a estudou, e quem não repete clichés mal aprendidos na escola. Em vez de obra de desprezo de baixa classe, vemos obra de amor e elevação. O ar é mais respirável, saímos da poça para entrar na cordilheira.

[i] O texto é tão absurdo que não resisto a mostrá-lo na íntegra:

The lie of the land
Mar 8th 2007
From Economist.com
Europe is united only by its contradictions

SHOULD we ban the term “Europe”? It will be much used—and misused—at the EU’s 50-year anniversary celebrations in Berlin. “Europe” is certainly not the European Union. Cities like Königsberg and Lemberg have been European for centuries (albeit not under those names). They won’t be in the EU any time soon.
Even snobs who think that the mud-and-vodka belt is inhabited by barbarians would have to admit that anything that excludes Switzerland and Norway isn’t complete. The label is meaninglessly elastic. The European Bank for Reconstruction and Development stretches to include such unlikely Europeans as Turkmenistan and Mongolia. The Organisation for Security and Cooperation in Europe has (thankfully) a strong American presence.
So “Europe” means nothing geopolitically. Nor does it make sense in internal politics. The Belarus autocracy is “un-European”? Hang on: Belarus is the historic core of the late lamented Grand Duchy of Lithuania, once the largest state in Europe, an early modern superpower that was multicultural and multi-confessional before its time. Calling Belarus “un-European” is like calling Virginia “un-American”.
If only the Belarusian regime were more “un-European”. The idea that “Europe” means deeply-rooted multiparty democracy and strong institutions is fanciful, even if you look only at the past 15 years. Try finding a common political theory that encompasses Britain, Serbia and Belgium over that period. Look back over a century, and Europe is better termed the cradle of totalitarian dictatorship and mass murder.
What about the European Convention on Human Rights: surely that embodies the European ideal? Not a bit of it. Countries outside Europe (mostly, but not only, former British colonies) uphold those ideals better than some European countries that have signed up to it.
“Europe” means equally little when it comes to economic models. It is dirigiste and free-market, flexible and calcified, low-tax and high-tax, celebrating both private property and its confiscation.
“Well, what about creativity”, the Europhiles whinge, “surely the common European tradition is the wellspring of world culture?” True: there were at some points some common trends across the continent—the Renaissance and the Enlightenment, perhaps.
Thereafter, though, such trends were not European, but products of their time. They stretched across oceans to the Americas and India and beyond. European languages such as English and Spanish, when they reached other continents, produced great literature there too.
For those who use “European” as a term of approbation, surely faraway Canada and New Zealand are much more “European” than, say, Albania. But the map doesn’t lie. Albania is between Greece and Italy, the historic hearts of everything the Europhiles count their own.
Maybe distance doesn’t matter—maybe Vladivostok is a European town on the Pacific, and Tirana is a Levantine city in the heart of Europe? Fine, but then the European argument becomes even weaker. If Europe means anything at all, it is a place on the map, stretching from the Atlantic to the beginning, middle or far end of Russia depending on your outlook and upbringing.
In short, there are too many exceptions inside the definition, and too many outsiders who share the same qualities. If “Europe” means “tolerant”, “modern” or “civilised”, then say so—and be prepared to meet many “Europeans” who are anything but.
The more you think about it, the harder it is to find any meaningful use of the words “Europe” or “European” and anyone using them is probably trying to sell you something. Be particularly alert if they are used by someone from the rich west, talking to the ex-communist east. What they mean is “we got here before you”. To which the answer—especially if you are from the lands of the Grand Duchy of Lithuania—should be: “No you didn’t”.

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sexta-feira, 20 de julho de 2007

Peles de carneiro, bolas de Berlim e regulação

Um dos últimos gritos da moda (ouvi dizer) é juntar um grupo de amigos e alugar um riad em Marrakech, de preferência no Inverno. Há uns tempos fui levado num empreendimento desses. Um riad é uma moradia no centro da cidade, no meio da zona mais popular e os que se alugam foram restaurados por corajosos empreendedores nacionais ou estrangeiros, oferecendo todos os confortos que se pode imaginar. A moda justifica-se: trata-se de passar uma temporada num meio exótico, com todas as comodidades e serventias. Aqueles que têm consciência social, a “esquerda caviar”, também se podem sentir bem, pois o restauro apurado das moradias em causa e o recebimento dos hóspedes, com todo o trabalho que envolve, tem um impacto positivo óbvio na cidade no curto prazo e, para quem quiser ver, também no longo prazo.

Para além do pátio interior, para onde dão as salas e os quartos, os riad caracterizam-se por terem agradáveis terraços, com tendas, onde se toma de manhã o pequeno-almoço e ao fim da tarde a ubíqua cerveja. Estes pátios mostram uma vista que tem como mais interessante o facto de podermos imaginar a velha cidade a funcionar, pois cada moradia restaurada está rodeada de dezenas de casas antigas onde vivem e trabalham as famílias da terra. Uma das coisas que se vê são peles de carneiro a secar (pelo menos no Inverno). Podemos então imaginar essas famílias a comprarem os animais no mercado, a trazerem-nos vivos para casa, onde são mortos e aproveitados até ao tutano e às peles. Isto vai acabar um dia. Com o desenvolvimento económico, aparecerá uma entidade que regulará estas actividades e obrigará a fazer tudo como se faz hoje em dia nas cidades europeias. O turista perde uma parte do cenário, mas seguramente haverá muita gente satisfeita, sobretudo as gerações mais novas que se devem estar tanto nas tintas para esta tradição como eu estou para a tradição de se verem perus no Campo Grande para serem comprados pelas famílias lisboetas no Natal.

Tudo isto vem a propósito de uma crónica de Vasco Pulido Valente – o meu cronista preferido e de longe – há uns tempos sobre o fim das bolas de Berlim da D. Gertrudes e a acção da entidade dos alimentos portuguesa que anda a multar a torto e a direito. Se este autor fosse marroquino podia escrever o mesmo sobre as peles de carneiro, seguramente. (Bem, não tão seguramente assim. Se o autor fosse marroquino andaria por lá a conspirar para tornar o regime mais democrático – como fez por cá há uns anos). E se o autor fosse vivo há 150 ou 120 anos, por cá, podia também escrever o mesmo contra a adopção do sistema métrico decimal e contra a obrigatoriedade de se matarem os animais em matadouros.

Estas críticas à regulação mínima são desajustadas porque não têm em consideração que há coisas que só se alteram se houver uma instituição que obrigue a que todos os agentes de um determinado mercado actuem no mesmo sentido.

Estou a recordar-me do cenário do terraço do riad e da crónica de Pulido Valente porque estou neste momento a passar férias num sítio, perto das praias alentejanas, cuja vila mais próxima não tem um único restaurante de jeito. No largo principal existem quatro restaurantes, cada um pior do que o outro do ponto de vista da higiene, da apresentação e da culinária (há sempre, claro, aquele “peixinho muito bom”…). Os donos desses restaurantes são das pessoas mais ricas da terra (sei isso) e teriam todas as condições para melhorarem o serviço. Mas não o fazem porque o mercado não gera a força suficiente para introduzir mudança. Podia pensar-se que um deles avançaria, fornecendo melhor serviço, com vista a aumentar os preços e os lucros, atraindo assim mais clientela, roubada aos concorrentes que, em consequência, teriam também de introduzir melhorias. Mas acontece que o mercado não pede isso porque não há um fluxo suficiente de forasteiros para alimentar esse passo isolado. Assim, quem avançasse para a melhoria seria prejudicado uma vez que as pessoas do local continuariam a preferir os velhos restaurantes a preços mais baixos.

A acção de uma entidade reguladora junto destes quatro restaurantes teria como principal consequência que todos eles melhorariam os serviços, mantendo os preços, devolvendo aos consumidores parte dos lucros (do “excedente”). Com o passar do tempo, o mercado seria alargado, uma vez que os lisboetas como eu passariam a frequentar os ditos restaurantes, restabelecendo-se facilmente os lucros totais. Sei que esta perspectiva é um pouco caseira ou mesmo umbilical, mas ela traduz uma fé enraizada que tenho no mercado e nas instituições que as civilizações mais avançadas foram encontrando para os regular. Portugal está a três quartos do caminho entre Marrocos e a Suiça e vamos ter de ter muita paciência para as transformações que ainda vêm aí em matéria de regulação.

Para o fim o mais difícil. A regulação só funciona se for impingida no tempo certo. Se for demasiadamente cedo não é eficaz e isso por uma razão que é de que os reguladores ainda não tiveram os sinais suficientes (do mercado) sobre a forma de agir. Dito isto, aposto que o Alentejo já aguentava uma visitinha da famigerada entidade a muitos dos seus restaurantes.

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Certeiras impertinências

Há expressões que se tornam proverbiais. Mas o que é menos notado é que muitas delas são compostas por um elemento impertinente, irrelevante.

No Velho do Restelo releva apenas o facto de ser velho, porque a sua atitude será típico de uma determinada idade da vida. Mas nada prova que seja na época de Camões, seja posteriormente os habitantes do Restelo fossem particularmente menos crentes na aventura e no risco.

Platão diz na República, pela boca de Sócrates, que dele (do que viu a luz fora da caverna) “se rirão, mas não a s servas trácias”. A referência é clássica. Conta-se que as servas trácias se tinham ruído com o facto de Tales de Mileto ter caído por estar demasiado concentrado a pensar em temas celestes. Quando Platão diz que se riem do homem que viu a luz, quer dizer que quem se rirá não terá o estatuto social das servas, mas no fundo é tão ignorante quanto elas. Se a trácia não era conhecida pelo seu grande desenvolvimento cultural, a verdade é que “trácias” aqui em nada acrescenta.

O êxito destas impertinências decorre obviamente do prestígio dos seus autores e das obras onde estão integradas. E por isso a importância ganha sabor a autoridade. A impertinência isolada seria puro disparate.

Para que uma impertinência faça sentido é preciso estar integrada numa massa tão rica dele que até o que destoa é santificado.

Ao contrário do espírito da época que idolatra a impertinência e o desconexo por si mesmo, há aqui um “apesar” de” que tem sempre de ser tido em conta. Não um “por causa de”.

Depois... Depois é certo que a obra em que estão integradas as ditas impertinências é tão rica que elas mesmas participam dessa riqueza – e para ela contribuem.

Lição a retirar: a impertinência é privilégio de génio. O cidadão comum melhor obra fará se não se arriscar além dos seus limites. Só quem incarna a pertinência a pode violar. Uma dissonância em Rostropovich pode ter charme. No vulgar tem apenas um nome: fífia. E no mesmo comum mais grave estigma: má-criação.




Alexandre Brandão da Veiga

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quinta-feira, 19 de julho de 2007

II. Chamfort, Maximes et pensées : Caractères et anecdotes, Gallimard, Paris, 1982

As luzes têm muitos lados negros. É nelas que encontramos a origem das teorias racistas, a teorização racional do esclavagismo, em nome do utilitarismo e em desprezo da noção (cristã) de pessoa. É nelas que encontramos a profunda honestidade de Kant, mas que o transformou num pau seco sem vida. É nelas em que encontramos um sentido de maledicência delicioso, que se volta a encontrar em Wilde e na Belle Epoque mas que geralmente é sinal antecipador de guerra e profundo conflito.

É aliás de desconfiar sempre que encontramos um sentido de humor corrosivo e sofisticado. A guerra está sempre próxima dessas épocas. Denuncia uma falta de vontade de viver e uma vergonha perante as verdades da vida que faz irromper todas as formas de violência. É sempre sintoma de puritanismo. De violência, portanto.

Chamfort faz parte de um dos lados mais negros do iluminismo. O humor transforma-se em amargura, o delicioso chiste tem sabor a azedo. É um autor que se lê com imenso agrado, porque é sem dúvida dotado de grande sofisticação, mas com tão grande compaixão, porque perdeu a esperança de qualquer sentido. Como Don Juan permanece na sua teimosia. Instalou-se nela. E o que aparece como sentido de revolta externamente, mais não é que um profundo horror a sair de uma rotina, um conformismo. A ópera de Mozart sobre o Don Giovanni é apenas mais uma lúcida visão do que é este respeito da rotina embrulhado numa capa de espírito de aventura e revolta, orgulho e teimosia. Um homem rígido que não se quer deixar moldar pela vida. O mito do adolescente eterno, em suma.

Chamfort não é filósofo. Nem sequer grande pensador. Mas um grande repórter da vida da sua época e dos sentimentos da sua época. Lê-lo é entrar nos salões setecentistas, ver a preparação da tormenta revolucionária, como a procura desesperada da novidade e do efeito, seja no dito, seja no acto, se pode transformar numa espiral de permanente insatisfação. Mais que as suas palavras, é pedagógico o seu testemunho. O que nos ensina não é tanto o que ele diz, mas o facto de ele ter existido. De tanto procurar o riso é corroído pela amargura.

Por isso quando encontramos pessoas que se pretendem cínicas, “realistas” (seja o que isso signifique), pragmáticas, conhecedoras da podridão humana, ser-nos-ia útil retomar Chamfort e ver que por detrás disso está apenas uma alma perdida à procura de colo. E uma triste solução de vida.


Alexandre Brandão da Veiga


http://www.priceminister.com/offer/buy/243945/Chamfort-Maximes-Et-Pensees-Caracteres-Et-Anecdotes-Livre.html
http://fr.wikiquote.org/wiki/S%C3%A9bastien-Roch_Nicolas_de_Chamfort
http://www.alapage.com/-/Fiche/Livres/2070373568/?donnee_appel=GOOGL
http://www.citationspolitiques.com/auteur.php3?id_auteur=71
http://www.kirjasto.sci.fi/chamfort.htm
http://www.psychanalyse-paris.com/Des-femmes-de-l-amour-du-mariage.html
http://www.aufildemeslectures.net/?P=c&au=397

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quarta-feira, 18 de julho de 2007

I. Chamfort, Maximes et pensées : Caractères et anecdotes, Gallimard, Paris, 1982

« On souhaite la paresse d'un méchant et le silence d'un sot. »
« Dans les grandes choses, les hommes se montrent comme il leur convient de se montrer ; dans les petites, ils se montrent comme ils sont. »
« L'importance sans mérite obtient des égards sans estime. »
« Je ne conçois pas de sagesse sans défiance. L'Écriture a dit que le commencement de la sagesse était la crainte de Dieu ; moi, je crois que c'est la crainte des hommes. »
« Il est plus facile de légaliser certaines choses que de les légitimer. »


O que aprendem as crianças? Que havia uma época em que quase tudo era negro e eis senão quando vieram as Luzes e ficou tudo iluminado. Ficaríamos quase satisfeitos com isso, não fora o homem público ainda ter esta ideia falsa e simplista a vaguear-lhe pelo encéfalo.

O problema é que a vida é bem mais complexa. O dito iluminismo tem muitos matizes. Entre a graça e a infantilidade de Voltaire, a solenidade e a profundidade humana de Diderot, a ingenuidade e a inteligência de d’Alambert, o sentido religioso e profundo de Kant ou a séria ligeireza de Mme de Genlis existem abismos de diferenças culturais, de personalidades, de estilo que não se deixam de reflectir no seu pensamento. Em certo sentido Maistre é tão filho das Luzes quanto Voltaire. Mas a corrosão de De Maistre, o grande reaccionário, é bem mais “moderna”, a tal ponto que é o mestre de Baudelaire e Nietzsche, coisa de que Voltaire não se pode arrogar.


E tudo nesta vida tem um lado sombrio. As Luzes não são excepção a isso. O espírito crítico pode tornar-se num instinto, num tique, numa obrigação, numa compulsão. Perde assim toda a sua racionalidade. A Festa da Razão durante a Revolução Francesa foi apenas mais um dos exemplos de como quem tem a palavra razão na boca muitas vezes é apenas lá que a tem.

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segunda-feira, 16 de julho de 2007

Saramago e a Ibéria


Da entrevista de Saramago ao "DN" há um ponto fulcral a reter, o de que, e cito “Não vale a pena armar-me em profeta, mas acho que acabaremos por integrar-nos”, sendo essa integração a de Portugal na grande Espanha.
Todos sabemos, e nem sequer vale uma pontinha de ironia, que Saramago é mau pagador de profecias e promessas. Se ele tivesse que avalizar todas as decepções que já deve pelos proféticos e prometidos amanhãs que cantam, não haveria euromilhões que lhe valesse!
Portugal não será uma província de Espanha, o que não quer dizer que a Ibéria seja uma utopia a descartar. Proponho uma variação menos deprimida e menos fatalista. E se, em vez da hegemonia e centralização políticas feita a partir de Madrid, a Ibéria fosse a federação de um conjunto de efectivas independências, replicando à dimensão da Península o modelo europeu?
Hoje por hoje, com a Europa e com a globalização, o nacionalismo não vale um pataco furado. Só que isso é tão válido para o nacionalismo português como para o nacionalismo espanhol. E se o investimento espanhol entrou tão suave e pacificamente em Portugal, sem precisar de pôr em causa a língua, a cultura e o sentimento de nacionalidade, não será que a lição a retirar é a de que essa é a melhor forma de expansão, fintando os anticorpos nacionalistas, sem a obrigação de grandes custos com os mecanismos coercivos que o domínio político de um território “com idiossincrasia” necessariamente implicam? Se, exemplificada por Portugal, essa é a solução, porque razão a Espanha, amenizadas algumas cicatrizes, não há de aplicar a outras regiões da Ibéria a mesma receita?! Antes de mais à dialogante Catalunha que, se alguma coisa quer ser, e ao contrário do que diz Saramago, é ser politicamente, e face à Espanha, a independência que agora só Portugal pode ostentar.
A Ibéria das autonomias já existe. Anexar Portugal a esse modelo talvez acrescente pouco à dinâmica da Península. Mas alterar o quadro das autonomias, criando uma Ibéria de nacionalidades, potenciaria as trocas culturais e económicas gerando cosmopolitismo e modernidade em vez de centralismo e ressentimento. Com uma vantagem para nós: termos contribuído com o modelo político, já que no modelo económico, da Catalunha a Castilla La Mancha, ou até à Galiza, só temos que mandá-los entrar e fazer a devida e canónica vénia.

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O que é um estúpido?

Muito haveria a dizer a propósito. Mas achei curioso ver nas “Etimologias” de Isidoro de Sevilha (X, 247, para aos mais curiosos) que estúpido é o que se espanta frequentemente. Ora, dizia o bom do Aristóteles, o espanto é o começo da filosofia.

Quem tem razão? Ambos. O estúpido espanta-se muito, com tudo e sem critério. Como em algumas doenças neurológicas segue ao tremor o estupor. Exactamente: palavra com a mesma origem. O tremendum passa a ser mera privação: afasia, apatia, abulia, os “a” privativos que houver em elenco.

O estúpido espanta-se com todas as culturas, com a riqueza de tudo, com a inteligência de todos e mesmo com a estupidez de todos. O estúpido tende a ser igualitário. Exactamente porque superou a capacidade de diferenciação. De tanto tremer de admiração com tudo e sobretudo com nada, não distinguindo o valor do desvalor, o estúpido “sta fermo”. Quando age é perigoso, e parado encontra o seu escopo.

O estúpido é em suma o exagero da vida. A sua solidez ou a sua flexibilidade andam desencontradas. Tem uma e outra nos sítios errados, no momento errado. Não erra. É um erro. Que ao estúpido seja dado direito de palavra é uma generosidade da nossa civilização. Mas que se perceba que a prenda não é conquista. E desta ele só conhece a forma da rapina.

O estúpido está exactamente no começo da filosofia e fica-se por aí. Deixado no porto das ideias grita aos barcos que passam que estes se afastam da verdade. Ou que não há verdade. Não é sedentário, mas estacionário. Que se viaje, é para ele crime de abandono. Faz por isso da feira portuária exemplo máximo da diversidade. Quer outro mundo, porque este não o dotou. Tudo para ele pode ser Europa porque para ele a ideia de limite é apenas prisão. Limitado a gozar o pôr-do-sol sempre do mesmo ponto de vista esquece-se de que há quem veja mais longe. E perceba por isso que o limite conduz, e sem ele não há viagem. Mas dessa ele nada sabe.





Alexandre Brandão da Veiga

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Fishing for compliments

O bom senso aconselha a que não se façam prognósticos antes do jogo. Na semana passada, na Visão, infringi as regras e arrisquei uns «palpites». Agora são as regras da modéstia que me aconselham a não voltar ao assunto. Mas a verdade é que, se não for eu, ninguém terá a caridade de lembrar a humanidade que este obscuro cronista acertou em toda a linha. Aqui fica a prova:

«A dois dias das eleições intercalares, a única coisa que parece certa é que «depois de Lisboa nada ficará na mesma». Desde logo nada ficará na mesma no governo do país. A menos que António Costa arranque uma maioria confortável de última hora, as eleições autárquicas na capital marcarão oficialmente o início da campanha para as legislativas de 2009. Com mais de metade da legislatura cumprida, com um alastrar dos sinais de descontentamento popular (os apupos passaram a fazer parte do dia-a-dia do Primeiro-Ministro), com um cartão amarelo em Lisboa e com uma oposição em vias de reorganização, José Sócrates estará doravante mais fixado na gestão do calendário político do que entretido nas reformas corajosas de que o país precisaria. Portugal que se dane.
Depois, nada ficará como dantes no PSD. Marques Mendes bem pode fazer circular a ideia de que não convocará directas antecipadas no partido. Mas num momento em que a dúvida é apenas a da dimensão da catástrofe, ninguém pode acreditar que o ainda líder conseguirá passar entre os pingos da chuva (talvez Paula Teixeira da Cruz lhe pudesse ensinar qualquer coisa na matéria). Até porque é precisamente Marques Mendes o único que tem alguma coisa a ganhar com a antecipação do ciclo político no PSD. Não só porque Menezes não quererá ficar com o ónus de abrir as hostilidades mas sobretudo porque a anunciada «terceira via» (agora devidamente ungida por Manuel Ferreira Leite) não tem nada a ganhar com o desgaste inerente a uma oposição demasiado prolongada ao governo socialista. Apetece recorrer à célebre metáfora futebolística: Mendes está à beira do abismo e, não obstante as afirmações em sentido contrário, sabe que o melhor que tem a fazer é mesmo dar um passo em frente.
Já o CDS/PP terá a sua primeira prova de fogo depois do mais recente «putsch» de Paulo Portas. Pode ser que seja a última. Pode ser que os cidadãos de Lisboa (e os do país em geral) tenham definitivamente perdido a paciência para as constantes refundações ideológicas do CDS e para as dramáticas piruetas do seu líder que já jurou fidelidade a tudo e ao seu contrário. Pode bem ser que Telmo Correia arrecade um resultado humilhante e que Lisboa venha a ser o Waterloo que marca o fim dos «cem dias» de Portas. Seria, sem dúvida, um resultado higiénico para a democracia.
O BE, mau grado o estilo histriónico de Sá Fernandes, só dificilmente não descobrirá que atingiu o patamar máximo da sua evolução e da sua capacidade de influência. Podem enganar-se muitos durante pouco tempo, podem enganar-se poucos durante muito tempo, não se podem é enganar todos durante todo o tempo. O lobo com pele de cordeiro da política portuguesa tem o disfarce puído e já não consegue esconder as garras.
Finalmente, nada ficará como dantes no sistema político português. As intercalares de 2007 marcarão o início da hora dos independentes. Qualquer que seja o resultado da contenda privada entre Carmona e Negrão, é pouco provável que as candidaturas independentes não alcancem, no seu conjunto, um resultado expressivo e histórico (acima dos 20%). Qualquer dos candidatos tem o potencial agregador dos votos dos descontentes com o sistema. A retórica populista está lá, o estilo vitimizado ou «passionário» também e a política autárquica «bateu no fundo» com a crise de Lisboa. Não é preciso mais para que o país assista ao maior terramoto político desde o fenómeno PRD. Ficará doravante provado que é possível fazer política fora dos partidos. O momento tem tanto de promissor como de perigoso. Tudo dependerá dos intérpretes.»

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sábado, 14 de julho de 2007

O mais belo dos livros


52 crónicas, 50 filmes, um prefácio e um posfácio. É quanto basta para fazer «o mais belo dos livros». Cinema em letra impressa. Como só Bénard da Costa sabe projectar. Absolutamente imperdível.

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sexta-feira, 13 de julho de 2007

Teorias da conspiração?

A ideia de convidar o Dr. José Miguel Júdice para coordenar a zona ribeirinha de Lisboa é bizarra a vários títulos:
- Porque são conhecidos os interesses do advogado na hotelaria pelo que o convite soa a «raposa no galinheiro»
- Porque, ao contrário, não se lhe conhece um currículo de gestor
- Porque o advogado, ex-PSD, se converteu misteriosa e recentemente aos encantos de António Costa
- Porque o convite foi anunciado pelo convidado e não pelo convidante
- Porque o foi a meio da campanha para a CML
Pode ser que eu esteja acometido de uma febre esquerdista que me faz delirar com teorias da conspiração, mas que isto cheira mal, cheira...

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quinta-feira, 12 de julho de 2007

IV. O discurso de Ratisbona

É facto curioso que há quem invoque a Turquia é herdeira da cultura bizantina e por isso é um país europeu. Dupla confusão. Em primeiro lugar porque Bizâncio não é a Europa. Mas mais gritante neste caso concreto o facto de o turco se sentir ofendido por ser citada a cultura bizantina. Com efeito, esta foi durante os oito séculos de convívio com o Islão profundamente anti-muçulmana. E retiradas a alianças políticas e talvez em parte alguma genealogia das iconoclastias (questão muito discutida, entenda-se) poucas sociedades foram mais virulentamente anti-muçulmanas quanto Bizâncio. Os opositores ao discurso de Ratisbona são contra a herança bizantina e em geral ortodoxa, o que se vê pela sua russofobia endémica.

Esta dissecação da rã, os opositores do discurso de Bento XVI, permite-nos ver quais são as suas características morfológicas principais:
1) Ignora a cultura grega mas está disposto a odiá-la nos seus traços essenciais;
2) É opositora a Galileu, à livre expressão e ao livre ensino, que querer ver vergado por razões políticas;
3) Está contra a separação entre igreja e Estado, e bem pelo contrário quer a dominação desta pelo político deixando que o religioso domine o político no mundo islâmico;
4) Acha os muçulmanos um conjunto de exaltados;
5) É contra a cultura ortodoxa, seja ela bizantina ou eslava;
6) E em suma acha que só a ignorância funda a autoridade.

As conclusões parecem ser meramente lógicas. Mas para quem usa “meramente” junto com a “lógica” já diz muito sobre o estado da sua razão. Seja como for, basta ver que o comportamento da rã em questão é consistente com esta descrição. Observemo-la no dia a dia e veremos como o que digo é relevante.

Já a dissecámos e deixemo-la em paz por isso. Ela que vá para o pântano julgar-se alvo da cobiça de algum Zeus. Mas de Plateia falarei numa outra ocasião.






Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 11 de julho de 2007

O Público passa-se...

O Público, tal como os outros jornais de referência, é liderado e influenciado parcialmente por uma classe de jornalistas que entrou para os media depois de 1974, proveniente dos movimentos de extrema esquerda que, nessa altura, tomaram as redacções. Essas pessoas evoluíram. Tornaram-se moderadas à medida que amadureceram e foram assumindo chefias delegadas e já não arrematadas. Tudo a favor. Alguns destes jornalistas deixaram-se mesmo aburguesar sentindo as vantagens das coisas e do compromisso. Mas, como recuerdo da pureza original, mantiveram um reduto de revolta pronto a accionar vibrantemente cada vez que duas ou três matérias são questionadas. A liberdade de imprensa, quando condicionada por uma tutela, é uma delas. Tudo a favor, de novo. O problema é que o mesmo escrúpulo que os leva a reagir tão energicamente - e bem - quando há ataques à liberdade de imprensa - fazendo reviver os melhores anos de combate revolucionário - nem sempre é aplicado quando estão em causa outros atentados à independência do jornalismo. Isto é: ninguém de fora pode afectar a liberdade dos jornais mas estes, internamente, podem formatá-la por vezes sem a cumprirem. Aqui entra a guerra das virtudes: as comissões de regulação pensam que têm autoridade moral sobre o trabalho dos jornalistas porque «são independentes» dos interesses a que a escrita se refere; os jornais pensam que ninguém é mais independente do que eles e que qualquer juri representa o regresso da mordaça do fachismo. Ambos são falíveis, como todos nós. E ambos devem competir neste campeonato de imparcialidades. Todos temos a ganhar. Podemos talvez é dispensar o alarido e evitar nas primeiras páginas este corporativismo mental que parece usar o melhor espaço em proveito próprio.

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III. O discurso de Ratisbona

Continuemos.

Que argumentos invocaram? O de que o papa tem relevância política e que por isso deve conter o seu discurso.

Esta argumentação está exactamente no mesmo plano da que foi invocada em relação a Galileu. Assim como em relação a este uma escolástica tardia (saliento, tardia) invocou argumentos teológicos que nunca sequer foram unânimes na própria escolástica, da mesma maneira se disse que o papa tinha um programa anti-islâmico mais ou menos escondido. Mas o pano de fundo da oposição a Galileu, que de resto quase toda a sua vida foi apoiado pelo papa, era político. Não era altura, em plena Reforma protestante, para abalar a fachada (não os alicerces, entenda-se) de um determinado edifício secular. Da mesma maneira o que se objecta em relação ao papa não é intelectual nem espiritual como pano de fundo, mas político.

Ora a livre discussão intelectual deveria ser livre de considerações políticas. Os opositores do papa são os modernos inquisidores que pretendem levar até às aulas considerandos políticos. Descendentes plebeus de Metternich, dos opositores protestantes e católicos a Darwin, são reaccionários e detestam a livre discussão pela livre discussão. São no fundo opositores à liberdade de pensamento.

Se bem virmos, por outro lado, a argumentação dos opositores era a de que o discurso poderia exaltar os muçulmanos. Seja. Percebe-se a imagem que têm dos muçulmanos. Acham-nos um conjunto de exaltados.

São os mesmos que propalam a separação entre a igreja e o Estado. Os laicos, conceito cristão, se o há. No entanto, estão dispostos a intervir na vida da igreja por razões políticas. Ou seja, não são favoráveis a uma separação, mas a um domínio da religião e da discussão intelectual pela política.
E não apenas domínio, ou um domínio qualquer, há um programa bem mais concreto. Nunca mandaram calar o orador do Londonistão, e muito menos o grande Mufti turco. É a igreja católica que mandam calar. O programa é o de calar a igreja católica para deixar livre curso à espontaneidade islâmica. Ou seja, o seu programa é de submissão, de contenção de uma cultura em favor de outra.

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O que se passa com o Público?

Faço quase todos os dias um esforço por comprar o jornal. Muitas vezes só dá para uma leitura de 5 minutos e por isso dou por mim a pensar que é um desperdício de papel. Mas como acredito que a qualidade só será aumentada pelo mercado, isto é, com maiores vendas, lá faço o meu gesto diário de escuteiro. Acontece que às vezes não percebo o que vem lá escrito e as campanhas que lá se desenvolvem. Esta última, contra uma comissão de regulação, então, é para mim verdadeiramente enigmática. Confesso que também não tive paciência para a ler. Alguém ajuda a explicar o que se passa? Mesmo que a tal entidade esteja a funcionar muito mal - o que é quase certo, atendendo a que são jornalistas a controlar jornalistas - justifica-se esta campanha por um jornal que tem de ser de referência? Se querem aumentar o mercado e daí seguir para a almejada melhor qualidade, talvez seja de falarem com uma empresa de comunicação...

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terça-feira, 10 de julho de 2007

II. O discurso de Ratisbona

Vejamos agora o que disseram os seus detractores. Para isso temos de os dissecar como se fazia com as rãs em laboratório liceal.

A crítica foi teológica? Terá sido o papa acusado de helenomania ou de um marcionismo mitigado? Essa seria realmente uma crítica teológica impreparada, de mero principiante, perante a qual um grande teólogo como Ratzinger sorriria, já conhecendo bem as objecções possíveis e as respostas a elas. Mas seria ao menos uma crítica teológica.

Foi a crítica intelectual ao menos? De todo. Não se levantou ninguém a afirmar uma suposta contradição radical entre o “logos” grego e o cristianismo. Também isto faria sorrir um teólogo experimentado como Ratzinger, mas seria crítica intelectual ao menos.

A cultura grega concebeu o “logos” em tensão. Em termos simples, de um lado a filosofia do outro a retórica. Antagonismo longo, muitas vezes em luta, por vezes artificial. A luta entre “sofia” e “paideia” esqueceu muitas vezes que uma e outra se interligam, e seria tão tonto opor a poesia à linguística numa visão exclusiva como opor a filosofia à cultura. O no «princípio era o “logos”» joanino vai além desta oposição.

A filosofia grega por outro lado, e isto desde Platão, mas de forma mais clara desde Aristóteles, e sempre seguida até ao neoplatonismo, concebeu sempre a filosofia primeira como teológica e ontológica. O primeiro adjectivo é conhecido já de Platão e Aristóteles e não carecia de explanação. O segundo não foi usado por nenhum deles, mas ambos perceberam que teria de ser a sua grande preocupação. A filosofia primeira como teológica e ontológica não é uma criação daqueles adoráveis “medievais” que influenciados pelo cristianismo teriam visto limitado o seu horizonte. É uma marca grega da nossa cultura.

A crítica ao papa é feita contra uma reflexão sobre a cultura helénica por quem nunca se deparou com um aoristo ou com a declinação dos artigos. A destrinça filosófica entre o “on” e o “hen” nunca foi aprendida. Por quem ouviu pela primeira, ou, na melhor das hipóteses, pela segunda vez, o nome de Paleólogo. O espectáculo que dá é o de quem critica a equação de Dirac porque tem letras a mais. Em suma criticou-o quem não sabe do que fala.

Os que na Constituição europeia estavam perfeitamente confortáveis com a herança grega, mas recusavam liminarmente qualquer referência ao cristianismo não eram apenas opositores ao cristianismo. Eram opositores à factualidade porque o cristianismo é um facto histórico, e não Deus. Mas sendo os mesmos que criticaram o discurso de Ratisbona vê-se afinal que eram opositores ao fundo da cultura grega. Não se importavam com um folclore aprendido no ensino secundário (tudo é secundário neles, afinal) sobre discursos de Péricles e a democracia grega, que é apenas uma gota no oceano da cultura grega. Mas no fundo são opositores à herança grega profunda na cultura europeia.

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segunda-feira, 9 de julho de 2007

Rebelião na Igreja?

Amanhã - terça-feira,10 de Julho - será verdade, ou não, o que hoje se lê no Público: «Bispos muito zangados com Governo».
A Comissão Permanente da Conferência Episcopal, reunida em Fátima, fará sair uma nota sobre o sério descontentamento da Igreja com a equipe e o espírito José Sócrates em relação a diversas áreas como a acção social, as capelanias, a educação, a comunicação social ou a aplicação da nova Concordata. Sobre todas elas houve pedidos de audiência, sempre ignorados. Dois ou três telefonemas confirmam-me a gravidade da insatisfação da hierarquia da Igreja Católica mas temo que a manchete na primeira página: «Bispos reunem-se em Fátima para endurecer críticas ao Governo» possa infligir uma certa prudência nas palavras da nota de amanhã do núcleo duro do episcopado.
Parece-me evidente que os termos da notícia deste jornal prestigiado condicionam o desfecho da reunião dos prelados. A primeira preocupação dos bispos será agora a de dizer que não se reuniram para interpelar o Governo mas apenas porque estava previsto e como estava pensado. Para o demonstrar, a nota será rodeada de pontos inadiáveis e nem sempre coincidentes com os da notícia. Terá finalmente um tom mais evangélico do que reivindicativo que «desvirtua o verdadeiro» sentimento da Igreja em relação à actuação do Governo.
Em 37 anos de Democracia - alguns dedicados à escrita sobre religiões - não me lembro de ter lido nas páginas da imprensa de referência sobre um desencontro tão radical entre o que é de Deus e o que é de César. O cerco do Patriarcado no PREC, a nova Lei da Liberdade Religiosa com Vera Jardim, o 1º Referendo ao Aborto, com Guterres, ou a revisão da Concordata com Durão Barroso não transmitiram a definição do cisma que hoje se anuncia e amanhã será previsivelmente amenizado.
Nem a duríssima denúncia de D. Manuel Martins sobre a fome em Setúbal durante o Bloco Central (1983-85) se deteve sobre intenções menores do Governo mas antes no apelo esperançoso de medidas concretas sobre aquela realidade dramática (que aliás seria atendido por Mário Soares). Lembro ainda a solicitude com que Fernando Nogueira se reunia no Patriarcado com o Cardeal Ribeiro para programar a construção de novas igrejas que integrassem social e espiritualmente o êxodo rural nas periferias das áreas metropolitanas. Recordo o cuidado que o PS de Guterres aplicou na distribuição proporcional dos tempos de antena de informação religiosa na RTP 2. E não esqueço o esmero com que João Soares tratou a transladação do Papa João XXI de trás de uma porta em Palermo para um dos altares laterais dessa Catedral italiana (é claro que permitiria igualmente a construção dos dois maiores bairros de Lisboa - Alto do Lumiar e Expo - sem a área para o culto que o PDM obriga a par dos espaços escolar, verde, comercial e desportivo).
É claro que a jacobiníssima preocupação de eliminar o lugar dos prelados nas cerimónias protocolares ou de equiparar os bispos aos militantes da defesa dos animais terá chamado a atenção de quem, há séculos, colmata as enormes falhas do Estado na protecção de velhos, crianças, doentes, desvalidos, deficientes ou toxicodependentes com «zelo incansável e espírito fervoroso» segundo S.Paulo. O mesmo se diga da absoluta secundarização da educação religiosa nos curriculae e da constante supremacia do IPPAR e dos megafones turísticos sobre os edifícios com culto.
Ao longo das curtas décadas da Democracia, as situações de atenção e descontentamento entre o Poder Político e a hierarquia da Igreja Católica portuguesa multiplicaram-se de forma irregular mas equilibrada num País que se define (no senso) por ter 94% de católicos; com uma frequência dominical que varia entre os 48% em Braga e os 6% em Beja (inquérito da Igreja); que aprova o aborto, facilita o divórcio e, maioritariamente, requer os serviços da Igreja apenas em quatro «rituais»: o Baptismo, a 1ª Comunhão, o Casamento e o Enterro (estudos de Borges de Pinho).
Estou atenta e curiosa sobre a nota dos bispos de amanhã. Servirão os «servos dos servos» a prudência de sempre na relação com o Poder Político desdizendo as suas razões hoje visíveis no Público? Ou falarão claro para que todos se entendam?

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I. O discurso de Ratisbona


Pode parecer capricho meu mas penso que o ar fica mais cristalino quando assenta a poeira e que só se pode enunciar uma demonstração quando cessa a vozearia. Agora que a poeira assentou e o marchante se cansou de opinar já poderei dizer alguma coisa sobre o discurso de Ratisbona.

Que disse o papa? É temerário sintetizar o que já por si é uma síntese de uma vida de profundo estudo, mas eis que aqui arrisco. Afirmou basicamente que a ligação entre cristianismo e helenismo não era ocorrencial, não era um mero incidente histórico, um acaso sobrevindo em mero desvio. A tese é ousada e tem profundas implicações teológicas, históricas e filosóficas. A cultura onde se dá a Incarnação, o judaísmo, não é mero acaso, já se sabia, é doutrina ortodoxa expressa desde há mais de dezoito séculos contra o marcionismo, nomeadamente. A cultura onde ela se expressa, o grego, é dada como assente. Que tenha um significado teológico, essa já é outra questão.

A tese defendida pelo papa Bento XVI não tem apenas implicações em teologia fundamental. Tem igualmente implicações pastorais sérias. Quando o catolicismo se expande fortemente na Ásia e em África, zonas de aculturação europeia relativamente menor, o discurso de Ratisbona estabelece limites à aculturação. E esses limites são o do “logos” grego. Questão também antiga esta, que foi particularmente acesa durante a polémica seiscentista e setecentista do rito chinês jesuíta.

Nada do que foi dito nesse discurso está lá em vão. Trata-se de uma aula dada por um homem de cultura superior. Cada frase, por mais inocente que pareça, resulta da reflexão de uma vida, de estudo profundo, de dialéctica sólida.

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domingo, 8 de julho de 2007

Do Tamanho dos Peixes e das Lagoas

Quando o meu irmão João deixou os EUA, uma amiga americana, disse-me, com alguma perfídia: "preferiu ser um peixe grande numa lagoa pequena, a ser um peixe pequeno numa lagoa grande". Digo com maldade, porque é minha convicção profunda, que do ponto de vista profissional, (e ela sabia-o), seria sempre um peixe grande, admitindo, contudo, que o seu impacto na sociedade americana fosse menos notado. Este é o dilema de muitos de nós, "estrangeirados". A inteligência traz, consigo, uma obrigação ética. A questão é onde fazê-la florescer, criar, produzir, colhendo, em simultâneo, os benefícios materiais e de reconhecimento da sua utilidade e originalidade. "Fazes cá falta", diziam-me alguns dos meus amigos mais benévolos. No entanto, eu sabia que o terreno onde poderiam crescer, no seu máximo potencial, algumas das minhas qualidades, se as tivesse, não era em Portugal. Se a migalha da minha existência, poderia ter o impacto de um grão de areia no praia do mundo, era nos EUA.Permanece, contudo, em todos nós, a noção patriótica de estarmos ao serviço da Terra que guarda a nossa memória, sabendo, porém, que jogando no clube da vila, as nossas exibições ficarão aquém do que poderíamos obter se jogassemos nas grandes equipas. E porque não somos nós uma grande equipa? Sobretudo por factores psico-culturais. É certo que temos a presidência da União Europeia, mas não foi conquistada, é por rotatividade, "calhou-nos a nós", e tendo a "bola" na mão, a nossa grande inquietação é não fazer má figura, ficando secretamente aliviados quando a passarmos a outrem. E no entanto...no entanto, não tinha de ser assim. Voltar a Portugal é uma "lose-win situation", permanecer no estrangeiro é uma "win-lose situation". A forma que antevejo de ganhar pelos dois lados é acreditar que poderemos fomentar uma mudança cultural que vai para além da nossa "expertise" técnica, e que estimule os nossos filhos ao atrevimento da diferença, e que é deles o mundo, porque assim acreditamos.

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sexta-feira, 6 de julho de 2007

O gratuito

Um padre europeu, missionário na China, e nosso contemporâneo, explicou como era difícil transmitir aos chineses a ideia de gratuito. As palavras que o chinês tem para a coisa significam pechisbeque, de má qualidade, sem valor. Por isso explicar que o amor de Deus é gratuito se torna um quebra-cabeças na China. Embora isto não impeça que hoje em dia cresçam as conversões ao cristianismo na China.

Tem no entanto de se reconhecer que é embaraçoso dizer em chinês algo como “dom gratuito de Deus” para falar da experiência de Cristo quando isso tem a ressonância de “dom sem valor”, ou que o amor de Deus é gratuito, ou seja, pechisbeque.

Na cultura europeia as palavras associadas ao gratuito são no entanto cheias de conotações positivas. “Doros” e “karis” são dádivas oferecidas aos deuses, e dão palavras nobres como Teodoro e carisma. Nome de imperador e de qualidade positiva. Nas línguas latinas “datus”, “gratia” são palavras com ressonância religiosa e imperial. Adeodato é nome aristocrático (como Teodoro, o seu correlato grego), e a graça é prerrogativa imperial. A graça é o que está para além do Direito, um traço de privilégio divino do imperador. A graça é qualidade do elegante, do que tem beleza.

É evidente que nada existe sem o risco da ambiguidade. Timeo graecos dona ferentes. Os presentes podem ser envenenados. Gift em inglês é presente, mas veneno em alemão. Os nossos antepassados não eram ingénuos. Sabem que o que é dado gratuitamente nos pode suscitar cautela. Quando a esmola é grande o pobre desconfia. Mas como tudo o que é superior nos suscita reserva. Seja vindo dos deuses, seja dos imperadores. A dádiva gera sempre uma ligação e tem consequências. Essa ligação e essas consequências podem comprometer-nos.

Mas o que não deixa de ser verdade é que a dádiva gratuita tem estatuto de nobreza no espaço europeu que não se encontra no mesmo grau noutras culturas. Mesmo o zakat muçulmano tem origem notoriamente cristã, e nesse aspecto não foge à regra.

No mundo em que vivemos, o lugar comum é o de que as coisas todas se encontram comercializadas. Tudo pode ser objecto de comércio. A segunda é verdadeira talvez. Não a primeira. A Internet é bom exemplo disso. Nunca tanta informação foi distribuída de forma gratuita. Os donativos e o evergetismo seja com os tsunamis, seja com actividades sociais e religiosas, são parte substantiva da actividade social e económica dos nossos dias.

Esta necessidade do gratuito pode ser vista em muitas perspectivas. É evidente que muitas vezes tem motivações comerciais e económicas, outras políticas. Não sejamos ingénuos. Mas seria empobrecedor ver apenas essas motivações. Existe uma misteriosa necessidade no ser humano que é a de dar. Numa época que se vê como lúcida apenas quando encontra o motivo torpe, rasteiro, seja ele primevo ou económico, esta necessidade tem de ser reduzida ao instinto, à necessidade de poder, de negociação ou económica.

Uma sociedade talvez mais lúcida encontraria nesta necessidade algo do centro do ser humano. A atitude ética de uma classe inteira foi feita com base nesta força: a nobreza. Uma religião inteira tem aí o seu centro: o cristianismo. Parecem-me mais lúcidas que a visão mercantil. Porque só se vê a necessidade de descartar sistematicamente como ingénuo e secundário (contradição se a há) o que tem efectivo poder. O actual paradigma de lucidez é a do feirante e a do merceeiro. E quando vemos alguém apelar ao seu realismo temos sempre de nos precaver não vá o cheiro da chita ou da cebola invadir-nos.



Alexandre Brandão da Veiga

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quarta-feira, 4 de julho de 2007

Separar o trigo do joio

Não posso, como imaginam, deixar passar o post do Nuno Lobo Antunes sem resposta. Mas não se pense que estou em desacordo com o essencial do que diz. É inteiramente verdade que, regra geral, a qualidade do jornalismo que se pratica em Portugal é fraca. E é fraca por várias razões.
Desde logo porque na vertigem da criação de novos cursos para tudo e mais alguma coisa, algumas almas caridosas «inventaram» cursos de jornalismo e de comunicação social que na prática só tem servido para dispensar os jornalistas de frequentar licenciaturas «sérias». Tempos existiram em que os jornalistas estudavam história ou filosofia e em que aprendiam o essencial da técnica jornalística (porque é de uma simples técnica que se trata) com «as mãos na massa» e devidamente enquadrados por colegas mais velhos e experientes.
Depois porque é mais barato e mais fácil investir em «jornalismo light», em «features» superficiais sobre «famosos», em crimes ou em acidentes de viação (tudo matérias que se podem fazer com os tais jovens jornalistas analfabetos que saem da maioria dos cursos de comunicação social e que inundam muitas das publicações ditas de referência) do que em trabalhos profundos ou de investigação que exigem tempo, especializações e recursos de outro calibre. Já para não falar nos «fact checkers» que menciona o Pedro Lains ou na «Intelligence Unit» do «The Economist».
Finalmente porque vivemos num país pobre, pequeno, com níveis de literacia muito baixos e hábitos de leitura ridículos que é um convite permanente a todo o tipo de cedências e de abaixamento de padrões.
Dito isto, começo a divergir do Nuno Lobo Antunes quando afirma que não há jornais (ou, num sentido mais lato, projectos editoriais) de referência em Portugal. E sustento esta tese com algumas perguntas simples (que não podem deixar de ser lidas à luz da minha evidente parcialidade na matéria):
- Qual foi o mais influente jornal (não clandestino) verdadeiramente independente e crítico do regime publicado em Portugal antes do 25 de Abril?
- Qual foi o jornal a que melhor simbolizou a resistência contra a avassaladora maré comunista nos anos gloriosos do PREC?
- Qual foi o jornal mais crítico do governo Balsemão?
- Qual foi o jornal que, ao fim de trinta anos de liderança instalada, soube precisamente reconhecer que começava a trilhar caminhos incompatíveis com a sua matriz original de qualidade e seriedade jornalística e ousou fazer a maior transformação da sua história com todos os riscos inerentes a uma «revolução» deste tipo?
- Que grupo privado ousou estar na linha da frente da televisão privada em Portugal?
- E que canal «revolucionou» a forma de se fazer informação televisiva num Portugal resignado ao estilo estatizado e oficioso que então tinha a RTP?
- E quem ousou lançar-se na aventura de uma canal de informação 24/24 com investimentos avultados num momento em que nenhum grupo privado «arriscava» produzir em Portugal para um mercado de cabo ainda incipiente?
- Mais relevante ainda: quantos países existem no Mundo em que o jornal líder é um jornal de referência e o canal mais visto no cabo é um canal de informação?
Não há, em Portugal como no Mundo, jornais nem projectos sem imperfeições.Não há exemplos de jornalismo impoluto. Mas ignorar estes e outros factos, ignorar que existem também bons exemplos (que como é óbvio existem também fora do grupo onde trabalho), não é apenas fazer uma análise errada do panorama português. É contribuir para a mediocridade geral. Porque afinal de contas que incentivo pode existir para se fazer melhor se cada um de nós (e particularmente aqueles de nós com mais sentido crítico e logo com mais responsabilidade) nada fizer para, em consciência, separar o trigo do joio?

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III. Gli Indoeuropei e le Origini dell'Europa, Francisco Villar, Il Mulino, Bologna, 1997

É evidente que muitas das hipóteses de base nesta ciência são contestadas. Mas é tão vasta que o que se critica num campo pode não afectar tão directamente outro. As críticas às sínteses de Dumézil e do seu trifuncionalismo não impediram a fecundidade do método e de muitas das suas conclusões. Renfrew ou Gimbutas podem ser escorraçados à vontade. Mas se a indo-europeística é acusada pelas fragilidades das suas hipóteses consoante mais se recua no tempo, o mesmo pode ser dito da pré-história. Deitemos ao lixo todos os estudos pré-históricos se quisermos ser consequentes com estas premissas críticas. Menhires para a pedreira, as antas que vão para fazer ladrilhos.

O autor em causa tem o cuidado de não desenvolver a matéria cultural. Preocupa-se mais com a dimensão linguística, no que faz muito bem, porque é aqui onde faltava uma obra de síntese e porque não se mete em campo de infinita discussão. Fez livro útil e claro, mérito que não pode deixar de merecer elogio. Mas uma linguagem nunca é neutra sob o ponto de vista cultural. Tente o leitor expressar em Bantu a filosofia hegeliana ou traduzir para turco Dante. Verá como a mensagem fica distorcida.

O simples facto de nos quedarmos por uma linguagem nunca é um simples facto. Nunca é neutro. O mundo que se adivinha estar à volta dos nossos antepassados e o seu mundo interior faz-nos suspeitar do que ainda hoje em dia herdámos. E estou a subestimar a sua importância apenas por efeitos de prudência.

Seja como for, e bem longe de lutas políticas e públicas polémicas é bom encontrar campos em que o ser humano nos surpreende positivamente e onde por vezes se pode encontrar um raro produto: o génio.

Alexandre Brandão da Veiga

http://tecalibri.altervista.org/V/VILLAR-F_indoeuropei.htm
http://www.libreriauniversitaria.it/BIT/8815057080/
http://www.bol.it/libri/scheda/ea978881505708
http://dsfll.scu.uniroma1.it/dsfll/didattica/prog_0203/leoni.html
http://web.fu-berlin.de/indogermanistik/IISL.htm
http://bcs.fltr.ucl.ac.be/Ling1.html
http://www.infoplease.com/ce6/society/A0825147.html
http://pauillac.inria.fr/~huet/SKT/sanskrit.html
http://clasicas.usal.es/recursos/lengua.html#indo
http://www.degruyter.de/journals/igf/igf102.html
http://www.ccel.org/

http://cgi.stanford.edu/group/wais/cgi-bin/index.php?p=3558
http://somethinktochewon.blogspot.com/2005/11/origins-of-europeans.html
http://blogmarks.net/marks/tag/indo-europeans
http://dienekes.blogspot.com/2005/11/new-paper-on-indian-y-chromosome.html
http://pisa-papeis-blog.blogspot.com/search/label/Ilíada
http://gatesofvienna.blogspot.com/2006/07/men-of-north.html
http://cauldronborn.blogspot.com/
http://www.rzuser.uni-heidelberg.de/~x28/wwwety/idg.en.htm
http://paleoglot.blogspot.com/2007/05/kurgan-hypothesis-is-hypothetical.html
http://www.devasfolk.blogspot.com/
http://bantwal.blogspot.com/2007/06/harts-caste-system-iii.html
http://www.novumtestamentum.com/blog/category/classics/
http://indologica.blogg.de/eintrag.php?id=807
http://leclubjeanthiriart.blogspot.com/2007/05/le-monde-des-indo-europens-1.html
http://gallaecia411.blogspot.com/
http://mathieujanin.romandie.com/archives/337/199911
http://paroleatous.blog.lemonde.fr/2005/02/18/2005_02_europeplusnet_q/
http://www.centrostudilaruna.it/religiondeshommeslibres.html

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Controle de qualidade

Seguindo o post do Nuno Lobo Antunes sobre a qualidade do jornalismo em Portugal, deixem-me acrescentar umas linhas. Escrever é como andar a cavalo: só não se engana quem não o faz. E o engano tem, claro, de ser o dia-a-dia dos jornalistas. Muitos em Portugal são novos e inexperientes o que, sendo até bom, agrava o problema. Para se atingir uma maior qualidade é necessário que haja revisão dos textos, não só quanto à escrita mas também quanto ao conteúdo. É nisso que há muitas falhas nos jornais nacionais. Há um filme que mostra por dentro o funcionamento da New Yorker, onde há duas ou três pessoas que se dedicam exclusivamente à verificação dos factos mencionados nos artigos em preparação.

O problema do controle da qualidade nos jornais é mais vasto e estende-se aos artigos de opinião que muitas vezes também erram. Mas aí o problema é mais difícil de resolver.

Nas publicações universitárias, em Portugal, o problema também se põe. Os artigos e os livros têm de ser lidos por terceiros para detectar erros e omissões. Aqui tem havido algum progresso, embora o caminho seja ainda muito longo. Há autores mais recalcitrantes que tentam evitar a revisão dos textos, mas já são raros e nem sempre conseguem evitá-la. No meio universitário nacional, a necessidade da revisão dos textos já é geralmente reconhecida, embora à vezes não seja bem feita, talvez por falta de meios.

E na blogosofera? – Bem aqui é a selva.

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terça-feira, 3 de julho de 2007

II. Gli Indoeuropei e le Origini dell'Europa, Francisco Villar, Il Mulino, Bologna, 1997

A desconfiança em relação à indo-europeística tem algo a ver com a marca nazi e o abuso que dela se fez. Mas mais que isso tem a ver com a desconfiança em relação às grandes sínteses históricas. A postura do cidadão médio, em boa verdade é do doutorado que falo, é cada vez mais caseira. Como se encontram falhas nas grandes sínteses históricas, trata-se delas como se de nada valessem. Seria o mesmo que deitar fora a teoria da gravidade newtoneana porque se demonstrou (?) ser incorrecta.

Facto curioso, porque é precisamente no momento em que se nega a possibilidade de síntese histórica que mais se usa a História como argumento no espaço público. Ou pela via do lugar comum (as cruzadas, o colonialismo), ou pela via da negação (a Europa seria uma construção anti-histórica, etc.).

Sob o ponto de vista técnico o assustador é que parece que é muito difícil construir uma sintaxe indo-europeia. A fonética e a morfologia estão muito desenvolvidas, mas a sintaxe (nem falo da pragmática, que seria eventualmente impossível reconstruir, por falta de documentos directos) são assustadoramente ausentes. Assim seja. A verdade é que pertence a uma das raras imensas construções do espírito humano de que a humanidade inteira se pode orgulhar. Foi ela a lançar os métodos rigorosos do estudo comparativo das línguas. É graças a ela que as línguas orientais, ameríndias e africanas são estudadas com outro rigor.

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